São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Lefort, coluna ausente

Cidade do México, 1985

JOÃO ALMINO

AO LER A NOTÍCIA da morte de Claude Lefort (1924-2010), lembrei-me de breve introdução à sua obra que escrevi em 1985 para a revista mexicana "Vuelta", de Octavio Paz. Nela, afirmei o que agora repito: que ele é uma "coluna ausente" (referência a um livro dele sobre seu mestre Merleau-Ponty).
Vivi no México entre 1982 e 1985. Havia defendido minha tese com Lefort em 1980 e continuava em contato com ele. Conversava com Paz sobre Lefort e também Cornelius Castoriadis. Paz conhecia melhor o pensamento deste último, mas mostrava-se interessado pela obra de Lefort, na época em que preparava "Tiempo Nublado". Quando, em 24 páginas datilografadas, chegou um texto de Lefort para a "Vuelta", Paz me convidou, por meio de um dos membros do conselho editorial da revista, o escritor Alberto Ruy Sánchez, a escrever a nota introdutória. Na época, nenhum livro de Lefort havia sido publicado na América Latina, à exceção de dois no Brasil.
Claude Lefort foi o grande pensador daquilo que chamou de revolução democrática, uma revolução radical e sem fim, sempre capaz de expandir as fronteiras do possível. A sociedade democrática, sociedade sem corpo, marcada pela indeterminação e pelas divisões sociais, está sempre em busca de seu próprio fundamento.
Os direitos humanos também são criação permanente, respondendo a novas circunstâncias, necessidades e percepções. Numa democracia, ninguém pode aprisionar a liberdade nos sentidos já adquiridos. As chamadas liberdades "formais" não são apenas formais, pois sem liberdade de expressão e de organização não se pode nem mesmo falar em sociedade.
A liberdade de opinião, por exemplo, é uma liberdade de relação e de comunicação. Os direitos do homem não estão circunscritos aos interesses da sociedade burguesa, pois o que está investido nesses direitos é uma luta real contra a opressão. Na sociedade democrática, onde esses direitos podem ser exercidos, a condição do novo não é apenas, portanto, a conquista do poder do Estado.
Na democracia, para Lefort, o poder -"lugar vazio"- não pertence a ninguém, nem mesmo ao povo, sobretudo não ao povo identificado com o "um", a figura do líder ou o partido -imagem do totalitarismo.
Avesso às modas intelectuais, leitor de Maquiavel, de Marx e de Tocqueville, fiel à esquerda, Lefort não aderiu ao liberalismo ou ao neoliberalismo, nem advogou a passividade, tomando partido sobre os acontecimentos políticos mais relevantes de seu tempo.
Era a política que movia seus escritos? A leitura daquele texto que enviou a "Vuelta" não deixa dúvida que sua interrogação é a de um filósofo preocupado com a atualidade e com a aventura do pensamento, para quem existe autonomia para a esfera do político. Por isso, seu pensamento vai no sentido contrário do tecnicismo e do economicismo que tem dominado setores da política contemporânea.
Na introdução de "Tiempo Nublado" (1983), livro que poderia, em parte, ser lido como texto de filosofia política, Paz fez questão de dizer que ali expunha apenas o testemunho de um poeta. De fato, não era sua intenção decifrar com rigor os signos do novo ou analisar em profundidade as origens do totalitarismo, como fez Lefort, mas estava interessado, como este, em repensar a democracia e, também como ele, percebia a ilusão revolucionária e a insuficiência reformista, a necessidade de liberar as lutas sociais, bem como de reconhecer a pluralidade, a fragmentação e a heterogeneidade dos processos de socialização.
No texto enviado a "Vuelta", Lefort confessava que seu interesse pela filosofia nascera do desejo de ser escritor, à espera de seu objeto, desejo que a filosofia fixou, transformando-o. Paz e Lefort, portanto, tinham também isso em comum: com estilos distintos, a paixão pela escrita.
Essa paixão explica, na carta que me dirigiu quando recebeu a nota introdutória de "Vuelta" (que lhe fora enviada pela própria revista), que Lefort tenha se referido à "sensibilidade à maneira" como ele tenta "pensar e escrever", "que me é", nas suas palavras, "infinitamente preciosa".


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