São Paulo, domingo, 25 de julho de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Conduzindo Mr. Boxer
Rio de Janeiro, 1986

LAURA DE MELLO E SOUZA

NO DIA 1º. DE DEZEMBRO DE 1986, Charles Ralph Boxer [1904-2000] desembarcou no Rio de Janeiro pela última vez. O historiador britânico tinha 82 anos, era antes alto, os olhos meio oblíquos, quase transparentes de tão azuis, os cabelos ralos brancos como pasta de algodão.
Surgiu empurrando o carrinho de bagagem, meio esgafunhado após a travessia longa, mais inglês que "fish & chips" no seu paletó azul riscado de branco, camisa branca com um quadriculado azul bem fininho e uma gravata vistosa espalmada no peito, azul-marinho com leões amarelos.
Deu um abraço efusivo em Francisco de Assis Barbosa, que com Marcelo de Ipanema e eu tinha ido buscá-lo no aeroporto do Galeão. Por uma semana, minha vida ficou suspensa, as filhas pequenas reclamando que eu tivesse de tomar conta de um senhor idoso e não delas. Naquela época, diferente de hoje, um octogenário era um Matusalém, e se sentia assim.
Boxer vinha para receber a medalha Dom Pedro 2º, que, antes de o ser a ele, fora concedida pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a Von Martius, Varnhagen, Roquette Pinto, Capistrano de Abreu. Parece que haviam designado para acompanhá-lo um jovem diplomata que adoeceu.
Francisco de Assis Barbosa, um dos organizadores da empreitada, me ligou aflitíssimo, lhe ocorrera que eu pudesse quebrar aquele galho, sendo historiadora e falando inglês razoavelmente, pois, naquela altura da vida, o português de Boxer, o maior especialista na história do Império Português dos séculos 15 a 18, ia sumindo. Tão ou mais importante era saber dirigir e se movimentar no Rio de Janeiro: tinha que levá-lo e buscá-lo no hotel Glória, fazer sua agenda, marcar encontros com os amigos, acompanhá-lo nas pequenas compras que quisesse fazer.
Chegou alegre e risonho, apesar de uma dor de dentes. Foi logo dizendo que queria se encontrar com José Honório Rodrigues, Marcos Carneiro de Mendonça e Eulália Lamayer, e perguntou, sem sombra de ironia, pelo "velho Astrogildo de Ataíde", Austregésilo na verdade, presidente da Academia Brasileira de Letras e, na época, não muito mais velho que ele.
Com o passar dos dias e dos encontros, foi murchando, inconformado e meio perplexo ante os estragos que o tempo fizera nos amigos. José Honório tinha sofrido um derrame e Marcos, ótimo para seus noventa e poucos anos -afinal marcara época como goleiro do Fluminense-, ele não reconheceu de imediato.
Frustrou-se ainda com uma excursão mal-sucedida à floresta da Tijuca, quando não conseguiu localizar o túmulo de Hogendorpe, general de Napoleão que ali viveu com uma negra, plantando café.
Das várias solenidades, almoços, recepções, ele me pareceu curtir mesmo um jantar com Eulália Lamayer, mulher interessantíssima e bonitíssima. Tinham mil lembranças e histórias para contar, tomaram suas caipirinhas, riram até tarde, eu prestando atenção em cada palavra, quieta com meu copo d'água, bom motorista nunca bebe em serviço.
Tinham me pedido que o entrevistasse, perguntasse coisas de sua vida. Ele não deu muita entrada, sempre cortês e um pouco distante, me tratando, invariavelmente por "Doña Laura", apesar da idade para ser meu avô. Exibiu-me um cruzado de ouro, moeda do tempo de dom Pedro 2º de Portugal, que costumava carregar na carteira a cada viagem para o Brasil. Falou da guerra, do ferimento no braço esquerdo, do Japão, que ele adorava, "o paraíso dos homens e o inferno das mulheres".
Gostava de expressões antigas, repetia ser "rico de queixumes e pobre de capitais", "muito velho e achacoso", e, ao terminar as refeições, recitava um ditado português: "Depois de cear, mil passos dar". Reclamava um pouco da memória, que continuava perfeita, dizia, para a lista dos vice-reis da Índia e do Brasil nos séculos 16, 17 e 18, mas incapaz de registrar o nome dos ministros britânicos daquela década.
Voltou como veio: sozinho, a empurrar sua pequena bagagem, após agradecer muito a minha atenção, louvando a capacidade que demonstrara em organizar sua agenda e driblar o trânsito do Rio, que já era ruim. Nunca mais o vi.


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