São Paulo, domingo, 20 de março de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

CRÍTICA

O indizível

Traduzir Homero é uma epopeia

Coletânea de hinos homéricos e estudo sobre as relaçõ?resumoes entre hinos gregos e hindus trazem contribuições para os estudos helênicos e suscitam reflexões a respeito da poesia oral, das aproximações e distanciamentos da cultura grega em relação a outras tradições, como a ameríndia, e dos limites e potenciais da tradução poética.

DONALDO SCHÜLER

Hinos homéricos? A "Ilíada" e a "Odisseia" são homéricas pela mesma razão. Os gregos costumavam inventar autores para fenômenos de origem desconhecida. Assim foi com a chuva, os raios, os trovões, os abalos sísmicos, a guerra, a ira, a morte, o amor... Os gregos poetizaram montes, mares, vales, rios, sentimentos e composições literárias, poetizaram o mundo e a vida. Surgiram narrativas de ação bélica e de aventuras marítimas que se assemelhavam no metro, no ritmo, no uso das palavras, no jeito de narrar.
Como saber quem os compôs, se circulavam em palácios e reuniões festivas, cantadas por aedos inventivos que, inspirados pelas Musas, não se sentiam obrigados a seguir literalmente enredos recebidos? O parentesco os subordinou a um autor comum, Homero, tão mítico e tão verdadeiro como o chefe de deuses e homens. Sete cidades disputavam sua naturalidade. Indagar pela historicidade de Homero significa projetar preocupações de agora sobre as origens.

CORDEL
A literatura oral brasileira navega nas mesmas águas. O cordel nordestino atribui a um misterioso Zé Limeira poemas surrealistas. Ouvi dizer em Campina Grande: "Todos fazemos versos de Zé Limeira."
Os procedimentos da literatura oral e da literatura escrita não são os mesmos. Não estamos autorizados a privilegiar textos escritos: calculados, corrigidos, reescritos.
A inventividade poética das epopeias e dos hinos atribuídos a Homero é confirmada pelo impacto que exerceram sobre a literatura ocidental até os nossos dias.
Oportunas são as traduções e os estudos feitos por um conjunto de professores respeitados, num livro editado pela Unesp, "Hinos Homéricos - Tradução, Notas e Estudo" [574 págs., R$ 79], organizado por Wilson Alves Ribeiro Jr. O texto grego, ao lado das traduções e de ensaios críticos apoiados em observações próprias e numa ampla bibliografia da melhor qualidade, enriquecem a edição.
Os ensaístas se propõem a examinar a mitologia grega num amplo contexto cultural, que inclui a nossa literatura oral indígena. A comparação responde a uma dúvida muitas vezes formulada: em que a mitologia grega é superior à tupi-guarani?
Não há privilégio. Sendo o mito um diálogo do homem com o mundo, cada povo cria mitologias que ostentam indagações peculiares. Porque as culturas pré-colombianas não tiveram o amparo da escrita para registrar a produção de seus vates, os mitos indígenas se dissolvem como o perfume na brisa da tarde. Heroica é a batalha dos que lutam para preservar sombras do que já foi.
Percebe-se na obra a imagem de Claude Lévi-Strauss. O antropólogo atribuía a estruturas intemporais semelhanças em elaborações míticas histórica e cronologicamente distantes. Sejam esses ou outros os motivos, as aproximações feitas pelos pesquisadores de Araraquara são convincentes. Helenistas de outras gerações costumavam sublinhar o que distinguia os gregos; com muita propriedade, aponta-se agora o que vincula concepções gregas a modos de dizer e pensar em outras culturas.
O estudo sobre Deméter atrai pela abundância de informações. As autoras -Maria Lúcia G. Massi e Sílvia M. S. de Carvalho- localizam o canto no tempo, associam religião e política, aproximam culto, zoologia e botânica, detêm-se em acuradas análises etimológicas, ressaltam os mistérios eleusianos, comparam a mitologia grega com a oriental e a indígena, analisam a elaboração hínica dos conflitos de Deméter e de sua acidentada filha.

APOLO
Surpreende que o livro reserve duas páginas ao deus que vaticinava em Delfos, anexas ao hino menor a Apolo, omitindo atenção ao grande (546 versos) e complexo hino a Apolo (do tamanho de um dos cantos das epopeias homéricas), deus que, no início do século 5º a.C., eclipsava o brilho de Zeus. Apolo ocupa lugar de destaque na historiografia de Heródoto; está no centro das preocupações de Píndaro, o maior dos líricos gregos; fascina tragedistas da importância de Sófocles e filósofos do porte de Heráclito e Platão; e recebe de José Marcos Macedo em "A Palavra Ofertada - Um Estudo Retórico dos Hinos Gregos e Indianos" [Ed. Unicamp, 408 págs., R$ 48]tratamento privilegiado.
Palavra ofertada é a do poeta à divindade homenageada em troca de benefícios recebidos. Embora a oferta não se reflita na tradução em prosa, as análises de ritmos e sonoridades fundamentam possíveis exercícios de recriação.
José Marcos, não contente com o exame amplo dos hinos da antiguidade grega, busca ecos da elaboração helênica na poesia hindu. As notórias rupturas na ode pindárica mostram-se bem mais acentuadas nos hinos hindus. Rupturas na construção poemática seriam suficientes para afirmar a hipótese de uma unidade indo-europeia literária além da inquestionável unidade linguística? O autor demora-se no exame de vários procedimentos retóricos.
Ao assinalar o caráter arcaico de certos recursos, o autor cautelosamente silencia a hipótese de origem comum. A análise bem fundamentada e cuidadosamente elaborada merece aplauso.

TRADUÇÃO IMPOSSÍVEL
Em nota introdutória a "Hinos Homéricos", Wilson A. Ribeiro Jr., editor e organizador do livro, observa que a tradução é feita em versos livres e que "é muito difícil, quiçá impossível, reproduzir poeticamente, em português, as obras versificadas em grego antigo". Ora, traduzir obras literárias é impossível em qualquer língua.
Haroldo de Campos -exímio tradutor da "Ilíada"- costumava sustentar o paradoxo de que só o texto intraduzível merece ser traduzido. Recrie-se o intraduzível. Obrigue-se a língua portuguesa a dizer o que nunca disse. Assim, o tradutor leva o texto traduzido a falar em outra língua, em outra época, em outro lugar, com outras maneiras de poetar.
Mais adiante, afirma Wilson que os tradutores tentaram reproduzir o texto "sem qualquer pretensão poética". Convenhamos, se não houve pretensão poética não há verso livre. Verso livre não é qualquer coisa nem coisa qualquer. Verso livre tem metro, tem vigor, tem sonoridade. Poetas nossos criaram versos livres de alta categoria. Versos de Fernando Pessoa e Drummond, ágeis, inventivos e livres, ascendem à categoria dos intraduzíveis.
A língua portuguesa tem hinos notáveis. Aprenda-se a cantar em português para dar entoação nossa aos hinos homéricos, entre eles, alguns de notória beleza.

AFRODITE
No hino "A Afrodite", Flávia R. Marquetti traduz "pollá" como "em grande número". Em lugar de uma palavra grega, três em português. Deficiência do português? Por que não dizer "numerosos" (fala-se de pássaros e de feras). Com muita frequência, exalta-se gratuitamente a economia grega. Uma sugestão à primeira vista: "a numerosos nutrem a terra e o mar". Tradução de Flávia: "que a terra nutre em grande número tanto quanto o mar". Remeto a escolha a quem nos lê.
Outro exemplo, verso 92: "-Salve, ó Soberana que vem (não seria "vens"?) a esta minha morada, qualquer que sejas dentre os bem-aventurados". O pretenso verso livre é tão grande que não cabe na largura da página. "Qualquer que sejas dentre" traduz o minúsculo "tis". Pobreza da língua portuguesa? Outra proposta improvisada: "Bem-vinda à minha casa, Senhora! Quem és? És imortal?"

EFEITOS SONOROS
Quando abordamos a tradução de "A Apolo" (Maria Lúcia G. Massi/Sílvia M. S. de Carvalho), sentimos poesia: "Zeus frui-raios" soa bem, "braços brancos", também. Chegados ao verso 84, surpreende-nos "Atesto agora isto". No grego: "isto nyn tade". A sonoridade preservada, aliada a uma palavra com outro sentido, merece aplauso. Poderíamos pensar em "atesto pois isto", "agora" quebra o ritmo.
Mereceria atenção o nascimento de Apolo. Não deveríamos dar maior atenção a efeitos sonoros como os que ocorrem nos versos 14 e 15 do grande hino "A Apolo" em que o ritmo se apoia em "k"? Se, em lugar de "k", elegêssemos "p" em português, teríamos algo assim: "Salve, Leto bendita, por parires o par: /Apolo potente e Ártemis frecheira". O original joga com "mákair'", "tekes", "tékna", "ánakta". Por que não brincar com parires, par, Apolo, potente?
Divergências à parte, "Hinos Homéricos" é um livro que merece ser lido e consultado.
Se as observações feitas aos dois volumes não forem impertinentes, somadas a inúmeras outras já feitas e por fazer, poderão levar a novas reflexões. O diálogo entre autores e leitores deverá robustecer os estudos helênicos, florescentes no Brasil.


Texto Anterior: História: Fascismo à portuguesa
Próximo Texto: Diário de Los Angeles: Cinema de arte
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.