São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Um mito do sertão

Feira de Santana, 1954

MUNIZ SODRÉ

A MEMÓRIA É USINA de história, mas também de mitos. Não raro, ambos convivem, como me ocorreu ao dar um pequeno depoimento sobre Humberto Teixeira, o grande parceiro de Luiz Gonzaga, para o documentário "O homem que engarrafava nuvens". Na verdade, jamais vi em vida Humberto Teixeira, mas o associei ao grande "Lua", artista histórico e mítico de minha infância no interior baiano. Seu concerto para uma plateia de vaqueiros e feirantes no Campo do Gado é uma das mais vivas lembranças que guardo.
De fato, como apagar os traços de um concerto do rei do baião da memória de um menino do interior nordestino, enlevado por música, num tempo ainda sem TV e seus derivativos, sem a popularização do disco de 33 rpm, que revitalizaria a indústria da canção?
A cidade era Feira de Santana, a segunda maior da Bahia, e no começo dos anos 50 ainda fazia jus à alcunha de "Boca do Sertão". Situada a pouco mais de cem quilômetros de Salvador, Feira é a grande porta de entrada para o mundo sertanejo. Naquela época, ainda ocupava parte do centro e adjacências a grande feira de gado e alimentos, que recriava toda segunda-feira a atmosfera do sertão. Cantadores e camelôs de produtos miraculosos misturavam-se a vaqueiros, roceiros, fazendeiros, criadores de gado e vendedores de quase tudo que se possa imaginar de comestível no sertão.
Em épocas de estio inclemente, não era raro ver os caminhões de "paus de arara", como se alcunhavam os viventes tangidos pela seca rumo a São Paulo, parados à margem do mercado, famélicos, sem tostão para um beiju de mandioca sequer. Olhavam, olhavam, às vezes nostalgicamente, para os vaqueiros garbosos em seus gibões e chapéus de couro, facão na cintura e rebenque na mão, em cima de cavalos mais bem alimentados que os ginetes.
Quem sabia de vaqueiros, sabia, para além das aparências, da vida dura que levavam, da sua espantosa capacidade de sobreviver nas condições mais adversas da caatinga: parecia não haver seca nem fome que os matasse. No Campo de Gado, tangendo a boiada, faziam o espetáculo para os meninos que, escondidos dos pais, corriam atrás de bezerros e de bodes.
Luiz Gonzaga deixava siderada a gente do sertão. Só muito depois se saberia (e talvez ainda hoje nem se saiba) que o grande "Lua" inventou aquela coisa toda, os seus ritmos, no Rio de Janeiro, mais precisamente na Lapa, onde durante muito tempo cantou sambas e boleros. Pernambucano de Exu, ele parecia ter o dom do movimento que os cultos afrobrasileiros atribuem a quem carrega essa divindade na cabeça. Juntamente com Humberto Teixeira, cearense, político e intelectual apaixonado pelo Brasil, recriou musicalmente a atmosfera do sertão.
A canção gonzaguiana é um dialeto do imaginário nordestino, assim como o "jorjamadês" é a fala de uma Bahia imaginária.
Imaginário, veja-se bem, e não mentira, porque se tratava de recriação. O zabumba, o fole das sanfonas e os passos entrecortados dos forrós são reais; real era a existência de um baião originário ("no Ceará, os cegos pediam esmola em ritmo de baião", dizia Teixeira); sempre foi real a inclemência das secas; mas realmente feliz era o vaqueiro na hora do aboio. O Polígono das Secas era, sim, o Polígono do Baião. Teixeira e Gonzaga fizeram disso tudo uma literatura cantada, que ainda hoje é engenho de emoções. "Asa Branca", obra-prima, é uma das veredas que levam ao Grande Sertão.
Eu teria 12 anos, por aí. Gonzaga, aos quarenta e poucos, estava no auge. Nunca me esqueci do concerto (eterno patrocínio do Colírio Moura Brasil) no Campo do Gado. Era noite de céu brilhante. Enluarado, Gonzaga subiu ao palanque, com chapéu de couro cru e três estrelas na aba da frente, gibão de couro, alpercatas e sanfona prateada dependurada no pescoço. O grito de louvação do povo, longo, em uníssono, fez vibrar o madeirame do palco. Como esquecer?
O aboio do grande "Lua" faz vibrar a alma nordestina, mas é toda a cultura brasileira que o inscreve na história como mito.


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