São Paulo, domingo, 22 de maio de 2011

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LITERATURA

O urso

As cartas de Bellow e o diário de Stendhal



RESUMO
Em novo excerto de seus diários (leia os anteriores em folha.com/ilustrissima), o escritor argentino narra a visita de um urso ao campus de Princeton; reflete sobre a literatura e tradução; descreve suas aulas de boxe; e quebra o silêncio sobre o polêmico suicídio de um colega de universidade, após demissão sumária.


RICARDO PIGLIA
TRADUÇÃO PAULO WERNECK


TERÇA
Viram um urso no bosque, ao lado de uma baixada, não longe daqui. Era uma mancha entre as árvores, uma névoa no ar. Se abriu devagar e apareceu num descampado, na margem da Mountain Avenue. De pé sobre duas patas, alterado pelo ruído dos automóveis, com um brilho assassino nos olhos, mexeu-se em círculos e, por fim, se afastou na direção da mata. Ele me fez lembrar do urso de um circo ambulante que se instalou num terreno baldio, nos fundos da minha casa, em Adrogué, na Argentina, quando eu era pequeno. Fiquei horas observando pela cerca de ligustro. Preso por uma corrente, ele também andava em círculos, e, às vezes, eu o escutava rugindo na noite.
O circo encerrava a função com um espetáculo teatral. As obras eram adaptações de peças folclóricas e radionovelas populares. Os atores pediam móveis emprestados à minha mãe para fazer o cenário. Quando assisti à representação, as poltronas de madeira clara do jardim de casa, que apareciam no cenário, me impediram de acreditar no que via. O urso vagabundeando pelos arredores do campus me produziu o efeito inverso.

QUARTA
Estou lendo "Letters", de Saul Bellow. Escritas entre 1932 e 2005, dá para ver essas cartas como a história de um escritor que constrói -ou inventa- sua própria tradição. Bellow é o primeiro tradutor de Isaac Bashevis Singer para o inglês (o conto "Gimpel the Fool", traduzido por ele, foi publicado na "Partisan Review", em 1953), mas se distancia do retrato realista das vítimas (os "schimazl") e os cinzentos homens derrotados da tradição judaica à la Bernard Malamud. "Em alguma parte do meu sangue judeu e imigrante há claras pegadas de dúvida sobre se tenho ou não direito de ser um escritor", diz Bellow. O momento de ruptura foi "As Aventuras de Augie March" (1953), onde encontra sua voz e descobre que não tem por que se forçar a escrever "seguindo as regras do nosso querido 'establishment' branco, anglo-saxão e protestante, como se eu fosse um inglês ou um colaborador da 'New Yorker'".
O herói de seu grande romance é um intelectual: o que importa não é como a realidade constrói a consciência dos personagens, mas como a consciência dos personagens define -e dá forma- a essa realidade. "Herzog" é o ponto mais alto nessa linha.
Entre nós, o que realiza essa operação de ruptura é Roberto Arlt: escrevia contra a tradição central e, por isso, inaugura um novo modo de fazer literatura. Sua filha, Mirta Arlt, o definiu com clareza: "Meu pai era amigo de Güiraldes, que era um senhor janota, mas meu pai não tinha nenhuma aspiração de se parecer com os janotas que, no fundo, ele depreciava. Entre outras coisas, porque os janotas não achavam que um filho de imigrantes pode ser um escritor, e sim um agente penitenciário".

QUINTA
Comecei a ir ao ginásio. A categoria no boxe não se define pela idade, mas pelo peso. Fui um welter (66 kg), mas agora sou peso-médio (72 kg). Os que treinam aqui são meninos de 14 ou 15 anos, que se preparam para os "Golden Gloves".1
Alguns, no entanto, vêm fortalecer o braço para os lançamentos de bola rápida de beisebol. Praticam o "jab" e o direto contra o saco de areia, e exercitam o impulso do ombro e o giro do corpo para poder lançar a bola a cem milhas por hora sem se arrebentarem. A rotina de exercícios segue o ritmo das lutas: três minutos de treinamento rigoroso e um de descanso.
O instrutor é um velho cubano exilado que diz ter sido campeão peso-pena nuns remotos campeonatos socialistas de boxe em Moscou. Mulato e muito tranquilo, é admirador de Kid Gavião e Ray Sugar Leonard. No pugilismo, diz, o estilo depende da vista e da velocidade, quer dizer, do que ele chama, "cientificamente", a visão instantânea.
Todos suspeitam que vim aqui para escrever uma matéria sobre os ginásios e me contam suas histórias. Vários dizem serem conhecidos da romancista Joyce Carol Oates, que escreveu um bom livro sobre boxe e, a quem, com simpatia, chamam de Olívia, por ser parecida com a mulher do Popeye.

SEXTA
Releio o "Journal", de Stendhal. Lembro da visita à biblioteca de Grenoble, com Michèle Lafont. Nos porões, tive acesso ao original do Diário. A encarregada dos manuscritos era uma figura stendhaliana, uma mulher séria e atraente, de um erotismo gelado, que trouxe o caderno sobre uma almofada de veludo vermelho. Precisei vestir um par de luvas de látex branco para poder tocar as páginas, enquanto sentia a respiração da dama francesa às minhas costas.
Stendhal acompanha com desenhos e esboços as cenas que narra em seu diário. Conta sobre um jantar com amigos e, depois, faz um croqui minucioso da sala e da disposição dos comensais sentados à mesa. Tinha uma imaginação espacial, cartográfica. Basta recordar a panorâmica do povoado de Verrières no início de "O Vermelho e o Negro".
Anota no Diário, em 23 de agosto de 1806: "Eis aqui a razão pela qual acredito ter algum talento: observo melhor do que ninguém, vejo mais detalhes, vejo com mais justiça, inclusive sem necessidade de fixar a atenção". O diário de Stendhal, outro exercício de "visão instantânea".

SÁBADO
A primeira tradução de "Dom Quixote" para o chinês foi obra do escritor Lin Shu e de Chen Jialin, seu ajudante. Como Lin Shu não conhecia nenhuma língua estrangeira, seu ajudante o visitava toda tarde e lhe contava episódios do romance de Cervantes. Lin Shu o traduzia a partir desse conto. Publicada em 1922, com o título "A História de um Cavaleiro Louco", a obra foi recebida como um grande acontecimento na história da tradução literária na China.
Seria interessante traduzir para o castelhano essa versão chinesa do Quixote. De minha parte, gostaria de escrever um conto sobre as conversas entre Lin Shu e seu ajudante, Chen Jialin, enquanto trabalham na transcrição imaginária do Quixote.

DOMINGO
O suicídio de Antonio Calvo, encarregado do ensino de língua espanhola na Universidade Princeton, produziu uma comoção na comunidade acadêmica. Três dias antes de sua trágica morte, Calvo foi demitido pela administração, que não só decidiu pela suspensão imediata de suas aulas sem dar nenhuma explicação, como enviou um segurança para bloquear o acesso ao seu escritório, como se tratasse de um vagabundo perigoso.
Para tomar sua decisão, as autoridades utilizaram as observações e opiniões dadas em algumas das cartas de avaliação pedidas pela administração a estudantes e colegas de Calvo. O que está em jogo nesse penosíssimo acontecimento não é o conteúdo dessas cartas -que habitualmente circulam nos processos de avaliação, multitudinárias e kafkianas-, mas o modo de as ler. Nos dez anos de trabalho de Calvo na universidade, não houve um só fato que justificasse essa decisão: tratou-se basicamente de uma questão de interpretação de metáforas, ditos e estilos culturais. Os acadêmicos encarregados de ler as cartas atuaram como aquele camponês do conto clássico que interrompe uma peça de teatro para avisar o herói de que está em perigo. Antonio Calvo era um jovem intelectual espanhol, formado nos debates da transição democrática em seu país. Nada explica um suicídio, mas nada explica a decisão arrogante dos encarregados de julgar colegas que pertencem a tradições culturais diferentes das que predominam na academia norte-americana.
Se os heróis das tragédias clássicas pagavam com a vida a compreensão equivocada da palavra oracular, na atualidade, são outros os que leem tendenciosamente os textos que cifram os destinos pessoais. O significado das palavras -diria um dos discípulos de Wittgenstein que abundam no campus- depende de quem tenha o poder de decidir seu sentido.

SEGUNDA
O pianista que mora em frente, do outro lado da rua, ensaia todas as tardes a última sonata de Schubert. Avança um pouco, para, recomeça. Sensação de uma janela que demora a se abrir. Hoje eu o vi, de pé, em frente a seu carro, com o capô levantado, em estado de quietude. De vez em quando, inclinava-se e ouvia o som do motor funcionando. Voltava a se erguer e persistia, imóvel, em sua indecifrável e tranquila espera.

Nota do tradutor
1. Competições amadoras


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