São Paulo, domingo, 20 de março de 2011

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LITERATURA


Cardos e luz

Lúcio Cardoso e a tradição literária do diário íntimo

RESUMO
Fora de circulação há décadas?resumo e prestes a ganhar edição integral, os diários íntimos de Lúcio Cardoso (1912-68) são um caso à parte na literatura brasileira, ainda pouco afeita ao gênero. Centrais em sua obra e talvez mais importantes que seus romances, os diários de Cardoso têm relevância literária, crítica e biográfica. ALVARO COSTA E SILVA PAULO WERNECK "DIÁRIO COMPLETO", a obra-prima póstuma de Lúcio Cardoso, sabe-se agora, não era tão completo assim. Hoje peça de colecionador, a edição da José Olympio, de 1970, que reunia o "Diário 1" e o "Diário 2", deixou de fora grande parte das anotações íntimas do escritor.
A totalidade dos manuscritos conservados no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa será revelada na nova edição que o pesquisador Ésio Macedo Ribeiro está preparando, a sair em 2013 pela Civilização Brasileira, do Grupo Editorial Record, e que desde já se anuncia como um dos acontecimentos literários da década. Na pág. 10 da Ilustríssima, a Folha traz uma amostra do "Diário Completo" que revela inquietações amorosas de Cardoso.
Ora oblíquas, ora explícitas, elas registram as agruras de um homossexual no Brasil de meados do século 20: culpa, repressão, irrealização amorosa, fantasmas. Estão também registradas as preocupações estéticas de um escritor importante e ainda mal compreendido.
É significativo que o ponto alto de uma obra ambiciosa como a de Lúcio Cardoso seja o seu diário, gênero pouco praticado no país, sobretudo em relação à fecunda tradição que se vê na França, na Argentina ou na Inglaterra.
Nossa estante dedicada ao gênero é tão reduzida que é possível contar nos dedos os títulos mais conhecidos: os dois manuscritos deixados por Lima Barreto, "Diário Íntimo" e "Diário do Hospício"; o mexeriqueiro "Diário Secreto", de Humberto Campos, que acaba de ganhar reedição pela editora Tinta Negra; o "journal", à moda francesa, a que se dedicou Josué Montello para pôr a si mesmo num pedestal; "Tempo Morto e Outros Tempos", no qual Gilberto Freyre descreve sua mocidade; o clássico "Minha Vida de Menina", de Helena Morley; e o cultuado "Hospício é Deus", escrito por Maura Lopes Cançado durante uma de suas internações no hospital psiquiátrico Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro.

LEITORES
Por mais íntimo e confessional que seja, todo diário pressupõe leitores, ainda que a intenção de ser lido quase nunca seja explicitada por seus autores, e que volta e meia esses autores peçam a parentes e amigos que os destruam. Sempre existe a perspectiva (ou o desejo) de que o diário seja lido por quem o encontre pela frente, e é tênue a fronteira entre bisbilhotice do leitor e desejo de exposição de quem escreve.
O cronista carioca Antonio Maria sabia disso: "Tenho a impressão de que Mariinha andou lendo estes cadernos", escreveu ele em abril de 1957. "Se leu, fez mal. Isto aqui é a minha vida. É muito mais do que eu faço: é o que eu penso -o que acontece dentro de mim." O diário de Maria cobre um período curto: vai de 12 de março a 19 de abril de 1957. Foi publicado em 2002, com organização do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, pela Civilização Brasileira.
Igualmente tênue é o limite entre anotação solta, pessoal ou codificada, e o tom grave de quem quer se preparar para a posteridade. O medo de soar grandiloquente preocupava Antonio Maria: "Escrevendo estas notas, tenho que tomar um constante cuidado para não posar para elas. Seria péssimo fazer ou deixar de fazer alguma coisa, pensando no que escreveria mais tarde. [...] Outro erro em que não quero cair: o da preocupação literária. Não quero escrever bonito. Não estou visando o público nem qualquer leitor isolado. Estou escrevendo, simplesmente", anotou em março de 1957.
A gravidade não parecia assombrar o poeta Augusto Frederico Schmidt. Em "O Galo Branco" (1948), um de seus livros de memórias, que tem algo de registro diarístico, ele escreveu: "Grande desejo de dormir na relva, de repousar sem pensamentos duros, sem preocupações. Uma grande aspiração: renunciar, renunciar a tudo".

FRIEIRO
Hoje quase esquecido, Eduardo Frieiro deixou o "Novo Diário", publicado postumamente em 1986. O bibliófilo e escritor mineiro, que ajudou a geração de Carlos Drummond de Andrade a publicar seus primeiros escritos em Belo Horizonte (embora fosse refratário à estética modernista), escreveu, ao longo de 10 anos, as 4 mil páginas do seu "Diário de um Homem Secreto". Um dia, decidiu tocar fogo no material, explicando à mulher, Noêmia, que ali só havia "maldade, inconveniências, orgulho, peçonha, muita peçonha. E sobretudo muitas tolices".
O "Novo Diário" -o que sobrou do fogo- é divertidíssimo, para quem aprecia uma crueldade quando exposta apenas no papel. E atualíssimo em suas sacadas, como esta, datada de 14 de agosto de 1943, na qual a vítima é o médium Chico Xavier: "Para que buscar uma explicação sobrenatural, quando é perfeitamente natural admitir que o moço, embora quase iletrado, mas evidentemente impregnado de leituras de Humberto de Campos, nasceu com um extraordinário talento para o pastiche e o 'usage de faux'?".
Os diários de Eduardo Frieiro expõem suas contradições e sua verve algo provinciana, porém saborosa. A páginas tantas, disparava contra "uma igrejinha literária" do Rio de Janeiro, "muito presumida e mandona, que tem à sua frente o Aníbal Machado, o José Lins do Rego, a Adalgisa Nery e outros grã-finos de porta de livraria".
As implicâncias de Frieiro não eram só literárias, mas também políticas. Fernando Sabino, que se casou com a filha do governador Benedito Valadares, tendo Getúlio Vargas como padrinho, é chamado de "Fernandinho, o Príncipe Consorte". A elite política belo-horizontina é um de seus alvos prediletos -sobram farpas contra a "pampulhocracia" e o conjunto arquitetônico que o prefeito Juscelino Kubitschek contruiu às margens da lagoa da Pampulha, na capital mineira, "uma criação típica do capitalismo: obra do vício e, enfim, do capital, que o luxo fomenta e alimenta". Essas críticas, no entanto, não o impediram de aceitar o convite de JK, eleito governador em 1950, para organizar a biblioteca estadual.

VIDA PRIVADA
Complementar às abstrações da grandiloquência, outro traço frequente nesse tipo de escrito é a exposição muito concreta de fatos da vida privada que, se não tivessem sido anotados por alguém, jamais viriam a público. O diário de Antonio Maria é uma dessas verdadeiras bombas-relógio em forma de livro.
Ainda em março de 1957, ele escreve: "Veio depois o Di [Cavalcanti]. Estava bêbedo (menos que Paulinho [Mendes Campos]). Voltava de uma 'suruba' oferecida por Oscar Niemeyer aos arquitetos que vieram, da Europa, julgar o plano urbanístico de Brasília. Dez mulheres nuas. Di desenhou duas delas. Um desenho lindo, que gostaria de ter ficado com ele. Chegou, a seguir, o [Rubem] Braga. Encheu o copo, sentou e dormiu. Disse antes que sua amada estava linda, no Country".
As inconfidências nem sempre aparecem de maneira tão explícita, porém. Um exemplo saboroso é o "Diário Íntimo" de José Vieira Couto de Magalhães, alto funcionário enviado por d. Pedro 2º para negociar uma ferrovia na Inglaterra. O livro, publicado em 1998 pela Companhia das Letras, com organização de Maria Helena P. T. Machado, numa coleção de documentos sobre a história do Brasil, é mais do que um registro das atividades, preocupações e manias (como uma hipocondria radical) de um personagem importante da história brasileira.
Durante o preparo da edição, a organizadora mandou traduzir os muitos trechos em nheengatu, língua na qual o autor era um erudito. Quase todas essas passagens revelaram insuspeitadas fantasias e sonhos eróticos do autor, em grande parte com homens negros: "Eu quero fazer sexo com um mestiço, com um preto; eu falo que o membro viril do preto foi tirado de dentro". Ou então: "Ele pegava dentro o galho preto e endurecido enquanto eu também pegava seu galho dentro e estava muito alegre. Então falei para ele: Quero que amarres minha mão. - [Ao que] ele respondeu: Está bem".

CONSTRUÇÃO FICCIONAL
Além das bisbilhotices e da vaidade póstuma, o diário íntimo no Brasil faz as vezes de uma espécie de laboratório ficcional, tendo inspirado uma galeria de romances notáveis: "Memorial de Ayres", de Machado de Assis; "O Amanuense Belmiro", de Cyro dos Anjos; a trilogia "O Espelho Partido", de Marques Rebelo; "Informação ao Crucificado", de Carlos Heitor Cony; "Armadilha para Lamartine", de Carlos Sussekind; "Em Liberdade", de Silviano Santiago.
O próprio Lúcio Cardoso valeu-se do mesmo expediente em seu romance mais importante, "Crônica da Casa Assassinada" (1959). O projeto dos diários, no entanto, parece ganhar autonomia em relação a sua obra romanesca: mais do que uma chave de interpretação da obra, configura-se como um de seus pilares. Começou a escrevê-los aos 37 anos, quando já havia publicado grande parte de sua obra, sem ter recebido o reconhecimento que esperava.
O "Diário 1" e o "Diário 2" passam ao largo do pitoresco, do aforismo e do tráfico literário: segundo ele mesmo, "não são os acontecimentos que fazem um diário, mas a ausência deles". O texto seria, então, um contraponto autocrítico de sua trajetória autoral, não apenas como romancista, mas também como dramaturgo e cineasta.
Não por acaso, a primeira frase anotada no "Diário 1" refere-se a trabalho. Ou melhor, "a expectativa do trabalho", sensação, aliás, que perpassa toda a obra. Era 14 de agosto de 1949, e Lúcio Cardoso preparava-se para rodar as cenas iniciais de "A Mulher de Longe", filme que pretendia escrever, dirigir e produzir, mas que restou inacabado. O estilo atraente e a atmosfera típica do escritor não demoram a envolver o leitor: "Numa tranquila manhã, de sol violento e frio, regressando da missa numa pequena capela erguida num outeiro sobre o mar -o poder, a verdade dessa vista de cartão-postal!".
O escritor define a própria tarefa como um "diário não íntimo". Há em suas páginas depoimentos sobre o processo criativo, avaliações de futuros projetos (malogrados, na maioria), opiniões estéticas, questionamentos filosóficos sobre religião e política, observações críticas sobre leituras (como quase todo diarista, ele era um leitor de diários: Virginia Woolf, Franz Kafka, Ernst Jünger, Herman Melville e, sobretudo, André Gide e Julien Green).

BIOGRAFIA
Os diários deixam entrever os tormentos íntimos de Lúcio Cardoso com o homossexualismo e o alcoolismo, dando relevo biográfico a um trabalho cuja importância literária e crítica já era patente. Em alguns momentos, os comentários são enigmáticos. Quando menciona determinadas pessoas, opta por utilizar apenas a inicial X.
O acervo com os manuscritos de Lúcio Cardoso ficou enrolado num lençol e assim foi transferido para a casa de Maria Helena Cardoso, a Lelena, irmã do autor e também escritora. O quebra-cabeça de folhas soltas permaneceu desorganizado até a doação à Casa de Rui Barbosa, iniciada em 1972, em várias etapas.
A catalogação só seria concluída em 1989.
"Eu acredito que os diários de Lúcio diferem de todos os outros já escritos no Brasil pela coragem de exposição apresentada neles, ainda que em muitos momentos seus comentários sejam enigmáticos", diz o organizador da edição, Ésio Macedo Ribeiro, às voltas com o autor desde 1985. Ele também cuidou da edição crítica da poesia de Cardoso, que se encontra no prelo pela Edusp.
Para o cronista José Carlos Oliveira -ele próprio autor do "Diário Selvagem", outro belo exemplar do gênero, de texto violentíssimo-, a obra de Lúcio Cardoso, assim como seu nome, era "feita de cardos e luz". Os diários iluminam elementos essenciais para a compreensão dessa obra que, composta de romances estranhos, com personagens possuídas, continua até hoje mal interpretada. Mas também deixam à vista os espinhos e os pelos da erva daninha, incontáveis a cada página, e na sua definição do ato de escrever: "Um modo de agonizar de olhos abertos".
O escritor não conseguiu produzir a coleção de diários que pretendia, em cinco volumes. Em 1962, sofreu um derrame cerebral que o deixou hemiplégico e afásico- não pôde mais escrever, nem sequer ditar, pois só conseguia grunhir. Até 1968, quando um segundo derrame o matou, dedicou-se a desenhar e a pintar, com a mão esquerda.
"Diário Completo" abre-se com o "Diário 1" (publicado em 1960, ainda com o autor vivo) e conclui-se com o "Diário 2" (organizado postumamente por Octavio de Faria), cobrindo o período que vai de 1949 a 1962.
A nova edição, cujo título será apenas "Diários", vai comportar os dois livros anteriores; os textos dispersos publicados em periódicos, como "Diário Proibido" (que saiu na revista "Senhor"), "Diário de Terror", "Pontuação e Prece", "Confissões de um Homem Fora do Tempo" e "Diário Não Íntimo"; e ainda os que permanecem inéditos, como o "Livro de Bordo", e as páginas que dão continuidade ao "Diário Completo" (acrescidas de cerca de 25% de material).

ARGENTINA
Além de pequena, a produção brasileira não tem tradição, se comparada, por exemplo, à da Argentina, onde os diários são mania de escritores. Basta lembrar Adolfo Bioy Casares, que registrou meio século de vida literária em seus cadernos. As entradas em que Jorge Luis Borges era o ator principal deram origem ao monumento "Borges", que ultrapassa as 1.600 páginas na edição da Destino, de Barcelona. Invariavelmente, os relatos abrem com a seguinte frase: "Come em casa Borges", uma espécie de mantra da amizade entre os dois escritores.
Na cola de Bioy Casares, está Ricardo Piglia, que mantém um diário desde 1957, do qual a Ilustríssima está publicando um trecho mensal, durante seis meses. Outro romancista argentino, Alan Pauls, que também tem o seu, é um estudioso do gênero, tendo publicado em 1996 o livro "Como se Escribe: El Diario Íntimo", em que analisa a turma da pesada: Franz Kafka, Robert Musil, Katherine Mansfield, Bertolt Brecht, Virginia Woolf, Ernst Jünger, John Cheever, Cesare Pavese, Witold Gombrowicz, Roland Barthes. A tese de Pauls é a de que o grande tema do diário íntimo no século 20 é a doença, ou seja, "a descrição crua, clínica, de uma mutação".
Doutor em letras pela PUC-Rio, Sérgio Barcellos defendeu a tese "Escritas do Eu, Refúgio do Outro: Identidade e Alteridade na Escrita Diarística", na qual apresenta hipóteses para a tímida ocorrência de diários no Brasil. Segundo ele, a questão remonta ao século 16: a partir da contrarreforma religiosa, toda prática que representasse um recolhimento do sujeito representava um risco para a Igreja Católica, que investia na coletividade. A individualidade e a introspecção eram vistas com maus olhos na Espanha e em Portugal, onde apenas os membros da realeza mantinham diários.
Ainda segundo a tese de Barcellos, na França o diário se tornou comum pela sua utilização como instrumento pedagógico. As instituições prescreviam às jovens moças a manutenção de um caderno em que seria analisado seu processo intelectual e sua "retidão moral". Quer dizer, sob a capa edificante, era na verdade uma ferramenta de vigilância. Na Inglaterra, a história é outra. A revolução industrial gerou a popularização das agendas que, somadas à tradição protestante, se transformaram em diários, mantidos por indivíduos de várias camadas sociais.


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