São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Retrato em cores frias

Rio de Janeiro, anos 70

Reprodução
Foto de Albert Einstein feita em 1928 e dada a Elvira Vigna por Lotte

ELVIRA VIGNA

GANHEI ESSA FOTO de Charlotte Lenzen. Lehmann, de casada. Tia do meu marido, de quem ela gostava como ao filho que nunca teve. De mim, bem menos. Ou eu assim achava. Havia complicações. Eu era gói. E havia um bebê, a Carolina, de outro homem.
Ganhei porque pedi. E aqui vou me esforçar para pôr em palavras o que é gesto contido, meio sorriso, frase interrompida. Porque eles eram assim, com um sinal de menos na frente.
A foto estava em um fundo de armário, em meio a outras fotos. Tentei brincar. Aí, hein!, amores de juventude! Me olhou quase com pena. Depois entendi. E depois de muito tempo.
Não sei se houve flerte entre eles. É possível que não. Na época em que se encontraram, Einstein tinha seus 50 anos, Lotte, 17. Talvez apenas um encantamento da jovenzinha com seu parente (eram parentes) distante que acabava de se casar com uma prima de ambos, a Elsa. E foi isso o que custei a entender, a importância desse encantamento.
A foto tinha sido guardada, não como eu ou você guardamos fotos. A foto tinha sido guardada penosamente. Sobreviveu a caminhadas na neve, trens para lugar nenhum, navios superlotados. A foto era, para Lotte, muito mais do que o vestígio de um encontro. Era o vestígio de uma época que incluía a possibilidade de visitas sociais.
É datada de 1928, um ano-chave na biografia de Einstein. Depois de um colapso nervoso, ele começa um longo período de recolhimento, em que se dedica ao sonho de descobrir uma teoria unificadora para o Universo. Um sentido para o Universo, enquanto sua vida pessoal e seu país perdiam a cada dia mais sentido.
Em um curso que fiz no campus da Maria Antônia com Conrado Ramos, pesquisador do núcleo Psicanálise e Sociedade da PUC-SP, aprendi sobre a subjetividade cínica dos nossos dias, o divórcio entre desejo e gozo. E o conformismo em se contentar com o gozo, abrindo mão da árdua perseguição ao desejo.
Aprendi também como essa atitude é conformista, como fingimos que o gozo é ótimo, espetacular, para assim não precisar enfrentar a incapacidade de conseguir mais. Me fez lembrar o que tanto detesto na minha atividade de escritora/leitora, e que é a literatura espetacularizada. Os enredos inchados para acolher situações bombásticas, imagens de grande impacto, a encenação de grandes acontecimentos totalmente ausentes na minha vida e, suspeito, na da maioria. A tentativa burguesa de buscar adrenalina na mímesis do marginal -tomado como tipo, nunca como indivíduo. Enfim. Não prossigo porque o assunto me mobiliza e arrisco falar disso sem parar.
E, justamente, a foto do Einstein. Como ficava, em um fundo de armário, embora obviamente valiosa. Como me foi dada, com um meio sorriso que só depois, bem depois, decifrei como sendo de um afeto que tinha, nesse meio sorriso, não sua única possibilidade de expressão. Mas sua melhor possibilidade de expressão.
Porque Lotte, seu marido Helmut, os pais de Roberto e os poucos restantes da família dizimada me ensinaram o contrário de Conrado Ramos, e não foi pouco. Me ensinaram, de um certo modo, a escrever.
Ao contrário da subjetividade cínica, que finge viver o total no que é, e o é conscientemente, um engodo, Lotte, sua vida e suas fotos velhas me ensinaram a domar totalidades. A suportá-las.
Outros me repetiram a lição. Dois meninos do Complexo do Alemão, cujo nome esqueci, mas não deles. Umas mulheres do Acre.
Charlotte Lenzen de Lehmann -é com este "de" que seu nome é grafado em alguns documentos oficiais- nasceu em 6 de novembro de 1911. Naturalizou-se brasileira em 27 de março de 1951. Eu e Roberto fomos viver juntos em algum mês de 1972. Depois de muitas brigas motivadas pelo o que me parecia, a mim, descendente de italianos, uma total frieza da parte dele, eu acabei que entendi.


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