São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A estirpe rija dos gerais

Andrequicé, 1963

MAUREEN BISILLIAT

COMECEI A CONHECER os sertões por suas veredas. Tudo iniciou em 1963, quando ganhei de um amigo um exemplar de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa -não sem a observação de que talvez eu não conseguisse compreender a linguagem especialíssima do autor. Não só compreendi, como mergulhei nas águas daquele mar de palavras, tentada a investigar a relação direta de Guimarães com os gerais de Minas.
Iniciei minha busca seguindo de ônibus para Minas, parando primeiro em Cordisburgo, lugar de nascimento do autor, prosseguindo rumo ao norte e chegando em Andrequicé, povoado pequeno, pouso na rota das boiadas pelos sertões. Ao chegar, o sol se escondendo no horizonte, acerquei-me de um pequeno boteco e, após me apresentar como alguém em busca dos rastros de Guimarães, fui acolhida com uma boa notícia: "A moça está com sorte, pois não é que chegou agorinha mesmo o Manuelzão do Rosa, vindo direto da fazenda para uma celebração de crisma em Andrequicé!". Sim, o próprio Manuel Nardi, inspirador de "Manuelzão e Miguilim", publicado em 1956, como parte do livro "Corpo de Baile", um bom augúrio para a busca planejada!
Indaguei acerca de um lugar para pernoitar e o moço do boteco me levou à casa de uma velha senhora que me recebeu com a acolhida espontânea e ampla dos que pouco têm, mas muito oferecem: ovo frito, saborosa farofa e um café mineiro, doce, perfumado e ralo, daqueles que descem como água benta apaziguando a sede! Dormi com a candeia acesa, a esteira no chão.
Acordei cedo, o sol despontando no horizonte, no friozinho da madrugada. Lá estava ele, Manuelzão, sombra esguia na parede caiada, chapéu de abas firmes, capa de feltro azul, rosto de couro curtido, olhar de águia me aguardando sem prosa, pronto para o retrato que viria a ser -para mim e para muitos- emblemático da estirpe rija dos gerais de Guimarães.
De repente, me olhando a esmo, deparei com a figura de um homem -um vaqueiro, talvez? Pedi licença para tirar o seu retrato. Sisudo e cismado, ele não quis me atender.
Satisfeita com a sorte, feliz da vida, com Manuelzão na máquina, passei o dia fotografando boiadas na poeira do campo. No fim do dia, de volta para Andrequicé, avistei a figura do vaqueiro, lá me esperando, calmo e quieto, no aguardo de seu retrato: era isso o que ele queria ter.
Acontece que de manhã, quando me viu pela primeira vez, ficou com medo. Por ser cigano, achou que eu era da polícia e estava lá para prendê-lo.
Era isso, então. Como os "roms" da França de Sarkozy, os ciganos dos gerais também são malvistos, estigmatizados como gatunos e ladrões de cavalos, vítimas de velhos preconceitos encravados na contramão da história, levando a guerras e desentendimentos entre nações!


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