São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2010

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POESIA

A dupla arte de traduzir poesia

Hughes e Eliot para crianças

RESUMO Dois expoentes da poesia em língua inglesa -T.S. Eliot e Ted Hughes- têm livros de poe-mas para crianças lançados no Brasil. Os dilemas habitualmente enfrentados na tradução poética, amplificados pelo desafio de atender o público adulto e infantil, são analisados pelo poeta e tradutor Paulo Henriques Britto.

PAULO HENRIQUES BRITTO

Como se não lhes bastasse a riquíssima tradição das "nursery rhymes" (rimas populares infantis), muitos poetas de expressão inglesa costumam escrever para crianças. Dois livros de poesia infantil inglesa que acabam de sair no Brasil em caprichadas edições bilíngues são de autoria de nomes importantes da literatura anglófona: T.S. Eliot (1888-1965) e Ted Hughes (1930-98).
Eliot publicou apenas um livro para crianças, clássico imediato que, anos depois, foi adaptado para o teatro musical, obtendo um sucesso estrondoso que teria deixado o autor tão perplexo quanto deliciado: com o título "Cats", ficou 18 anos em cartaz na Broadway e 21 em Londres. Já Hughes, talvez mais conhecido no Brasil por ter sido casado com a poeta norte-americana Sylvia Plath, publicou vários livros para crianças; mas "Marco, o Barco" tem lugar ímpar em sua vasta obra.
O livro de Eliot, "Os Gatos" ["Old Possum's Book of Practical Cats", trad. Ivo Barroso, ils. Alex Scheffer, Companhia das Letrinhas, 112 págs., R$ 34], é uma coletânea de poemas soltos, de formas variadas, todos tematizando gatos, exibindo um humor grotesco nonsense que muitos leitores terão dificuldade de associar à imagem um tanto sisuda de Eliot.
Embora cada poema tenha estrofação e esquema rímico próprios, o ritmo predominante é o anapéstico -um pé que consiste em duas sílabas átonas seguidas de uma tônica (como em "There are FAN-cier NAMEs if you THINK they sound SWEET-er", em que as sílabas acentuadas estão em maiúsculas). Na língua inglesa, esse metro é associado a gêneros menos "sérios": a poesia infantil, o verso humorístico nonsense, os "limericks" obscenos ou escatológicos. No livro, abundam as referências culturais britânicas: a rainha Vitória, ruas e bairros londrinos, trens.
Traduzir esses poemas não é tarefa fácil. O tradutor é pressionado em dois sentidos contrários: por um lado, num livro destinado a crianças é preciso evitar notas de rodapé e referências obscuras; por outro, numa obra de Eliot, não há como não levar em conta as expectativas do público de poesia séria, que dificilmente aceitará soluções que tenham o efeito de transformar a tradução numa adaptação livre.
Ivo Barroso resolve o impasse com o jogo de corpo que é a marca do tradutor inteligente: ao mesmo tempo que substitui por equivalentes locais as referências que poderiam causar estranhamento no leitor infantil, evita descaracterizar o clima essencialmente inglês da obra. Para citar apenas um poema, em "Gogó: o Gato Ator", nomes de personalidades do mundo teatral britânico que certamente não seriam reconhecidos no Brasil, como Irwing e Tree, são substituídos pelos de Ziembinski e Marineaux; as referências a Shakespeare, porém, são mantidas.
O tradutor dribla as dificuldades criando engenhosas associações, como a menção à Gata Borralheira (personagem que, em sua versão inglesa, não tem associação com gatos) e a alusão à "Gata em Teto de Zinco Quente" de Tennessee Williams. Barroso exerce sua liberdade, sem jamais destoar do espírito do original nem se afastar da letra do texto mais do que uns poucos versos.
A única ressalva diz respeito ao poema final, "Cat Morgan Introduces Himself", em que o eu lírico é um gato cuja fala ostenta as marcas do dialeto popular londrino. Aqui Barroso poderia ter ousado mais, "sujando" a fala do "Gato Alípio" com uma ou outra concordância heterodoxa, ou um encontro consonantal estropiado. A única tentativa de se desviar da norma culta -a utilização de "após-sentei" em lugar de "aposentei"- parece artificial e não convence.
Quanto à métrica, cônscio de que inexiste em português a associação entre ritmos ternários e o humor "nonsense" que é típica da poesia inglesa, Barroso permite-se utilizar metros diferentes -o alexandrino, o decassílabo, o octossílabo- e por vezes versos longos, mais frouxos, porém sempre com senso rítmico infalível. Por exemplo, em "O Último Pulo de Zaragato", o tradutor utiliza com excelente efeito um verso derramado que se divide sempre em dois hemistíquios, cada um com sete sílabas (o hemistíquio é cada uma das partes em que se divide um verso).
Jamais descuida da rima, fundamental em poesia infantil, e sabe utilizá-la como recurso cômico.
Com texto de Ted Hughes e ilustrações de Jim Downer, "Marco, o Barco" ["Timmy the Tug", trad. Alípio Correia de Franca Neto, Cosac Naify, 46 págs., R$ 45] tem uma história curiosa, contada em detalhes pelo ilustrador num posfácio. Hughes escreveu este poema narrativo nos anos 50, para acompanhar as ilustrações feitas por Jim Downer, que o poeta conheceu quando os dois foram morar no mesmo prédio em Londres.
Downer escreveu uma historinha em versos acompanhada por desenhos, para convencer a namorada de que seria um pai exemplar. Mostrou o caderno para Hughes, que aprovou os desenhos e delicadamente deu a entender que os poemas podiam ser melhorados, oferecendo-se para refazer o texto; Downer emprestou-lhe o caderno e Hughes jamais o devolveu, sempre alegando que os poemas não estavam prontos, até que os dois perderam contato.
Recentemente, a viúva de Hughes encontrou o caderno com os desenhos e poemas, localizou Downer (que, aos 80 anos, continua casado com a antiga namorada, a quem acabou não mostrando o projeto), e o livro enfim saiu, mais de 50 anos após sua concepção.
"Marco, o Barco" pertence a uma linhagem bem diversa à de "Os Gatos". O poema de Hughes -que, se tivesse sido publicado na época em que foi escrito, teria sido sua primeira obra para crianças- é uma singela história em versos, uma aventura vivida por um objeto inanimado antropomorfizado: um barco de rio que rompe suas amarras, se aventura em alto-mar e, após algumas peripécias, salva a vida de uma barca-fêmea ameaçada por uma tempestade.
O tom é ingênuo; não há aqui espaço para a inventividade verbal e o ludismo formal que caracterizam a poesia nonsense. Após uma quadra inicial, o poema assume um formato que persiste até o fim: estrofes de cinco versos, de ritmo predominantemente anapéstico (porém com muitas liberdades), em que o primeiro, o terceiro e o quarto versos têm quatro pés e os outros têm três, rimando segundo o esquema abbab.
O tradutor brasileiro optou por um título em conformidade com o espírito essencialmente vocálico do português, que rima em vez de aliterar, contrastando com o consonantalismo do inglês. Autor de ótimas traduções de dois clássicos da poesia narrativa inglesa, "A Balada do Velho Marinheiro" de S.T. Coleridge (Ateliê Editorial, 2005) e "O Flautista de Manto Malhado em Hamelin", de Robert Browning (Iluminuras, 2009), Alípio Correia de Franca Neto trabalha aqui com um texto de valor literário bem mais modesto. Ao abordá-lo, porém, é o mais fiel possível ao sentido literal do texto, sem deixar de observar, de forma mais ou menos estrita, o padrão formal escolhido. Sendo o inglês um idioma mais conciso que o português, pois nele a maior parte das palavras mais comuns tem uma ou duas sílabas, faz-se necessário um metro mais espaçoso. Na estrofe usada por Franca Neto, os versos de número um, três e quatro têm quase invariavelmente 12 sílabas, e os outros dois têm normalmente dez sílabas, mais raramente oito; o esquema de rimas do original é reproduzido.
As rimas por vezes parecem menos destacadas do que no original, não só por serem os versos mais longos mas também porque, se no texto inglês quase sempre o final de cada verso coincide com uma pausa, o que reforça o efeito da rima, na tradução temos frequentes "enjambements" (quando uma frase é partida em dois versos, como "Ele tem rodas, como podem ver. O fato / é que hélices são meios contemporâneos"). Só nas duas estrofes iniciais ocorrem três.
Mas a fidelidade ao sentido do texto, neste poema em particular, é mesmo essencial; pois, como se lê na capa, trata-se de "uma história em cores" e "uma história em rimas": como a cada ilustração correspondem uma ou duas estrofes, é importante que o texto acompanhe de perto os desenhos, que são criativos e ousados.
O traço de Downer é geometrizante, e as figuras, delimitadas por fortes contornos em preto, ostentam duas ou três cores diferentes por desenho. A nitidez da reprodução do caderno original é tamanha que se veem claramente as manchas causadas pelo tempo, e por um instante tem-se a impressão de que o barbante que prende as folhas é real. O livro, uma pequena obra de arte, há de fascinar até mesmo crianças pequenas demais para ler o texto sozinhas.

"O poema de Hughes é uma singela história em versos, uma aventura vivida por um objeto antropomorfizado: um barco de rio que rompe suas amarras e se aventura em alto-mar"


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