São Paulo, domingo, 24 de julho de 2011

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PERFIL

Paisagismo beat

Pioneiro da pop art, Ed Ruscha fotografa "On The Road"

RESUMO
O pintor e fotógrafo Ed Ruscha fez de sua obra o correspondente pictórico da estética beatnik, que tem no romance "On the Road", de Jack Kerouac, sua obra-prima. Mais de cinco décadas depois de chegar de carro à Califórnia, ele volta ao universo de Kerouac e celebra a vida na estrada em exposição e livros conceituais.

Ed Ruscha
O óleo "Burning Gas Station" (posto de gasolina em chamas), de 66

FERNANDA EZABELLA
FOI COM UMA MALA velha, algum dinheiro no bolso e um amigo do lado que Edward Ruscha partiu em seu primeiro carro, um Ford sedã 1950, rumo à Route 66. Aos 18 anos, deixava para trás a casa dos pais, na provinciana Oklahoma City, com destino a Los Angeles, aonde chegou 2.139 km e três dias depois. Começava ali, no Chouinard Art Institute, não apenas sua vida de estudante de fotografia e pintura mas também a de pioneiro da pop art e da arte conceitual.
Para o jovem Ruscha (pronuncia-se ru-chei), aquela viagem iniciática se repetiria ao longo dos anos, quando ele ia visitar a família ou saía de férias com amigos. As marcas da mítica Route 66 se multiplicaram em seu trabalho: insinuam-se entre os flagrantes de desolação colhidos para o primeiro de seus muitos livros conceituais, "Twentysix Gasoline Stations" (26 postos de gasolina), de 1963 -o mesmo ano de sua primeira individual-, e nas paisagens de carros, letreiros e horizontes coloridos.
"As estradas americanas mudaram dramaticamente", observa Ruscha, 73, em entrevista por telefone à Folha, com a fala mansa curtida num sotaque que entrega suas raízes do Meio-Oeste -região que abriga, além do Oklahoma da juventude, seu Nebraska natal. "Nos velhos tempos, você podia realmente pegar carona, levantar o polegar, ser apanhado por alguém e levado por aí. Não dá para fazer isso hoje numa auto estrada. É uma cultura que se foi."
Tal intimidade com o asfalto fez com que o anúncio de seu novo projeto soasse quase como um "déjà-vu": montar uma edição ilustrada do clássico beat "On the Road" (na tradução brasileira de Eduardo Bueno, "Pé na Estrada"), que Jack Kerouac (1922-69) publicou em 1957.

BITUCAS E AUTOPEÇAS As páginas do livro ganham agora cerca de 50 fotografias em preto e branco, algumas tiradas por Ruscha, outras por fotógrafos contratados ou pesquisadas em arquivos. No rastro do narrador Sal Paradise, ele clicou a famosa torta de maçã com uma bola de sorvete, obsessão do alter ego de Kerouac, além de uma infinidade de autopeças e bitucas de cigarro espalhadas pelos acostamentos.
Um dos 350 exemplares da edição especial estará exposto até outubro no Hammer Museum, em Los Angeles. Além de dezenas de páginas emolduradas, ali estão seis pinturas e dez desenhos, realizados entre 2008 e 2010. As obras estampam frases de impacto, reminiscência da marca registrada do artista no auge da pop art: telas que representavam apenas monossílabos em letras estilizadas, como "Honk", "Boss" e "Smash".
Desta vez, as mensagens são longas, não raro irônicas, e foram tiradas de "On the Road". Os iniciados logo acusarão o DNA kerouaquiano em "Na Califórnia, chupa-se o suco das uvas e cospe-se a casca fora, realmente uma luxúria", ou em "O vigarista sagrado começou a comer".
Esses dizeres, citados aqui na tradução de Eduardo Bueno, constituem o que Ruscha chama de "declarações com uma certa temperatura". "Essas passagens do livro me acharam, como acontece com outros trabalhos, de forma espontânea. Pintá-las é meio que oficializá-las, fazê-las reverberar para fora do livro", diz o artista.

VERNÁCULO Para o curador-chefe do Hammer, Douglas Fogle, as obras de Kerouac e Ruscha dialogam desde sempre. "De muitas maneiras, durante toda a sua carreira, Ruscha ofereceu um corolário artístico para o retrato linguístico que Kerouac fazia da paisagem americana, dando uma forma visual concreta para a poesia do nosso vernáculo estradeiro", diz.
Ruscha não chegou a conhecer William Burroughs (1914-97), mas cruzou o beatnik-mor numa exposição em Nova York, e fez um desenho para Allen Ginsberg (1926-97) quando este o visitou em seu ateliê, no distrito de Venice, em Los Angeles. Ambos são personagens de "On the Road", sob os codinomes respectivos de Old Bull Lee e Carlo Marx. O livro está virando filme (ainda sem previsão de estreia) pelas mãos de Walter Salles.
"Sempre achei que o livro era parte da história americana e que era inevitável investigá-lo, explorá-lo", afirma Ruscha. Ele é de uma geração que ainda guarda na memória a expansão da malha rodoviária nos EUA e da produção automobilística em larga escala, ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
O crítico de arte Michael Auping, curador de "Road Tested", uma exposição de Ruscha realizada no Texas neste ano, reconhece nessa temática e no imaginário em torno dela os elementos definidores da produção de Ruscha.
"A cultura do carro existia para valer naquela época", diz. "Então, a arte de Ruscha é sobre o que você vê, quase que de forma abstrata, quando está dirigindo por aí. Diz respeito ao que você nota nas ruas, nas estradas." Para Auping, a influência de Ruscha em Los Angeles foi superior à de Andy Warhol (1928-1987) nos anos 60 e 70.

SUPER-REALISTA Ruscha é uma figura alta e robusta, de pele bronzeada e cabelo branco. Dificilmente passa despercebido -mesmo entre os jovens bem-cuidados da cinematográfica Los Angeles. Diz não ligar para os rótulos de artista pop ou conceitual, duas categorias quase opostas. "Estou mais para artista pop ou... [pausa] Bem, você pode me chamar de algo super-realista também. Só não venha me chamar de cubista ou expressionista abstrato", tenta se definir, antes de soltar uma risada.
Em cinco décadas de pintura, Ruscha lançou mão de materiais como flores, alimentos e gordura, fez experimentos em outros suportes, como vídeos e instalações, e alongou as inicialmente breves palavras pintadas em grandes quadros, por ele apelidados de "ready-mades".
No caminho, exaltou sentenças enigmáticas, como "Ele não se importou e nem ela", "Areia na vaselina" ou "Gritando em espanhol", mas não perde tempo tentando classificar essa produção como "pinturas de palavras ou pinturas com palavras". "Não penso em significados linguísticos ou interpretações poéticas", diz.
Foram os tais "quadros falados" que o levaram a fazer parte da "New Painting of Common Objects" (nova pintura de objetos comuns), exposição de 1962 em que seu trabalho dividiu as paredes do Pasadena Art Museum com os de Warhol, Roy Lichtenstein (1923-97) e Wayne Thiebaud. A mostra, mais tarde, seria considerada a primeira do movimento da pop art.
Com os anos, Ruscha acentuou sua veia popular, enquadrando com uma paleta crepuscular o letreiro de Hollywood e símbolos de estúdios de cinema, além de retratar postos de gasolina em chamas.
Ao mesmo tempo, e talvez paradoxalmente, não parou de editar seus livros conceituais, em que reunia coleções de fotografias de prédios ("Every Building on the Sunset Strip", 1966), estacionamentos ("Thirtyfour Parking Lots in Los Angeles", 1967) ou piscinas ("Nine Swimming Pools and a Broken Glass", 1968).
"Gosto de pensar que o sol da Califórnia queimou todos os elementos desnecessários em seu trabalho", brinca o diretor David Lynch, morador da mesma cidade.

RODEADO PELO CAOS Hoje, Ruscha se mantém distante das novas tecnologias, como computadores e celulares, e afirma jamais ter pisado numa cafeteria Starbucks, instituição de toda urbe americana que se preze. Como nunca antes na vida, produz sem parar e organiza exposições nos EUA e na Europa. Em 2012, ocupará os quatro andares do museu austríaco Kunsthaus.
"Não paro para me questionar o que me faz trabalhar tanto. É parte de mim. A ideia de o artista ter um mundo particular em seu estúdio sempre me atraiu. Gosto de ficar rodeado por este caos", diz.
O prestígio também aumenta, mesmo que ele ainda não alcance em leilões os números estratosféricos reservados a um Warhol, por exemplo. O recorde de Ruscha é de US$ 6,9 milhões (R$ 10,8 milhões) pela tela "Burning Gas Station", contra os US$ 71 milhões (R$ 111 milhões) de Warhol pelo silkscreen "Green Car Crash".
Em 2009, Barack Obama escolheu dezenas de obras de museus de Washington para decorar a Casa Branca. Na encomenda havia um Ruscha, "I Think I'll..." (eu acho que vou...), repleto de frases indecisas como "talvez... sim" e "pensando bem...". O presidente voltou ao trabalho do artista em 2010, ao presentear o primeiro-ministro britânico, David Cameron: optou pela litografia "Column with Speed Lines". (Em troca, Obama ganhou uma obra de Ben Eine, grafiteiro londrino.)
Ironicamente, o artista que cresceu transformando em ícone carros e estradas há poucos meses precisou deixar o estúdio que ocupou por quase 30 anos em Venice. O terreno foi desapropriado pela prefeitura para dar lugar a um estacionamento. Ruscha agora trabalha em Culver City. Ele lamenta: "Doeu. Meu estúdio era a céu aberto, tinha árvores. Gostava muito de lá."
De todo modo, ficar parado no mesmo lugar não parece combinar com Ed Ruscha, cuja vida, desde aquela viagem iniciática de 1956, vem se misturando ao universo de "On the Road". É ele quem diz: "O enredo, sobre gente inquieta e sempre em movimento, acabou virando a minha história".
E conclui: "Peguei muita carona na vida, sempre gostei de estar na estrada, de ver outras cidades. É realmente onde tudo começou para mim."

"A ideia de o artista ter um mundo particular em seu estúdio sempre me atraiu. Gosto de ficar rodeado deste caos", diz Ruscha, que expõe em Los Angeles"

"Marcas da 66th Route se multiplicariam em Ruscha: insinuam-se na desolação de seus postos de gasolina e nos quadros de carros, letreiros e horizontes"

"A arte de Ruscha é sobre o que você vê, quase que de forma abstrata, quando está dirigindo por aí", explica o curador Michael Auping"

"Na visão do curador Douglas Fogle, "Ruscha ofereceu um corolário artístico para o retrato linguístico que Kerouac fazia da paisagem americana"


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