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DIÁRIO DE PEQUIM
Geopolítica do kung fu
O mestre de Bruce Lee
LINGSHAN CHEN
tradução CAETANO GALINDO
SEM MUITA PROMOÇÃO, "Ip Man 2", do diretor Wilson Yip, de Hong Kong, bateu o blockbuster
hollywoodiano "Homem de Ferro 2" nas bilheterias chinesas desde que foi lançado, no final de abril.
Ao lado de "Ip Man", sucesso em 2008, o filme rendeu ao ator Donnie Yen Chi-Tan o título de novo
rei do cinema de kung fu.
A trilogia "Ip Man" conta a história de Mestre Ip, figura lendária das artes marciais "wing chun" e
mentor de Bruce Lee. A segunda parte da história acontece em Hong Kong, logo depois de Mestre Ip
ter saído da China continental no começo dos anos 1950. O filme conta as dificuldades que o mestre
teve para implantar sua escola de artes marciais no protetorado britânico, sua luta contra os gângsteres
locais e a vitória simbólica sobre o campeão de boxe inglês "Twister".
O enredo e as cenas de luta são compostos com tal habilidade que, no momento em que Mestre Ip
derrota "Twister", muitos espectadores chineses comemoraram estrepitosamente nos cinemas. A cena
de luta final, de fato, tem uma tremenda carga emocional. Muitos de meus compatriotas decerto
sentiram uma forte identificação com o herói na tela.
Provocar o ódio patriótico pelos estrangeiros e fantasiar sua derrota não é novidade nos enredos de
filmes de kung fu. Bruce Lee, em "A Fúria do Dragão" (1972), já instigara o sentimento de defesa da
dignidade do kung fu chinês contra a humilhação estrangeira. Na primeira parte da trilogia, Mestre Ip
vence um desafiante japonês no contexto histórico da invasão nipônica do território chinês, nos anos
30.
A sequência de "Ip Man" retoma a tradição estabelecida na era de Bruce Lee, que lutava com as mãos
vazias, em cenas de grande realismo e intensidade. Contudo, o foco no corpo do ator não é uma
simples regressão ao passado. Em contraste com Bruce Lee, seminu e viril, o personagem de Mestre
Ip está sempre envolto num tradicional quimono; seu corpo exíguo lembra o de um intelectual.
No meio do filme, a filosofia do kung fu de Mestre Ip -a arte de procurar minimizar os conflitos e
valorizar a neutralidade- é apresentada durante a instrução de um dos discípulos. Seria o ideal
kantiano de procura da paz perpétua?
Como se o mestre quisesse reconciliar o ato violento e vingativo com os desorientados espectadores
ocidentais, ele pronuncia uma fala curta depois de seu triunfo: "O que importa não é perder ou ganhar,
mas o respeito mútuo que reina durante a disputa".
Obviamente, o espectro de um passado historicamente miserável e o sentimento de vitimização nas
mãos de estrangeiros ainda estão vivos entre nós. Não fosse por isso, meus compatriotas chineses
talvez não tivessem se empolgado tanto com a vitória de Mestre Ip.
Contudo, "Ip Man 2" parece ter adotado um enfoque humanitário ao criar um novo tipo de mestre de
kung fu, mais introspectivo e reflexivo, cujo princípio é a luta limpa e a coexistência pacífica com os
outros, em vez da busca de um poder sem medidas.
O retorno do Mestre Ip abre a caixa do trauma histórico, confiando no efeito curativo de alguns
valores tradicionais. Ironicamente, foi Bruce Lee quem tornou o kung fu internacionalmente
conhecido, mas ele não poderia imaginar que um dia seu mestre retornaria às telas de forma tão
intelectualizada e, ao mesmo tempo, tão poderosa.
SEGUNDO O DIRETOR Wilson Yip, a terceira parte da trilogia vai focar em Bruce Lee e seu mestre.
Vai ser interessante ver como esses dois gigantes do kung fu se reencontram na tela. O cineasta Wong
Kar Wai (de "Um Beijo Roubado") está dirigindo outro filme sobre o Mestre Ip, com Tony Leung no
papel principal.
A TRILOGIA "IP MAN" já se inscreve entre os filmes centrais do gênero. Faço aqui a lista dos
essenciais, que mostra a evolução da imagem do mestre de kung fu nas telas: "A Fúria do Dragão",
com Bruce Lee; "Police Story" (1985), com Jackie Chan; "Era Uma Vez na China" (1991), com Jet Li;
"Swordsman 2" (1992), com Jet Li; "Hero" (2002), com Jet Li e Donnye Yen; e, por fim, "Ip Man" e "Ip
Man 2" (2010), com Donnye Yen.
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