São Paulo, domingo, 27 de junho de 2010

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PERFIL

Sobrevivente do bangue-bangue

Greg Marinovich, fotógrafo

Kevin Carter
A polêmica e premiada foto de Kevin Carter no Sudão, em 1993

RESUMO Premiado com o Pulitzer pelas imagens que registrou nos últimos anos do apartheid, o fotógrafo sul-africano Greg Marinovich fala à Folha das cenas de violência que presenciou durante o regime segregacionista em Johannesburgo. Também relembra os colegas do "Clube do Bangue-Bangue", grupo de fotógrafos do qual fez parte. JOSÉ GERALDO COUTO

NO FINAL DE SETEMBRO DE 1990, A POLÍCIA do regime segregacionista do apartheid irrompeu no escritório da AP, a lendária agência de fotos norte-americana Associated Press, em Johannesburgo. Procuravam o fotógrafo Sebastian Balic, bem como as fotos que ele havia tirado alguns dias antes, uma delas em especial: a que mostra um homem bem no centro do enquadramento, numa tentativa de agachar-se ou levantar-se, envolvido por um halo de chamas alaranjadas e azuis, típicas da combustão de gasolina. Aparecem também duas outras pessoas: uma delas golpeando-o com um facão; a outra era ainda um menino.
A polícia alegava querer as fotos e o depoimento do fotógrafo para poder identificar os algozes daquele homem que ficou conhecido como "tocha humana". A crueza da cena era inédita nos jornais americanos e europeus, que costumam evitar chocar os leitores com fotos de violência extrema. Não foi o caso da foto da "tocha humana", que, distribuída pela AP, ganhou as páginas dos jornais e assim informou ao mundo a gravidade da tragédia que se desenrolava a cada dia nos bairros negros de Johannesburgo.
Sebastian Balic sumiu do mapa, para não ser forçado a prestar depoimento; a AP o enviou para Londres e, em seguida, para Belgrado, onde outras guerras cruentas, as dos Bálcãs, geravam trabalho para fotógrafos como ele.
Alguns meses depois, em abril de 1991, a foto da "tocha humana" ganharia o mais importante prêmio do fotojornalismo mundial: o Pulitzer. E Sebastian Balic, na verdade um iniciante, entrou para a elite do fotojornalismo mundial -mas atendendo por seu nome verdadeiro, Greg Marinovich.

CLUBE Marinovich fez parte do "Clube do Bangue-Bangue", grupo de jovens e intrépidos fotógrafos que, todos os dias, se embrenhavam nas zonas conflagradas do bairro de Soweto, em Johannesburgo, para documentar o fogo cruzado entre os partidários do Congresso Nacional Africano (CNA), em sua maioria da etnia xhosa, e os simpatizantes do Inkhata, o partido radical dos zulus, insuflado pela minoria branca racista para solapar a transição para a democracia plurirracial.
Dos quatro membros originais do "clube", Ken Oosterbroek morreu baleado num confronto e Kevin Carter se matou. Gary Bernard, uma espécie de quinto elemento do grupo, também cometeu suicídio. Sobraram Marinovich (ferido quatro vezes) e João Silva, que registraram a saga no livro "O Clube do Bangue-Bangue" (trad. Manoel Paulo Ferreira, Cia. das Letras), que em maio teve sua versão cinematográfica apresentada no Festival de Cannes.
Dirigido por Steven Silver, sul-africano radicado no Canadá, o filme apresenta, no papel de Marinovich, o americano Ryan Phillippe, de "Gosford Park" (Robert Altman) e "A Conquista da Honra" (Clint Eastwood). O fotógrafo acompanhou as filmagens, realizadas no bairro de Soweto e nas favelas de Thokoza e Alexandra.
"Foi difícil voltar a certos lugares", diz ele. "A gente fica amarrado às emoções para sempre. A primeira morte que você presencia é que nem o primeiro amor."

ABUTRE Marinovich se comove sobretudo ao lembrar de Kevin Carter, o amigo que se matou em 1994, aspirando a fumaça do escapamento de seu carro, três meses depois de também ter conquistado o Pulitzer pela célebre foto de um abutre espreitando uma criança famélica do Sudão.
"Essa foto foi decisiva na crise que levou Kevin ao suicídio", afirma Marinovich. Na época, a imagem suscitou um acirrado debate sobre a ética do fotojornalismo. Carter foi acusado de pensar só na foto e deixar a criança desamparada, em vez de levá-la até um lugar seguro. Limitou-se a espantar o abutre. "Não sei se ele agiu certo, pois eu não estava lá. O João Silva, que estava, acha que a criança não corria perigo de fato."
Marinovich diz ter falado com pessoas que trabalharam no Sudão; segundo elas, a mãe tinha ido buscar ajuda, alguém levou a criança para o posto de assistência. "O que o Kevin deveria ter feito? Para o bem dele próprio, o melhor teria sido pegar a criança e levá-la até onde fosse cuidada, de modo que o coração dele, Kevin, pudesse ficar em paz."
"Se alguém precisa de ajuda, eu ajudo. A única pergunta é: devo fotografar ou ajudar primeiro? Eu não sou uma câmera, sou uma pessoa", diz ele. "O problema é se você vai ajudar alguém em detrimento de fazer o seu trabalho. A foto em si é uma ação, é um modo de interferir na realidade."

ADRENALINA Além das drogas e do álcool, problemas recorrentes entre os fotógrafos que vão para a linha de frente, a adrenalina que o corpo libera em situações de perigo pode ser viciante. O mesmo acontece também com soldados, paramédicos, policiais, paraquedistas. "É parte do prazer do trabalho", explica Marinovich.
O que levou aquele jovem que nem bem se iniciara no jornalismo a se meter numa cena conflagrada como a de Soweto? "Éramos rapazes brancos de classe média, protegidos em nossos bairros, em nossas casas. O que sabíamos? Nada." Segundo ele, nos anos 70, "tudo era orquestrado, organizado e oculto": "A brutalidade era escondida. Mas a gente suspeitava que havia algo errado".
Foi a mesma curiosidade que levou esse filho de croatas a viajar em 1991 para a zona de conflito na Bósnia, onde conheceu a jornalista austríaca Heidi Rinke, que viria a ser sua primeira companheira. Hoje, Marinovich está casado com a sul-africana Leonie, com quem tem dois filhos.
Aparentemente curado do vício da adrenalina, o fotógrafo diz que não cobre mais guerras, terremotos, situações de violência extrema ou desgraça explícita. Como assim? Em sintonia com a estabilidade democrática de seu país, Marinovich estaria se acomodando a uma vida burguesa, colhendo os louros dos anos de trabalho duro que o tornaram uma estrela do fotojornalismo mundial?
Longe disso. Ele está envolvido em dois grandes projetos interligados de jornalismo multimídia. O Twenty Ten é um projeto temporário montado para a Copa do Mundo, para produzir conteúdo jornalístico comercializado por uma agência holandesa. Depois da Copa, Marinovich e Leonie, sua mulher, voltam a tocar a storytaxi.com, agência de notícias "puramente africana".

DESAFIOS E quais são os desafios para o fotojornalismo, agora que a violência crua dos confrontos políticos e raciais está aparentemente superada? "A violência, as tensões, são mais sutis. A vida é vivida na fronteira, no limite", diz o fotógrafo, editor e escritor.
A entrevista está terminando, e uma bela luz de outono banha Johannesburgo, visível à distância do alto do bairro nobre de Randburg. Marinovich me leva até o portão e, antes de se despedir, me pergunta se é verdade que 200 mil pessoas assistiram no Maracanã à final da Copa do Mundo de 1950.
Respondo que sim e ele, maravilhado, confessa: "Eu adoraria ver um jogo num estádio brasileiro. De preferência um Flamengo x Santos. Quem sabe, quando as crianças crescerem, Leonie e eu nos mudemos para o Brasil ou para a Colômbia. Na América do Sul, assim como na África, tudo ainda está por acontecer".

"Se alguém precisa de ajuda, eu ajudo. A única pergunta é: devo fotografar ou ajudar primeiro? Eu não sou uma câmera, sou uma pessoa"


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