São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2010

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REPORTAGEM

Um gaúcho em NY

Como a CIA salvou a pele de Brizola

RESUMO
Documentos recém-descobertos revelam a iniciativa do governo Jimmy Carter para impedir a prisão ou sequestro do então ex-governador exilado no Uruguai Leonel Brizola, que pediu asilo político e chegou a Nova York com apoio da diplomacia americana e da CIA em setembro de 1977.

GRACILIANO ROCHA

Documentos secretos do Itamaraty, localizados no Arquivo Nacional pelo historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, aos quais a Folha teve acesso, revelam uma operação relâmpago montada pelos Estados Unidos para impedir a prisão ou o sequestro do então ex-governador do RS Leonel Brizola (1922-2004) durante o exílio no Uruguai, nos anos 1970. Os documentos podem ser consultados em folha.com/ilustrissima.
A ação de Washington para salvar Brizola, um dos mais visados opositores da ditadura brasileira (1964-85), ocorreu em setembro de 1977 e foi coordenada pela Embaixada dos EUA em Montevidéu. O enredo inclui a concessão de asilo político a toque de caixa, pernoite em Buenos Aires num provável apartamento secreto da CIA (Central Americana de Inteligência) e escolta por agentes americanos em tempo integral, para assegurar a chegada do líder trabalhista a Nova York.
Os detalhes da viagem aos EUA, após a expulsão pelo regime militar uruguaio, jamais foram revelados por Brizola. Ele afirmava que, encurralado pelo ultimato para deixar o Uruguai, resolvera "testar" a política de direitos humanos do governo Jimmy Carter (1977-81) pedindo asilo à embaixada.
Os documentos encontrados por Moniz Bandeira, que é professor aposentado do departamento de história da Universidade de Brasília e autor do livro "O Governo João Goulart - As lutas sociais no Brasil (1961-64)" (Ed. Unesp), revelam que a iniciativa partiu dos americanos, que procuraram Brizola em maio de 1977, pelo menos três meses antes da expulsão.

MALA DIPLOMÁTICA O emissário dos americanos foi o asilado brasileiro Paulo Cavalcanti Valente, sobrinho do ex-deputado da UDN-RJ Tenório Cavalcanti.
Segundo um dos documentos, um relatório produzido por arapongas brasileiros que monitoravam os exilados em Montevidéu, Valente recebia cartas pela mala diplomática dos EUA. Foi encarregado de articular uma reunião entre o ex-governador e diplomatas americanos na capital uruguaia.
Carimbado como "secreto", o informe número 242/77 do Ciex (Centro de Informações do Exterior) do Ministério das Relações Exteriores, datado de 24 de junho de 1977, informa que no mês anterior Valente recebeu a correspondência de um funcionário da embaixada chamado "Clayton ou Clipton".
Em Brasília, o documento foi distribuído à chefia do SNI (Serviço Nacional de Informações) e aos órgãos de inteligência militar. Dizia que a reunião talvez só se realizasse depois da chegada do novo embaixador americano ao Uruguai. O posto estava vago desde 22 de abril de 1977, quando Ernest Siracusa deixou o país, e foi preenchido em agosto, quando Lawrence Pezzulo entregou suas credenciais ao governo do Uruguai.

EXPULSÃO No dia 15 de setembro, Brizola foi chamado ao Ministério do Interior uruguaio e recebeu a notificação da expulsão. Tinha cinco dias para deixar o país. A Folha localizou em Belo Horizonte o jornalista Carlos Olavo da Cunha Pereira, 87, amigo de Brizola no exílio e a primeira pessoa a quem o ex-governador contou sobre a expulsão naquela noite.
Na manhã seguinte, uma sexta-feira, Brizola recorreu aos americanos. Seu pedido de asilo foi concedido em menos de 72 horas, segundo Pereira.
Na segunda-feira (19), informado do sinal verde do governo Carter, surgiu novo problema: sem voos diretos do Uruguai para os EUA, Brizola e a mulher, Neuza, deveriam fazer uma escala no Brasil ou na Argentina para pegar uma conexão para Nova York.
A situação era crítica, segundo Pereira: se pisasse no Brasil, Brizola seria preso; o mesmo podia acontecer na Argentina, então governada pelo general Jorge Rafael Videla. A ditadura argentina (1976-1983) era uma das mais implacáveis na caça a opositores, dos quais 30 mil até hoje são considerados desaparecidos.
Buenos Aires era um dos lugares mais perigosos do mundo para exilados esquerdistas porque também era palco de execuções políticas atribuídas à Operação Condor, aliança das ditaduras sul-americanas para eliminar opositores. Entre as vítimas do terror portenho estão o ex-ministro chileno Carlos Prats, morto num atentado a bomba em 1974, antes da implantação da ditadura; os ex-congressistas uruguaios Zelmar Michelini e Hector Gutiérrez Ruiz e o ex-presidente da Bolívia Juan José Torres, eliminados em 1976.
"Havia o temor de que a Triple A pudesse tentar alguma coisa contra o Brizola", relembra Pereira. A Triple A, ou Alianza Anticomunista Argentina, era um esquadrão da morte de extrema-direita.

"APARELHO" DA CIA Coube a Carlos Olavo Pereira e Juan Carlos Mintegui procurar o consulado argentino e pedir autorização para que Brizola pudesse passar por Buenos Aires sem ser preso. O pedido foi negado no mesmo dia.
Com a negativa, Pereira e Mintegui bateram à porta da embaixada americana. Conversaram com um diplomata cuja identidade Pereira disse não se lembrar e que estava cuidando do "caso Brizola" porque o então embaixador Law-rence Pezzulo viajava aos EUA.
"Quando explicamos que o governo argentino informou que Brizola seria preso se pisasse em Buenos Aires, ele [o diplomata americano] deu uma risada e disse: 'Pode ficar tranquilo porque ele vai conosco, e nós vamos com ele'", relatou Pereira à Folha.
O casal Brizola viajou até a capital argentina escoltado por seguranças americanos, segundo Pereira, no dia 20. Em vez de ir a um hotel, pernoitaram num apartamento na Calle Uruguay, 534, de acordo com um telegrama da embaixada brasileira para o Itamaraty às 15h45 do dia 21 de setembro.
O endereço do apartamento onde ficou hospedado foi fornecido aos brasileiros pelo Side, o serviço secreto argentino. A correspondência também informava que, por volta das 13h do dia 21, o casal foi transferido para um hotel nas imediações do aeroporto internacional de Ezeiza.
Para o historiador Moniz Bandeira, o governo americano preferiu levá-lo a um apartamento secreto, e não a um hotel, por razões de segurança. Segundo ele, "os serviços de inteligência, particularmente a CIA, mantêm, em alguns países e em certos casos, apartamentos de segurança".
O telegrama das 15h45 informava ainda que Brizola e a mulher embarcariam num voo da companhia Braniff com destino a Nova York às 20h, com escalas em Santiago do Chile e Miami.
No dia 22, a Embaixada do Brasil na Argentina mandou outro telegrama para Brasília, informando que "ao último instante Leonel Brizola e seus acompanhantes deixaram de embarcar no voo da Braniff". Optaram por um voo da Aerolíneas Argentinas, Buenos Aires-NY sem escalas, possivelmente para evitar a passagem pelo Chile de Pinochet (1915-2006), segundo a interpretação dada pelo serviço secreto do Itamaraty. Brizola chegou aos EUA no dia 22.

RECADO PODEROSO A operação para salvar a pele de Brizola espanta porque ele sempre integrou a lista dos adversários de Washington. Quando governador do Rio Grande do Sul (1959-63), o caudilho nacionalizou as empresas americanas ITT e a Bond & Share.
Também liderou a campanha da legalidade que garantiu a posse do vice-presidente João Goulart, seu cunhado, quando Jânio Quadros renunciou em 1961. Três anos depois, Jango cairia num golpe militar apoiado pelos americanos.
Pesavam também as relações que o ex-governador teve com a luta armada -em particular com o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário). Grupos guerrilheiros ligados a Brizola participaram de treinamentos em Cuba. Um embaixador cubano chegou a acreditar que o ex-governador tinha chances de liderar uma revolução no Brasil nos moldes da liderada por Fidel Castro em 1959.
As explicações para o empenho americano em garantir sua segurança abrangem desde a mudança de relações entre ditaduras do continente e os EUA ao desgaste do governo Ernesto Geisel (1974-79) com a Casa Branca.
Moniz Bandeira acredita que a relação Washington-Brasília se deteriorou após os brasileiros firmarem o acordo nuclear com a Alemanha e reconhecerem, em plena Guerra Fria, os governos de inspiração marxista de Angola e Moçambique, em 1975. Segundo ele, a distância aumentou quando o Brasil apoiou a classificação do sionismo como racismo na ONU e pôs fim ao acordo militar Brasil-EUA, estabelecido em 1952.
Para Jair Krischke, conselheiro do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, a operação para salvar Brizola simbolizou o compromisso do governo Jimmy Carter com a agenda de direitos humanos, em contraponto aos anos Richard Nixon (1969-74), de apoio automático às ditaduras anticomunistas. "A proteção e o asilo ao Brizola foi um recado poderosíssimo do presidente Carter de que a política em relação às ditaduras do Brasil e dos demais países havia mudado", disse Krischke.
Após a Lei da Anistia (1979), Brizola voltou ao Brasil e foi eleito duas vezes governador do Rio de Janeiro (1983-87 e 1991-94).


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