São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2010

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ALIMENTAÇÃO

A dor dos moluscos

Não convide Peter Singer e Michael Pollan para a mesma mesa

resumo A moralidade de comer animais separa Peter Singer de Michael Pollan, ambos autores de best-sellers sobre moderação à mesa: o filósofo aceita ingerir só moluscos (com exceção dos polvos), como defende reedição do clássico vegetariano "Libertação Animal" -puritanismo atacado pelo jornalista que escreveu "Regras da Comida".

MARCELO LEITE

COMER É MUITO complicado. É provável que as características do cérebro humano e a cultura tenham evoluído com o empilhamento, ao longo de milhões de anos, de habilidades talhadas para a caça: altruísmo, sociabilidade, linguagem, planejamento, uso de ferramentas e estratégia. Só depois veio a agricultura, mas com a mesma função: escapar de fome, sofrimento e morte.
Uma dezena de milhar de anos depois, comer deixou de ser complicado -ao menos para aquela fração da humanidade com renda para comprar comida regularmente e ler jornais. O alimento não brota mais da terra, com muito suor, nem foge em pânico sobre o campo. Repousa, plácido, nas prateleiras e balcões do supermercado.
O complicado, agora, é comprar. São muitas as opções: carnes, verduras, frutas, cereais; carne vermelha, aves, pescado, ovos, laticínios; proteínas, lipídios, calorias, fibras, vitaminas; ômega-3, licopeno, isoflavonas, polifenóis; importados, regionais, locais; orgânicos, kosher, halal...
Dois livros estão na praça para tornar as escolhas ainda mais complexas. O primeiro, a pretexto de simplificar, compila um menu de normas para comer que, digeridas, excretarão sabedoria. O segundo, mais exigente, incorpora dimensão moral à deglutição e transforma hábitos alimentares dominantes em práticas comparáveis às do racismo.
Para dificultar mais um pouco, os dois autores -Michael Pollan e Peter Singer- não se entendem à mesa.
A obra de Pollan é "Regras da Comida - Um Manual da Sabedoria Alimentar" [trad. Adalgisa Campos da Silva, Intrínseca, 160 págs., R$ 19,90]. Depois da fama adquirida com os best-sellers "Em Defesa da Comida" e "O Dilema do Onívoro", o jornalista americano e professor na Universidade da Califórnia em Berkeley encapsulou seus mandamentos num livrinho de autoajuda. Serve, nele, um suculento "puchero"de conselhos:
  Não coma nada que sua avó não reconhecesse como comida;
  Evite alimentos anunciados na TV;
  Não coma cereais matinais que mudem a cor do leite;
  Evite produtos com mais de cinco ingredientes;
  Só coma à mesa;
  Não é comida se entrou pela janela de seu carro.
Por aí vai. Pollan reduz seus ditames ao caldo concentrado de seis palavras: "Coma comida; não muita; principalmente vegetais". Quem precisar de algo mais substancial deve sopesar as 64 regras do manual (leia folha.com/ilustrissima). A melhor delas, por evidenciar que o autor não é um puritano na cozinha, vem na sobremesa (a 64ª exortação): quebre as regras de vez em quando.
Oscar Wilde recomendava moderação inclusive com a própria moderação. Pollan lhe presta tributo: "A obsessão por regras alimentares faz mal à sua felicidade e, provavelmente, à sua saúde também. Nossa experiência ao longo das últimas décadas sugere que fazer dieta e se preocupar demais com nutrição não nos deixou mais saudáveis nem mais magros: cultivar uma atitude relaxada em relação à comida é importante".
Se o seu negócio for relaxar, não leia "Libertação Animal", de Peter Singer. A nova edição brasileira [trad. Marly Winckler e Marcelo B. Cipolla, WMF Martins Fontes, 496 págs., R$ 75] traz alguns acréscimos em relação à de 2004 (ed. Lugano), como um novo prefácio e 36 páginas de "Peter Singer por ele mesmo", mas repete o desfile de horrores sobre métodos industriais de criação de animais, com destaque para galinhas e porcos.
O mais salivante apreciador de filés terá ganas de tornar-se vegetariano. Nos prefácios, contudo, o australiano Singer -um filósofo utilitarista de rigor e honestidade marcantes, professor de bioética da Universidade de Princeton (EUA)- admite que o movimento por direitos dos animais, do qual se tornou o maior ideólogo, abocanhou muitas vitórias desde 1975, quando seu manifesto foi lançado. A humanização dos animais comestíveis não se resume a filmes como "Babe, o Porquinho Atrapalhado" ou "A Fuga das Galinhas". Países da União Europeia concordaram em acabar com as caixas-padrão de arame para criar galináceos com os bicos cortados, para evitar automutilação. "Em 2012, os produtores europeus terão de destinar ao menos 7,5 metros quadrados a cada ave, provendo-a de poleiro e de ninho", festeja Singer.
Não sorria. Há 20 anos, um brasileiro que morasse na Alemanha podia rir das caixas com ovos de "frei laufende Hühner" (galinhas que andam livres). Hoje, desdobra-se atrás de ovos de galinhas caipiras, pois se convenceu de que o sabor é melhor. De quebra, deixa de remunerar, quando pode, uma indústria de criação que sabe insustentável, moral e ecologicamente.
Esse é o ponto em que Pollan e Singer se encontram: não faltam razões gastronômicas, médicas, éticas e ambientais para atentar ao que se come. O autor de "Libertação Animal" hoje comemora o fato de que a crescente consciência ambiental favorece o vegetarianismo, pois o rebanho bovino emite quantidades não desprezíveis de um dos mais potentes gases do efeito estufa, o metano.
Singer chega a recomendar que o Brasil não siga a trilha dos países desenvolvidos e renuncie ao confinamento do gado. A pecuária extensiva, no entanto, é o grande motor do desmatamento da Amazônia. Questionado sobre o conflito entre os interesses dos animais e os do ambiente, admitiu a dificuldade de tomar uma decisão: "Certamente eu não encorajaria a destruição da Amazônia de maneira a permitir mais pastagem, mas o uso de áreas que não sirvam para cultivar plantas que produzam valor comparável", afirmou em entrevista à Folha (leia a íntegra em folha.com/ilustrissima).
Para Singer, o desastre se origina da demanda e da prosperidade crescentes da classe afluente na China, que quer comer mais carne. Não está certo, contudo, do que pode ser feito para conter isso: "Idealmente iríamos até a raiz e tentaríamos persuadir os chineses de que é um desastre para o planeta e para os animais, e que não seria tampouco bom para sua saúde. Mas não sei, de fato, como alcançar essas pessoas". O australiano vai ainda mais longe. Elege um princípio moral -não se deve contribuir para aumentar o sofrimento no mundo- e segue com ele até o fim: quem come carne é culpado de "especismo", que Singer equipara a racismo, só que praticado por humanos não contra humanos, mas contra animais, dos quais só diferimos em grau, não em essência.
A discussão é apetitosa. Tem lugar para conclusões de pesquisadores célebres como Jane Goodall e Dian Fossey, segundo as quais outros primatas possuem seu quinhão de consciência, linguagem, cultura -tudo aquilo que já se considerou privilégio da espécie humana. Também abriga raciocínios menos palatáveis, como a superioridade cognitiva de cavalos e cães adultos sobre humanos recém-nascidos. O divisor de águas, para o filósofo, é a capacidade de sentir e antecipar a dor. Simples. Quer dizer, mais ou menos: Singer reconhece que não é trivial traçar uma linha divisória no variado contínuo de sistemas nervosos distribuído entre as espécies pela evolução ?darwiniana por seleção natural.
Para ele, há evidências convincentes de que todos os vertebrados podem sentir dor, mas sobre invertebrados alimenta dúvidas: não diria que nenhum deles possa sentir dor, porque acha difícil acreditar que um polvo não seja um ser consciente. Já ostras, obviamente inconscientes, entram sem crise no seu cardápio, como ovos e, vez por outra, leite. Peixes, não (são vertebrados).
Embora pregue a preferência por vegetais, Pollan sai em defesa dos bifes. Num artigo de 2003 para o jornal "The New York Times" intitulado "O Lugar de um Animal", depois no livro "O Dilema do Onívoro", o jornalista ataca o puritanismo dos ativistas dos direitos dos animais. Uma ideologia paroquial e urbana, que se nutre de uma adesão sentimental e abstrata à "vida".
Pollan acusa Singer e seu rebanho de privilegiar indivíduos (a famigerada capacidade de sentir dor) em detrimento de espécies e do ambiente. A predação equilibra ecossistemas, animais ajudam a reciclar nutrientes do solo em fazendas orgânicas e, afinal, o hábito de comer carne faz parte da evolução biológica e cultural da espécie humana.
Sob a pressão da caça, defende o artigo, o cérebro humano cresceu em tamanho e complexidade. Em torno do fogo no qual se assava a carne floresceu a cultura: "Conferir direitos aos animais pode nos elevar acima do mundo brutal da predação, mas trará o sacrifício de parte de nossa identidade -nossa própria animalidade".
Singer conta que leu todos os livros de Pollan. Elogia o autor por encorajar as pessoas a evitar produtos de fazendas industriais e também por dizer que devem comer menos carne. Admite até, como utilitarista honesto, que as raças de animais domesticadas têm interesse em seguir como comensais do homem, mas descarta como "estranho" o argumento de Pollan em favor da licitude de matá-los para comer.
No capítulo de "O Dilema do Onívoro" sobre Joe Salatin, da fazenda Polyface (EUA), Pollan pergunta por que o fazendeiro acha que há justificativa para matar animais. Salatin diz algo na linha de "Deus nos deu licença para matar". "Pelo que sei, não é o que Pollan realmente acredita", ressalva Singer. "Mas não diz qual é o seu próprio argumento. Ele meio que deixa essa questão no ar." Comer é mesmo muito complicado. Pense nisso.

Incorporar uma dimensão moral ao ato da deglutição, exigência do utilitarista Peter Singer, transforma hábitos alimentares dominantes como comer carne em práticas comparáveis às do racismo

Não é trivial traçar uma linha divisória no variado contínuo de sistemas nervosos, capazes ou não de sentir dor, distribuído entre as espécies pela evolução darwiniana por seleção natural


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