São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O lugar escuro

Peça em um ato

SOBRE O TEXTO
A lenta degradação de uma mente comprometida pelo mal de Alzheimer e suas consequências nas relações familiares são o tema da peça "O Lugar Escuro", de Heloisa Seixas. A peça é uma adaptação da própria autora para seu livro homônimo (Objetiva, 2007). Terá leitura dramática por Fernanda Montenegro, Clarice Niskier e Laila Zaid nesta terça-feira, dia 27, às 20h, no Midrash Centro Cultural (midrash.org.br), no Rio de Janeiro, com direção de João Fonseca e curadoria de Joice Niskier

HELOISA SEIXAS

PERSONAGENS: A VELHA, a Mulher e a Jovem (avó, mãe e filha).
Cenário: no ponto central do palco, a sala de jantar de um apartamento de classe média. Ao fundo, num espaço atemporal, imaginário, três "caixas", ou redomas, onde as três personagens se colocarão para fazer suas narrações extracena.

(trecho)

Jovem - Por que você não me conta uma história? Por exemplo: aquela de como a mamãe quase nasceu na maca.
Velha - Na maca?
Jovem - É, na maca. Na sala de espera do hospital. Aquela história de que o seu parto foi tão rápido que o médico só teve tempo de calçar uma luva.
Velha - (sorrindo, como quem recorda): Foi mesmo... O médico ficou apavorado! Depois, ele me disse que eu tinha tido dilatação silenciosa. Foi o nome que ele deu. Dilatação silenciosa. Foi por isso que eu não senti dor nenhuma. Nada, nada. Mas também, se tivesse sentido, eu teria aguentado...
Jovem - (franzindo o rosto, parecendo duvidar): Não doeu nada mesmo? Nem um pouquinho?
Velha - Não. Nada, nada. Dor nenhuma.

Luz na Mulher. A Velha recomeça seu caminhar.

Mulher (encarando o público, com uma raiva contida) - É mentira! (sussurra, entre dentes) Mentira que ela não sentiu dor! Dizia isso só pra contar vantagem, ficar se vangloriando! Quando chegou a minha hora de ter filho, fiz questão de ter parto normal, sem anestesia, queria tudo muito natural. Achava que meu parto ia ser como o da minha mãe, que não ia doer nada... Hum! Pois sim! Doeu pra burro, quase desmaiei de tanta dor! E ela ali do lado, sorrindo pra mim e dizendo:"Não é possível, minha filha, não pode estar doendo tanto assim..." Acho que ela fez isso só pra me humilhar, pra mostrar que era melhor do que eu! Toda aquela coragem que ela demonstrava era mais do que orgulho...
Velha (enfática) - Minhas costas são largas!
Mulher - Aquela capacidade de suportar a dor, aquela bondade excessiva, aquele desprendimento... eram na verdade uma espécie de tirania.

Som de violino.

Jovem (pensativa, narrando) - A vovó sempre foi uma pessoa alegre... Era animada, gostava de dançar, adorava uma festa, tinha paixão por Carnaval. E co-zinhava como ninguém...
Mulher - Minha mãe sempre foi uma pessoa feliz. Não teve maiores problemas, a verdade é essa. Mas valorizava muito as poucas coisas que tinham dado errado em sua vida. Por exemplo, seu casamento. Se alguém ouvisse minha mãe falando de como se separou do meu pai, pensava que ela tinha sido a mulher mais sofrida do mundo. Ela tinha uma espécie de... apego à dor.
Velha (sustando o passo, com ar orgulhoso) - Eu é que sei.
Mulher - Tinha um prazer masoquista em repisar aquela ferida, contando e recontando os mínimos detalhes da história.
Velha (parando de caminhar) - De uma hora para outra, meu mundo desabou. Nunca desconfiei de nada. Até que um dia, sem mais nem menos, ele me contou que estava apaixonado por outra, que não podia mais viver sem ela. "Ela é o ar que eu respiro", disse pra mim.
Mulher - "Ela é o ar que eu respiro". Essa frase, como tantas outras, povoou meu imaginário durante décadas. Ela me assombrava.
Velha - Mas fui forte. Não fiz nada pra obrigar ele a ficar comigo. Virei e disse: "A porta da rua é a serventia da casa". E ele foi embora. Perdi o amor da minha vida. (recomeça a caminhar)
Mulher - Quando papai saiu de casa, minha mãe se entregou a seu calvário. Para começar, se sentia envergonhada, porque nesse tempo quase ninguém se separava. Havia uma preocupação muito grande, da parte dela, com "o que iam pensar na Bahia", onde viviam seus parentes. Não queria que eles soubessem. Mas isso era só uma faceta da grande dor da minha mãe. O pior era ter sido abandonada.
Velha (com ar perdido) - Abandonada?
Mulher - Abandonada pelo marido.
Jovem (com ar perplexo) - Abandonada?! Como abandonada, se ela mesmo contava que depois da separação ele nunca saía de lá?

Mulher entra na cena principal (personificando a Velha no passado) e começa a arrumar a mesa, com muito cuidado e critério. Estende primeiro uma toalha de renda, depois põe um arranjo de flores ou frutas no centro da mesa.

Jovem (também entrando na cena, personificando a mãe quando era jovem) - Papai vem almoçar?
Mulher - Claro! Hoje é domingo, esqueceu?
Jovem - Ah...
Mulher - Daqui a pouco ele está aí. Estou acabando de picar as verduras da salada.
Jovem - Salada outra vez?
Mulher - Seu pai não vive sem salada. Comprei uma travessa nova, de cristal, toda cheia de divisões... Ainda não mostrei para fazer surpresa. Assim eu posso arrumar as verduras combinando as várias cores, das mais escuras para as mais claras, assim, sabe? Como se fosse um arco-íris. Fica bonito.

A Jovem ouve em silêncio. Depois se afasta e volta a narrar.

Jovem - Ela ficava horas preparando aqueles pratos. E fazia tudo com tanta dedicação que o amor parecia escorrer da ponta dos dedos...
Velha (com ar sonhador) - Tudo lindo, tudo combi-nando.
Jovem - Dali a pouco, ele chegava (luz sobre um homem de costas, ao fundo do palco, parado; pode também ser só uma silhueta). Entrava com naturalidade, sem qualquer cerimônia, como se estivesse vindo do clube ou de uma visita a um amigo. Um marido que, depois de uma saidinha matinal, voltasse para almoçar em casa. Instalado no sofá, começava a conversar, enquanto botava para tocar seus discos prediletos: as valsas de Strauss, as sonatas de Chopin tocadas por Arthur Rubinstein...

Som de violino.

Velha (aos poucos, o ar sonhador se transforma) - Tudo lindo, tudo combinando.
Jovem - Mas uma coisa destoava, sempre. A certa altura, depois de acabado o almoço, ele se levantava. Era hora de ir (o homem vira de lado, baixa a cabeça).
Velha (com aflição crescente) - Tudo lindo, tudo combinando.
Jovem - Ele nunca dizia "preciso ir pra casa". Sempre estava indo ver um amigo, resolver um problema, qualquer coisa. Menos ir "pra casa". Como se não pudesse assumir que morava em outro lugar. Talvez quisesse evitar que aquilo parecesse um... (o homem sai do palco sem olhar para trás; o público não vê seu rosto)
Velha - Abandono! Ele me abandonou, sim... Não confie nos homens, minha filha. Homem não presta!

Som de violino.

Jovem (narrando): Li no jornal que fizeram uma pesquisa nos Estados Unidos e descobriram uma relação entre o Alzheimer e a solidão. As pessoas que se dizem solitárias têm mais chance do que as outras de desenvolver a doença.
Mulher - Mamãe sempre carregou consigo, como um manto, o luto pela separação do meu pai. Um luto sem morte, talvez pior, porque a morte é uma dor acabada. Uma dor limpa.
Velha - Sou viúva de marido vivo.
Jovem - A pesquisa dizia que não eram só as pessoas solitárias, mas também aquelas que sofreram alguma perda, da qual nunca conseguiram se recuperar.
Velha - Eu perdi o amor da minha vida. Eu é que sei.


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