São Paulo, domingo, 17 de abril de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O gato de M.

DIONISIO NETO

Todas as histórias de amor mais emocionantes escritas pelos melhores autores de todos os tempos não me ajudavam a reconquistar M.
M. estava fechada, curada de mim, do nosso passado, dos momentos terríveis que construíram e destruíram as memórias, as cicatrizes e nos deixaram um gato. De todos os anos com M., o que ficou, fora o pensamento, foi o gato.
Nesses dias escuros, quando as dívidas com o mundo foram pagas, quando tudo o que me resta são as lembranças de M., os gestos de M., a voz de M. em eco no meu cérebro, o perfume de M. em minhas roupas, nos meus poros, neste tempo vazio, infinito, o gato olha para mim, com fome, penetrando minha retina, pronto para o bote se eu não o alimentar.
O gato foi presente de M.
- Toda vez que você olhar este gato, eu estarei com você.
M. disse isso para mim, mas não é verdade. Olho para o gato, e M. não está aqui.
Lembranças não alimentariam o gato. O gato precisa de comida de verdade. Eu tenho fome também. Fome maior do que a do gato, suponho.
Não como há dias, não saio daqui, peço tudo pelo computador, nem vejo mais a cara das pessoas, peço para o porteiro deixar a comida do lado de fora, a minha e a do gato.
Estamos magros, suponho. Minhas calças caem, daqui eu vejo os ossos do gato, ele mia, mas não é um miado feliz, é um miado de dor, profundo, um miado de morte. Se a morte tivesse uma voz, essa voz seria assim como a do gato.
Perdi a noção do tempo. Não entra sol aqui. Para mim, é sempre noite. Uma longa e tenebrosa noite, em companhia do fantasma de M. e do gato.
O gato caminha a passos lentos, fracos. Eu esqueci de alimentar o gato. Acho que esqueci de me alimentar também. A porta está trancada, eu não sei onde deixei a chave e também não tenho forças para procurar. A única força que tenho me remete a M.
M. de guarda-chuva vermelho gargalhando aos trovões, M. no mar de Ipanema, qual sereia em dia de festa, M. nos jornais, M. na televisão, M. cozinhando meu prato preferido, M. gemendo aos orgasmos múltiplos, M. rezando, M. frágil como toda mulher, mas não tão frágil como eu, não tão frágil quanto eu e o gato.
Sinto um cheiro podre de comida no ar, vindo da porta -mesmo trancada, eu sinto. Eu e o gato. Sentimos, ainda sentimos, mesmo sem M. para nos alimentar com comida farta, com comida fresca. Sem M., a comida morre também.
São dias e dias. Já disse: perdi a noção do tempo.
Eu não como. Eu não bebo. Eu não ando.
Eu me transformei no gato.
Acho.
O gato sou eu?
Eu falo, eu grito, eu destruo agora todas as lembranças de M., que corroem meu tempo, que tiram meus pés desse mundo e me levam para um mundo funesto. Eu corro nu pela casa, eu me jogo na parede, eu quebro minha mão, eu corto meus dedos, eu pinto as paredes da casa com meu sangue, eu não durmo, eu não respiro, eu fecho os olhos, eu não consigo mais gritar.
Sem M., eu simplesmente não sou.
Sem M., não existimos, nem eu, nem o gato.
O cheiro da comida podre arranca minha bílis da boca e suja o chão do apartamento do que eu não comi.
Eu não tenho mais tempo de vida.
Nem eu, nem o gato.
Mas o gato de M. é mais importante do que eu, suponho. Eu tenho sete vidas, ele, não. De hoje ele não passa se não sair por aquela porta. Se não se alimentar com a comida podre de semanas, ele vai antes de mim.
Encontro a chave da porta em meio às roupas sujas. Abro a porta. Eu consigo abrir, eu ainda consigo abrir as portas fechadas. Por mais moribundo que eu esteja, eu não deixaria o gato de M. morrer. Jamais.
Eu vou deixar a porta aberta. A mesma porta por que M. tantas vezes entrou com seus vestidos floridos, com seus cabelos esvoaçantes, com seu andar de diva. Eu vou deixar a porta aberta. Quem sabe o gato saia à caça de alimento e não morra. Quem sabe um dia, se eu ainda estiver vivo, M. entre de novo por esta porta e, como tantas e tantas vezes fez, dê uma dúzia de passos em minha direção, beije meus olhos e me acorde de volta para a vida, a única vida que eu aprendi a viver, nos braços de M., nos braços reais, macios e carinhosos de M.


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