São Paulo, domingo, 20 de março de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

CRISE ÁRABE

Morrer em fogo baixo

Um novo contrato social para a Argélia
RESUMO
Após o banho de sangue da década de 90, fruto da tensão entre?resumo ativistas pró-democracia e o fundamentalismo islâmico (legitimado politicamente pelas reformas constitucionais dos anos 80), a Argélia vive uma situação singular no mundo árabe, entre o temor de mais violência e a perspectiva de revolta social que domina a região.

SMAÏL HADJ-ALI
TRADUÇÃO PAULO WERNECK

POR FALTA DE RECUO histórico, estas ideias não darão conta das acelerações da história que afetam alguns países do chamado mundo árabe. Diante de uma história ainda em curso, é preciso permanecer prudente e desconfiar dos estereótipos que reduzem esses povos a massas estanques e infensas a mudanças.

Essas precauções básicas estão, no mais das vezes, ausentes das bibliografias eurocêntricas que estruturam as análises dos "fast-thinkers", que pensam mais rápido do que a própria sombra e que produzem discursos para públicos já formatados pelos lugares-comuns.

Dito isto, seja qual for o nome desses movimentos -desterritorializados, graças à web-, qualificados como levantes, revoltas, insurreições, revoluções, eles derrubaram, num fato histórico inédito, dois autocratas "eleitos" do mundo árabe, Ben Ali (Tunísia) e Hosni Mubarak (Egito). Embora discutível, aqui a expressão "mundo árabe" evoca a realidade de uma área cultural, ligada à civilização árabe-muçulmana, tendo em comum a língua árabe e o islã.

DIFERENÇAS
Essa herança não deve, entretanto, ocultar diferenças e particularidades. Os países do Magreb são de etnia berbere, com populações berberófonas -50% no Marrocos, 30% na Argélia. Essa particularidade contribui para exacerbar as tensões socioculturais e identitárias nesses dois países. Também pesam as diferenças sociológicas e político-administrativas: laicização na Tunísia, estruturas tribais na Líbia, Estado centralizado na Argélia, monarquia hereditária no Marrocos, hegemonia do Exército no Egito.
Sem querer estabelecer uma tipologia, esses regimes, em graus distintos, apresentam total ou parcialmente as características do poder absoluto: corrupção, censura, repressão política e opressão social - 32 milhões de egípcios vivem com menos de dois dólares por dia. Cultivando a longevidade (20 a 40 anos de reinado ininterrupto), essas autocracias se reproduzem, ou tentam fazê-lo, em bases dinásticas -filhos sucedendo aos pais, ou então prometidos à sua sucessão.
A esse quadro se acrescenta, igualmente ou em parte, uma lista impressionante de práticas mafiosas e injustiças: corrupção nas esferas dirigentes, dos clãs e das famílias; desemprego galopante, aumento da desigualdade, vida precária e mal-estar de uma juventude diplomada porém desocupada -no Marrocos, 30%, na Argélia, 38%, na Tunísia, 42,5%, no Egito, 80%. Em resumo, ataques sistemáticos à liberdade pública e individual, recusa do Estado de direito, criminalização dos movimentos sociais, arbítrio e onipresença da polícia política.
Em situações intoleráveis, plenas de frustração, de humilhação, de "hogra" (desprezo), revolta e ira, bastou uma fagulha para que tudo se inflamasse. As auto-imolações, grande paradoxo, deram vontade de viver e de lutar a milhões de cidadãos desses países. Transgredindo a maldição divina que promete as chamas do inferno aos suicidas, elas abalaram os dogmas religiosos.

PRIMEIROS COMBATES
Como situar a Argélia em relação a esses movimentos? Sem procurar semelhanças quanto ao "modus operandi" desses levantes, os argelinos promoveram seus primeiros combates pela democracia e pelas liberdades populares depois dos distúrbios de outubro de 1988.
Esses acontecimentos, que vivi como testemunha e ator, foram um réquiem para 26 anos de um regime ultra-autoritário, que se valia da repressão sistemática para "resolver" conflitos e divergências. Fariam centenas de vítimas, em geral jovens, milhares de feridos e mutilados, além de submeter centenas de pessoas ao aparato repressivo do Estado: a tortura.
Sobre esse aparato, Bachir Hadj-Ali, meu pai, preso político de 1965 a 1974 e em prisão domiciliar até 1979, publicou em 1966, quatro anos depois da independência da Argélia, "L'Arbitraire" (O Arbitrário), pela editora francesa Minuit.
Nesse livro, que vazou da prisão escrito em folhas de papel higiênico, procurado pela polícia política e publicado na Argélia por seus filhos, em 1991, há uma galeria de retratos de seus torturadores e descrições dos suplícios: "Um grito de bicho, estranhamente humano, perfura as grossas paredes do porão cinzento e nos petrifica... Um alto-falante tenta cobrir os berros dos supliciados. O inferno está aceso. Está em funcionamento, e os olhos de seus servidores estão injetados de sangue".
A seus algozes e aos comandantes, ele dirá que "uma causa está perdida assim que ela é defendida pela tortura". Recusando-se a responder à barbárie com a barbárie, ele dirá, num poema escrito na prisão: "Juro sobre a angústia lenta das mulheres/ Que baniremos a tortura/ Que os torturadores não serão torturados".

EFERVESCÊNCIA
Mas voltemos a outubro de 1988. Seis meses antes que fosse oficializada a abolição do partido único, sinônimo de despotismo, uma efervescência política, intelectual, cultural e social toma o país, com o surgimento de espaços públicos de debates e lutas democráticas. Foram criados movimentos e associações, únicas no gênero, como o Comitê Argelino contra a Tortura, de cuja fundação participei.
O comitê promoveu, num contexto repressivo, um combate intransigente à tortura de Estado, que estudei num trabalho apresentado na Universidade de Argel em 1989, "A Coordenação, a Estandardização e a Massificação", em que exponho a tortura não como "herança histórica, nem acidente de percurso, nem excesso, mas como um fato político".
A aceleração histórica provocada pelo Outubro de 1988 desembocou na revisão, em fevereiro de 1989, da Constituição, instituindo o pluralismo político e a liberdade de imprensa. Esta, hoje, é limitada à imprensa escrita privada: o rádio e a TV são totalmente controlados pelo governo.
Violando a Constituição, essa revisão permitiu a legalização de um partido religioso -emanação, embora blasfematória, de Allah sobre a Terra. Em 1991, um simulacro de eleições legislativas consagrou a vitória do partido de Deus. As eleições foram anuladas pelos mesmos que haviam legalizado o partido totalitário.

FUNDAMENTALISMO
ndependentemente do simulacro, os resultados indicam a tomada da sociedade pela ideologia fundamentalista. O país mergulhou numa crise de dez anos, que faria 200 mil mortos. Hoje, os argelinos vivem às voltas com os traumas provocados pela violência generalizada e o terrorismo fundamentalista.
O fogo está incubado, todavia, sob as brasas, com milhares de microdistúrbios sociais -em 2010, foram entre 2.000 e 9.000, conforme a fonte. Milhares de jovens, os "Harraga" -"queimadores de fronteiras"-, fogem clandestinamente em embarcações da morte, rumo a um ilusório Eldorado. Eles nos dizem, como os autoimolados: "Mais vale arder em chamas do que morrer em fogo baixo".
Limitados por enquanto, esses distúrbios podem se generalizar, e a oposição nada poderá fazer. Desacreditada pela colaboração com o regime, ela tem pouquíssima influência junto à juventude. Para sair do impasse e romper com um regime igualmente sem crédito, a Argélia precisa providenciar imperativamente um contrato social e democrático. Por enquanto, apenas um estado de emergência que já durava 19 anos foi abolido. Na falta de uma resposta às aspirações da sociedade e de sua juventude -70% da população-, podemos esperar pelo pior.
É possível prever saídas para essas situações e esses levantes? A pergunta remete à problemática recorrente da transição, volta e meia qualificada, como que para exorcizar o destino, de "democrática". Ora, a história das sociedades mostra e ensina que os períodos "de transição" são fases em que nada se sabe por antecipação. Podem ser movimentos de mudança, de salto no desconhecido, ou de restauração do antigo regime.
Sua "ambiguidade particular" provém de crises durante as quais o processo histórico sofreu uma terrível aceleração, sem que fosse antecipada uma saída.
A partir de então, a transição pode se tornar uma fase aberta a todas as aventuras e incertezas. E a, quem sabe, todas as esperanças?


Texto Anterior: Ilustríssimos desta edição
Próximo Texto: Caco Galhardo
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.