São Paulo, domingo, 13 de junho de 2010

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CIÊNCIA

Os prazeres que vêm do cérebro

Descobertas para uma nova ética


Óleo sobre tela de Ana Prata

resumo
Estudos recentes estabelecem as bases neurológicas do prazer e seu papel central na formação do cérebro. Modulado pela experiência, o prazer é decisivo para o cumprimento dos imperativos darwinianos da sobrevivência e da procriação, mas também está na origem de vícios e intolerâncias.

HÉLIO SCHWARTSMAN
ilustrações ANA PRATA

O QUE OBESOS MÓRBIDOS, ESPORTISTAS RADICAIS, alcoólatras, fetichistas por pés e religiosos têm em comum? Todos eles são animados pela mesma força motriz: o prazer.
E o que é o prazer? É difícil dizer. Embora tenha desde sempre chamado a atenção dos filósofos -Aristipo de Cirene, um dos discípulos de Sócrates, fundou a primeira escola hedonista no início do século 4º a.C.-, foi só nas últimas décadas que a ciência reuniu os recursos necessários para investigar o fenômeno a fundo, permitindo a elaboração de hipóteses que avançam para além do terreno puramente especulativo.
Estamos assistindo ao surgimento da ciência do prazer. Os resultados dessas pesquisas começam a aparecer em obras como "How Pleasure Works", de Paul Bloom. A Folha obteve um exemplar do livro, que será lançado amanhã nos EUA.
Para a neurociência, a finalidade do prazer é quase óbvia. Ele serve para fazer com que seres vivos mais complexos, como aves e mamíferos, persigam os imperativos darwinianos da sobrevivência e da procriação. Nem mesmo um Schwarzenegger primitivo andaria com uma tabela dietética no bolso, mas seu incontível desejo por açúcares e gorduras o levaria a buscar alimentos ricos nesses macronutrientes essenciais.
Ao contrário de seu antípoda, a dor, o prazer não é exatamente uma sensação. De acordo com Morten L. Kringelbach, vinculado às universidades de Oxford e de Aarhus (Dinamarca) e autor de "The Pleasure Center - Trust Your Animal Instincts" [O Centro do Prazer - Confie nos seus Instintos Animais, Oxford University Press, 304 págs., US$ 24,95, R$45], o prazer resulta da antecipação e subsequente avaliação de sensações produzidas por estímulos.
Trata-se, portanto, de um complexo fenômeno psicológico, ligado ao sistema de recompensa do cérebro e constituído por processos conscientes e não conscientes. Tem como subelementos o desejo, o gosto e a aprendizagem. E isso, como veremos, terá importantes implicações práticas. Historicamente, o sistema de recompensa foi descoberto por James Olds e Peter Milner nos anos 50. Seus experimentos consistiam em implantar eletrodos em diferentes regiões do cérebro de ratos e ativá-los com eletricidade.
Os cientistas perceberam que as cobaias pareciam gostar de determinados estímulos. Mudando um pouco os procedimentos, deixaram que os próprios animais acionassem a corrente através de uma alavanca. Com isso, mapearam as áreas do cérebro que se mostravam mais prazerosas. Com os eletrodos nos pontos certos, os ratos passavam o dia se autoestimulando. Desistiam do sexo e até da comida. Em uma palavra, estavam viciados.

MOLÉCULA DO PRAZER As zonas do cérebro então identificadas como centros de recompensa foram o sistema límbico e o "nucleus accumbens", cujos neurônios têm numerosos receptores para o neurotransmissor dopamina, a "molécula do prazer".
Seria um erro considerar o prazer como um tempero, mero adjuvante na busca de comida e parceiros sexuais. É uma das principais forças que nos faz agir. Sem ele, não teríamos motivação nem para descer das árvores toda manhã. Não por acaso, a anedonia, perda da capacidade de sentir prazer, é um traço comum de várias doenças mentais.
O prazer age primordialmente por vias emocionais, bem mais eficientes e rápidas do que as racionais. Hamlet pode ficar imobilizado pela dúvida existencial, mas quem se depara com um urso sente medo e sai correndo sem pensar, preservando os seus genes para futuras gerações.
E por envolver a aprendizagem, o prazer garante jogo de cintura para adaptar-se a eventuais mudanças no ambiente. O animal que gosta de frutas doces tem mais chances de dar-se bem do que o bicho que extrai seu quinhão de frutose exclusivamente de amoras, por exemplo.
Os estudiosos fazem a distinção entre os prazeres fundamentais (sensórios, sexuais e sociais) e os de ordem superior (monetários, artísticos e transcendentais). Em princípio, partilharíamos os primeiros com outros animais. Já os últimos seriam exclusividade humana.

PAPEL ESSENCIAL O caráter adaptativo do prazer, contudo, é apenas o começo. Gene Wallenstein, neurocientista que se especializou em biologia das emoções, aponta o papel essencial do prazer no desenvolvimento e na maturação do cérebro.
Para entender melhor a tese, desenvolvida no livro "The Pleasure Instinct - Why We Crave Adventure, Chocolate, Pheromones, and Music" [O Instinto do Prazer - Por que Clamamos por Aventura, Chocolate, Feromônios e Música, Wiley, 256 págs., US$ 24,95, R$ 45], é preciso recorrer a um pouco de genética e embriologia.
O Projeto Genoma Humano identificou algo como 25 mil genes. Um cérebro de Homo sapiens tem cerca de 100 bilhões de neurônios; cada um se conecta a milhares de outros, perfazendo um total de 1014 (o número 1 seguido de 15 zeros) conexões nervosas.
Tamanha desproporção sugere que a informação genética é insuficiente para especificar o lugar de cada neurônio no cérebro, bem como os pontos de ligação com outras células nervosas. Os genes trazem regras muito gerais de desenvolvimento e migração neuronal, que vão sendo ajustados ao longo do processo.
A sintonia fina cerebral se faz pela criação de numerosas ligações entre os neurônios (sinaptogênese), seguida da eliminação das conexões que não foram utilizadas (poda). O adjetivo "numerosas" aqui não é força de expressão. Entre a metade da gestação e os dois anos de idade, o cérebro forma 1,8 milhão de novas sinapses por segundo!
O processo de poda é bem mais lento: estende-se até o final da adolescência. O prazer funcionaria aqui como fio condutor, levando o indivíduo, desde a fase embrionária (sim, fetos já sentem prazer) a buscar as experiências necessárias para que seu cérebro seja ligado corretamente. As conexões que mais produzem prazer são constantemente estimuladas e, por isso, reforçadas; as menos utilizadas acabam sendo eliminadas.
Para dar uma ideia de quão crítico é o processo, basta evocar os experimentos feitos com gatos que têm os olhos tapados ao nascer. Sem a experiência da visão presidindo à geração e poda de sinapses, o cérebro deles não aprende a enxergar. Se a venda só for retirada após a "fase crítica", os gatos ficam cegos para sempre, embora seu equipamento óptico esteja em perfeitas condições.
Esse, aliás, é um bom argumento para mostrar que a dicotomia genes-ambiente (em inglês é mais sonoro: "nature-nurture") não faz muito sentido. As instruções embutidas nos genes só ganham real significado depois de moduladas pela experiência.

PRAZERES INTRAUTERINOS Segundo Wallenstein, conservamos até o fim os prazeres que foram importantes na vida intrauterina e na primeira infância. Um exemplo: bebês gostam de ser chacoalhados; e gostam porque isso faz bem a eles. É uma experiência importante, em que o cérebro se ajusta para lidar com o equilíbrio e o movimento.
O mesmo processo se repete para cada um dos sentidos. Calibrar o cérebro para a visão, por exemplo, exige que nos exercitemos na observação de cores, linhas e, em especial, no reconhecimento de faces. Daí o nosso gosto inato pelas cores primárias, pela simetria e a verdadeira obsessão humana por rostos. De modo análogo, a curiosidade sonora do bebê e seus balbucios já são a primeira fase da aquisição da linguagem.
A eficácia da estimulação cinética nos primeiros meses de vida foi demonstrada num experimento com gêmeos idênticos. O bebê que foi mais sacudido começou a andar quatro meses antes de seu irmão. Como o gosto pela agitação permanece mesmo quando sua finalidade primordial já foi cumprida, crianças adoram correr e pular, jovens divertem-se testando os limites de aceleração de carros, e até os mais pacatos idosos curtem a cadeira de balanço.

CHOCOLATE A neurociência também explica por que o chocolate é tão irresistível. Entre seus mais de 350 compostos conhecidos, há pelo menos três grupos que falam diretamente a nossos órgãos de prazer. O mais famoso é a sucrose, que não é mais que o bom e velho açúcar. Algumas gotinhas bastam para acalmar um bebê chorão. Elas ativam o sistema opioide do cérebro, que regula a resposta do corpo ao estresse.
Além da sucrose, o chocolate contém teobromina (um estimulante leve) e feniletilamina, quimicamente similar à anfetamina. Uma vez no cérebro, elas ativam os sistemas da dopamina e da noradrenalina, ligados à atenção e à excitação.
Por fim, o terceiro grupo traz a anandamina, que ativa os mesmos receptores do THC - tetraidrocanabinol, o princípio ativo da maconha-, e mais duas moléculas, que fazem com que seu efeito perdure por mais tempo.
O chocolate seria, assim, uma improvável combinação de morfina, anfetamina e maconha no mesmo produto. Difícil resistir. A comparação só não é exata porque as drogas ilícitas ou controladas produzem versões potencializadas do "barato".

VÍCIO Isso nos leva ao lado negro do prazer, que é o vício. De acordo com Wallenstein, recentes pesquisas em neurociência mostram que, além do sistema da dopamina, existem pelo menos três outros que estão ligados ao prazer. Mais importante, os circuitos neuronais responsáveis pelo querer e pelo gostar funcionam de forma independente. É o que explica, por exemplo, por que dependentes fazem de tudo para obter sua ração diária de droga, mesmo afirmando que não gostam tanto como nas primeiras utilizações.
É o que explica, também, por que é possível tornar-se viciado em produtos como o cigarro, intragáveis para quem experimenta pela primeira vez.
Conhecer melhor os mecanismos da dependência, além de indicar alvos para o desenvolvimento de novos fármacos, também pode levar à revisão de algumas estratégias terapêuticas.
Wallenstein sugere que pode ser contraproducente abordar uma droga de cada vez -alcoólatras que buscam tratamento para a dependência de álcool e são também fumantes raramente recebem incentivo para abandonar o cigarro ao mesmo tempo. Todas as drogas, afinal, excitam os mesmos centros de recompensa. Tentar parar de beber sem parar de fumar seria como prescrever um tratamento que incluísse pequenas doses de álcool. Se esse modelo é exato, as terapias de substituição não fariam sentido.
O vício é o mais evidente dos curtos-circuitos do prazer, mas está longe de ser o único. Racismo, estupro de virgens e intolerância religiosa seriam outros desvios comuns, na interpretação de Paul Bloom, autor do esperado "How Pleasure Works - The New Science of Why We Like What We Like " [Como o Prazer Funciona - A Nova Ciência de Por Que Gostamos Daquilo de que Gostamos. W. W. Norton, 280 págs., US$ 26,95, R$ 49].
Nem todos os prazeres, porém, têm valor adaptativo. Sobretudo no mundo moderno, eles surgem como subproduto de preferências que foram importantes no passado humano ou no desenvolvimento de cada indivíduo.
É o caso do café. Não dá para dizer que gostamos de café porque caçadores-coletores que bebiam essa infusão obtiveram uma vantagem sobre os que não a ingeriam. O café é apreciado porque é uma droga estimulante, e nós gostamos de ser estimulados.

ESSENCIALISMO Para Bloom, estrela em ascensão da Universidade Yale, seres humanos têm uma visão essencialista do mundo; quando ela interage com o prazer, pode gerar subprodutos indesejáveis. O essencialismo, compreendido como a noção de que as coisas têm uma natureza oculta que as define, não é em si um mal. Ao contrário, ele nos leva a ser observadores detalhistas, que tentam ler em pistas externas a verdadeira essência dos objetos. Isso tende a favorecer a sobrevivência.
A questão é que muitas vezes o essencialismo produz confusão. Experimentos conduzidos pelo psicólogo social Henri Tajfel mostram que, ao dividir pessoas em dois grupos por critérios arbitrários (cara ou coroa, por exemplo), os indivíduos não apenas favorecem a facção em que ficaram -o que seria compreensível do ponto de vista dos prazeres sociais- como acreditam que há diferenças significativas entre as duas.
Se as características externas são mais ou menos óbvias, como a cor da pele ou o formato do rosto, são elas que despontam como relevantes e, portanto, "essenciais". Pronto: está criado o embrião do racismo e, "mutatis mutandis", da intolerância religiosa.
Existem exemplos mais divertidos do essencialismo. O que pensamos acerca de nossos alimentos altera, às vezes profundamente, a forma como os apreciamos. Num experimento com especialistas, o mesmo vinho foi rotulado como "grand cru" (de alta qualidade) ou "vin de table" (ordinário). A avaliação mudava conforme o rótulo. Se você está prestes a concluir que a crítica enológica é uma fraude, ainda não viu nada. Numa outra simulação, experts foram induzidos a confundir vinho branco com tinto. Bastou uma mentirinha e um copo escuro.
As coisas podem ficar ainda piores para os defensores da objetividade do paladar. Com a crença errada, como demonstrou outro teste, somos capazes de nos deleitar com comida de cachorro como se fosse patê de "foie gras".
Outra característica interessante -e positiva- do essencialismo é que ele nos permite apreciar a ficção e aprender com ela. Ao contrário da maioria dos animais, temos a capacidade de antecipar sensações e extrair prazer (ou sofrimento) dessa antevisão. Isso nos treina a distinguir ficção de realidade, o que abre toda uma avenida de novos prazeres.
Em primeiro lugar, ganhamos a possibilidade de "viver" situações ficcionais. A experiência pode não ser tão intensa como na realidade; embora isso atenue as sensações, também nos preserva dos perigos. Assistir no cinema a alguém sendo devorado por tubarões é mais seguro do que presenciar a cena "in loco".
Essa simulação segura é, em geral, uma boa oportunidade de aprendizado, seja para lidar com as próprias emoções, seja para adestrar-se numa atividade relevante. No mundo animal, as brigas de brincadeira entre filhotes são uma forma de aprendizado para a luta -sem o risco de ferimentos. A literatura está salva e "Crime e Castigo" vale por um tratado de psiquiatria.
Ainda mais curioso, de acordo com Bloom, o fato de jogarmos mentalmente com o binômio segurança-emoção nos torna capazes de extrair prazer de sensações desagradáveis, como a queda livre da montanha-russa e o filme de terror. Esse comportamento pode prolongar-se para fora da ficção, desde que numa situação que saibamos ser controlada. É o que explica a nossa curiosidade diante de acidentes de carro, comidas condimentadas -o ser humano é o único animal que aprecia Tabasco, assevera Bloom- e até o masoquismo.

FETICHES E, se o assunto é sexo, esse é um terreno fértil para nossas projeções essencialistas. Num experimento com perus selvagens, os pesquisadores tentaram identificar qual a "unidade mínima" de perua que os excitaria.
Para isso, foram testando a resposta dos machos a manequins de peruas, das quais iam retirando cauda, pés, asas etc. Descobriram que bastava espetar uma cabeça num pau para despertar o vigor nos machos. Na verdade, os perus preferiam a cabeça sozinha a um corpo acéfalo. Eis aí um modelo para o fetichismo.
No caso dos humanos, o fetiche mais frequente é por pés. Há uma explicação neurológica para isso. A área do cérebro que processa as informações táteis da genitália é vizinha à responsável pelos pés, ao alcance de apenas algumas sinapses extras.
A tara por virgens também resulta de uma visão essencialista, desta vez moldada pela seleção sexual. Desde que a espécie humana perdeu o estro, ficou muito mais difícil para o macho ter certeza de quem são seus filhos (se as mulheres fossem férteis apenas num período do ano, bastaria vigiá-las de perto nesse intervalo).
Antes da pílula e da inseminação artificial, a melhor garantia de não estar criando filhos alheios (o pior pesadelo darwiniano) era relacionar-se com uma virgem. O hábito, que ainda evoca ideias como as de pureza e inocência, ficou e estendeu-se para outras áreas, gerando comportamentos moralmente indefensáveis como a pedofilia, o estupro de virgens com vistas a curar doenças e os crimes "em defesa da honra".

ÉTICA No fundo, tinha razão Epicuro (341 a.C.-270 a.C.), um dos primeiros filósofos hedonistas. Sem rejeitar o prazer, ele percebeu a necessidade de enquadrá-lo dentro de uma ética. Poderíamos até dividir a história da filosofia em sistemas ou autores que nutrem simpatia pelos apetites naturais (hedonismo, empirismo, Diderot, utilitarismo) e aqueles que os denunciam como fonte dos males humanos (estoicismo, santo Agostinho).
O que a incipiente ciência hedônica sugere é que o prazer, mais do que um impulso a ser disciplinado, é uma das principais forças que dirige a formação do cérebro e que nos confere o gosto pela vida. Compreender os caminhos por vezes estranhos a que ele nos conduz é o primeiro passo para uma nova ética do prazer, que nos permita evitar suas armadilhas e utilizá-lo para tornar mais eficientes práticas como a educação e tratamentos de doenças.


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