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Ciência
A era da desatenção
Somos todos hiperativos?
RESUMO Após epidemia de diagnósticos de transtorno de deficit de atenção e
hiperatividade em crianças, adultos encontram nas drogas Ritalina e Concerta, os
nomes comerciais do metilfenidato, a tábua de salvação para o baixo desempenho
na era multimídia -1,2 milhão de caixas de remédio foram vendidas no Brasil em
2008
MARCELO LEITE
CLÁUDIA COLLUCCI
Ilustrações GUTO LACAZ
HUCKLEBERRY FINN, PROTAGONISTA das aventuras do romance de Mark
Twain (1835-1910) que leva seu nome, daria um sério candidato, nos dias de
hoje, à domesticação com base na droga metilfenidato (Ritalina e Concerta são as
marcas disponíveis no Brasil). Isso, claro, se algum orientador da escola
conseguisse capturar o menino para encaminhar a um consultório de psiquiatria
infantil.
Já o negro Jim, se caísse nas mãos de um psiquiatra de passagem pelo
Mississippi em meados do século 19, seria provavelmente devolvido a ferros com
um diagnóstico de drapetomania (do grego "drapetés", fugitivo). A especialidade
médica tinha menos de meio século e se empenhava em cunhar suas próprias
"doenças".
Huck, o amigo do escravo fujão, preencheria facilmente o mínimo de 6 dos 18
critérios de diagnóstico para o Transtorno de Deficit de Atenção e a Hiperatividade
(TDAH), alvo do metilfenidato. Não era propenso a seguir instruções, ficar quieto
ou pensar antes de responder. Reações precipitadas eram com ele mesmo. Lição
de casa, nem pensar.
A viúva Douglas e a srta. Watson bem que tentavam civilizar o garoto impulsivo e
agitado, mas ele fugiu -só para terminar nas garras do pai bêbado, que o trancou
numa cabana. Huck fugiu de novo. Seguem-se 349 páginas de hiperatividade
pura, que terminam com Huck anunciando nova partida, para territórios indígenas
a oeste.
Huck, na nossa era multimídia, faria companhia aos 2,7 milhões de americanos
entre 6 e 17 anos que tomam estimulantes como o metilfenidato e outros
medicamentos psicoativos, entre os 4,6 milhões de diagnosticados com TDAH
(8,4% da população nessa faixa etária). O consumo per capita de metilfenidato
nos EUA é oito vezes maior que em países europeus. Estima-se que, no mundo,
5,3% dos jovens tenham TDAH.
Por aqui, o preguiçoso e irrequieto Macunaíma, de Mário de Andrade, talvez
recebesse o mesmo diagnóstico (ou estigma). Nas escolas particulares e
escritórios da cidade grande que fascinaram o herói sem nenhum caráter, seus
descendentes descobriram o metilfenidato.
No Brasil, de 2000 a 2008, as vendas passaram de 71 mil caixas anuais para 1,2
milhão. Quantidade suficiente para medicar dezenas de milhares de adolescentes
e crianças.
SUPERDIAGNÓSTICO Há alguma coisa errada nesses números, segundo Luis
Augusto Rohde, psiquiatra da infância e da adolescência na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). E não é por excesso, mas por falta de
diagnósticos.
"Em termos de saúde pública, não existe no Brasil problema de superdiagnóstico e
supertratamento", afirma Rohde, autor principal de um influente artigo sobre TDAH
publicado em 2007 no periódico "American Journal of Psychiatry", citado por
quase 300 especialistas em outros trabalhos. Foi desse estudo que saiu a cifra de
5,3% de prevalência mundial.
O Brasil tem 47 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 18 anos; 5% deles
seriam 2,35 milhões. "Não temos mais do que 100 mil crianças usando a
medicação", estima Rohde. "Há escolas privadas no país com um número
excessivo de tratamentos, mas é uma realidade pontual."
Para o grupo gaúcho, existe uma epidemia de uso indevido da medicação por
adultos. O metilfenidato estaria sendo empregado para melhorar o desempenho
de estudantes e profissionais em tarefas pesadas e monótonas, como a leitura e a
redação de textos longos -preparação de exames, relatórios, e por aí vai.
"Há muitas mães que usam [o metilfenidato] para emagrecer", agrega o também
gaúcho Guilherme Vanoni Polanczyk, atualmente na Faculdade de Medicina da
USP, primeiro autor do artigo liderado por Rohde, que foi seu orientador. Um
estudo que eles fizeram em escolas públicas de Porto Alegre constatou que só 2%
dos alunos que satisfazem os critérios do TDAH recebiam medicação.
SINTOMAS VAGOS Outra causa provável do aumento exponencial de vendas de
Ritalina e Concerta é a automedicação como consequência de autodiagnósticos.
Pouca gente deixaria de se reconhecer na lista oficial de 18 sintomas compilada
no "Manual de Diagnóstico e Estatística", da Associação Americana de Psiquiatria
(DSM-4), segundo o qual portadores de TDAH frequentemente:
1. Deixam de prestar atenção a detalhes ou cometem erros por descuido em
atividades escolares, de trabalho ou outras;
2. Têm dificuldade para manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas;
3. Parecem não escutar quando lhe dirigem a palavra;
4. Não seguem instruções e não terminam deveres escolares, tarefas domésticas
ou deveres profissionais;
5. Têm dificuldade para organizar tarefas e atividades;
6. Evitam, antipatizam ou relutam em envolver-se em tarefas que exijam esforço
mental constante;
7. Perdem coisas necessárias para tarefas ou atividades;
8. São facilmente distraídos por estímulos alheios à tarefa;
9. Se esquecem de atividades diárias;
10. Agitam as mãos ou os pés ou se remexem na cadeira;
11. Abandonam sua cadeira em sala de aula ou quando se espera que
permaneçam sentados;
12. Correm em situações inapropriadas;
13. Têm dificuldade para brincar ou se envolver silenciosamente em atividade de
lazer;
14. Agem como se estivessem "a todo vapor";
15. Falam em demasia;
16. Dão respostas precipitadas, antes de concluídas as perguntas;
17. Têm dificuldade para aguardar sua vez;
18. Interrompem conversas ou se metem em assuntos dos outros.
"Alguém que age e reage de maneira diferente, que aprende diferente, já é
tachado como doente", diz Maria Aparecida Moysés, professora titular de pediatria
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela vê um processo "muito
intenso e extenso" de medicalização do comportamento. Só 1% de seus colegas
de especialidade encara o TDAH como uma doença real, que deve ser tratada por
médicos, segundo uma pesquisa de opinião de 2007.
"Quando você vê os critérios diagnósticos, não tem como não se enquadrar. É de
uma imprecisão absurda, não tem nada de evidência científica", diz ela. "Se for por
aí, todo mundo tem deficit de atenção."
MENTES INSACIÁVEIS A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva descobriu ser
portadora 24 anos atrás, aos 19, quando era estudante de medicina na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). "O diagnóstico de TDAH dividiu
minha vida em antes e depois", conta. "Foi similar a quando descobri que era
míope e usei óculos pela primeira vez -eu via o mundo como uma pintura
impressionista. A partir dali, comecei a vê-lo cheio de detalhes, barroco."
A descoberta ocorreu durante um congresso médico em Chicago, quando a
acadêmica de medicina se reconheceu na descrição dos sintomas. Hoje, a médica
ainda recorre a pílulas (bupropiona) para trabalhos que exigem muita
concentração, como a revisão de textos longos.
Medicada, disciplinou-se a ponto de escrever um livro inteiro. "Mentes Inquietas", a
obra, vendeu cerca de 50 mil exemplares desde que foi relançada pela editora
Objetiva em setembro de 2009 (das vendas da primeira versão, de 2003, não há
cifra precisa; segundo a autora, ultrapassaram 150 mil cópias).
O TDAH abriu um filão para a escritora, que depois lançou "Mentes Perigosas",
"Mentes com Medo", "Mentes Insaciáveis", "Mentes e Manias" e o recém-publicado
"Bullying: Mentes Perigosas nas Escolas". Mais três volumes da série "Mentes..."
vêm aí.
TEMPOS DA BENZEDRINA Não resta muita dúvida de que o metilfenidato
aumenta a produtividade e contribui para o avanço da literatura -pelo menos a de
autoajuda. No passado, escritores de estirpe diversa recorreram aos préstimos de
estimulantes para turbinarem atenção e redação.
W.H. Auden, James Agee, Graham Greene, Jack Kerouac e até Jean-Paul Sartre
teriam recorrido a estimulantes para ler e escrever mais, relata Joshua Foer num
artigo para a revista eletrônica "Slate". Eram os tempos da benzedrina (tipo de
anfetamina).
O próprio Foer conduziu um experimento de uma semana com Aderall, um dos
medicamentos mais populares nos EUA para tratar TDAH (e, ao lado da Ritalina,
consumido por 20% dos universitários americanos). Os resultados foram
"miraculosos". De uma sentada, Foer leu 175 das 1.386 páginas de "A Estrutura
da Teoria Evolucionista", do grande biólogo Stephen Jay Gould.
"Eu me sentia menos eu mesmo", escreveu. "Embora pudesse lançar mais
palavras por hora na página com o Aderall, tive uma suspeita incômoda de que
estava pensando com viseiras." Em conversa com amigos escritores, confirmou
que outros também sentiam a criatividade tolhida pelo remédio.
A benzedrina não parece ter prejudicado a escrita de Kerouac no clássico da
literatura beat "On the Road - Pé na Estrada" (L&PM) -ao contrário, dirão seus
cultuadores. Mas contribuiu, segundo Foer, para baixá-lo ao hospital com uma
tromboflebite.
DISFUNÇÃO MÍNIMA Os usuários habituais de metilfenidato precisam tomar
cuidado com efeitos colaterais como aumento moderado da pressão arterial e da
frequência cardíaca. Em jovens e crianças, a droga parece capaz de retardar o
crescimento, talvez até 1,2 cm por ano.
Theodor Lowenkron, da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, recomenda cautela na
prescrição de drogas psicoativas, em especial para crianças. "Para indicar ou não
a droga, os prós e os contras devem ser bem avaliados -caso a caso", enfatiza.
"E a intervenção terapêutica não deve se limitar à prescrição de remédios."
Apesar das manifestações adversas, o metilfenidato foi aprovado pela poderosa
FDA (agência de alimentos e fármacos dos EUA) já em 1955, para tratar sintomas
hoje enfeixados como TDAH.
A epidemia de vendas só deslanchou depois de 1999, quando um estudo clínico
pioneiro mostrou a superioridade do tratamento com remédios sobre a terapia
comportamental com envolvimento de pais e mestres. Anos depois, o
acompanhamento do grupo de pacientes revelou que a suspensão do
metilfenidato faz voltarem os sintomas. No longo prazo, a vantagem do
medicamento sobre outros tratamentos decai.
Na Europa, prevalece o nome "transtorno hipercinético", ou HKD na abreviação
em inglês. Antes, o complexo de comportamentos recebia nomes como "síndrome
da criança hiperativa", "reação hipercinética da infância" ou "disfunção cerebral
mínima".
HKD é a classificação da Organização Mundial da Saúde, que usa uma lista de
sintomas parecida com a do DSM-4, mas exige 10 deles, e não 6, para o
diagnóstico. O critério restritivo, associado com diferenças culturais, é apontado
como responsável pela discrepância na proporção de casos dos dois lados do
Atlântico.
CUMPLICIDADE O componente cultural é refutado pelo estudo estatístico dos
brasileiros Rohde e Polanczyk, que atribuem a variação nas cifras de prevalência
pelo mundo ao uso de metodologias díspares. Eles rejeitam tanto a ideia de que o
aumento de TDAH seja fruto das condições da vida contemporânea quanto a de
que se deva ao sucesso de uma "construção social", mancomunando psiquiatras
com a indústria farmacêutica para ampliar mercado.
Rohde atende hoje cerca de 500 adultos em seu serviço de TDAH em Porto
Alegre. Não se trata de nova expansão "medicalizante", afirma, mas da
manutenção dos sintomas em 70%-80% das crianças e jovens diagnosticados
quando chegam à maturidade. "Não é só no trabalho, é aquele adulto que dirige
de forma imprudente, que tem mais acidentes, mais envolvimento com álcool e
drogas", ressalva Rohde.
Polanczyk rejeita também a explicação pelo estigma: adultos não permanecem
com dificuldades de desempenho só por carregar o suposto fardo de terem sido
apontados como crianças problemáticas e recorrido a remédios. "É ilusório pensar
que o estigma surge só com o medicamento."
Alívio Os pais já não iam a restaurantes, antes do remédio. Os colegas não
convidavam para as festas. Os castigos se repetiam na escola. E as peças de
teatro interativas estavam há tempos fora de questão. "O medicamento alivia o
estigma", diz Polanczyk.
O psiquiatra se retrai igualmente diante da possibilidade de que o TDAH seja fruto
do estilo de vida em que crianças e jovens são bombardeados com uma profusão
de estímulos de informação e entretenimento por meios eletrônicos -a geração
videogame. Não rejeita de todo a explicação, mas se refugia num eufemismo
científico para defender o caráter substancial do transtorno: "Não vejo evidências
de que a cultura cause o TDAH".
Os críticos dessa "fabricação de doenças", outro rótulo dos adeptos da construção
social, soam mais incisivos. Thomas Szasz, velho combatente anti-TDAH nos
EUA, fala de uma "aliança ímpia da psiquiatria com o Estado" para reprimir
comportamentos desviantes (partiu dele o exemplo da drapetomania usado mais
atrás).
"Diagnósticos não são doenças", costuma dizer. "Nenhum comportamento ou mau
comportamento é doença ou pode ser doença." Ele classifica a psiquiatria na
mesma categoria inconfiável dos governos. Como o fogo, na metáfora de George
Washington, ambos são "servos perigosos e amos temíveis".
SEM TESTES Para os defensores da realidade do TDAH, a hipótese da
"construção social" do transtorno se apoia numa limitação real da psiquiatria e na
incompreensão da natureza dos sintomas com que ela lida. Em seu jargão, eles
são de tipo "dimensional", não "categórico".
Em outras palavras, querem dizer que os 18 quesitos apresentados mais atrás
procuram delimitar, num contínuo de comportamentos variados, e com o máximo
de objetividade possível, a faixa de manifestações socialmente sancionadas como
patológicas ou intoleráveis. Não há exames de sangue, testes genéticos ou
ultrassonografias para diagnosticar categoricamente o TDAH.
"Não existe o grupo dos ansiosos e dos não-ansiosos, dos atentos e dos
desatentos. Sintomas atencionais de hiperatividade qualquer pessoa vai ter em
situações de estresse, de conflito, de cansaço", concede Rohde. "A diferença é
que indivíduos com TDAH têm isso como marca registrada, faz parte do seu dia a
dia."
Há estudos com pares de gêmeos indicando que o TDAH independe, em grande
medida -80%, segundo Rohde-, do modo como os jovens são criados. Vários
outros relacionam o transtorno com genes envolvidos na regulação de
neurotransmissores e no desenvolvimento deficiente de áreas do cérebro. Mas
não se formou consenso sobre eles, muito menos para padronizar exames.
O fato de não existirem testes, contudo, não significa que o transtorno não seja
real, que não tenha base fisiológica. Ausência de evidência não é evidência de
ausência, poderiam dizer.
CALVINISMO "Depressão também não tem correlato biológico, mas ninguém
duvida que a depressão exista. As pessoas se matam", pondera Polanczyk. O
sistema nervoso é complexo, e o acesso ao cérebro para estudo, muito mais difícil
que a outros órgãos. "Na psiquiatria, estamos muito atrás da medicina como um
todo."
Como disse outro médico do Rio Grande do Sul, Olavo Amaral, que comentou o
estudo de Rohde e Polanczyk em carta aos editores do "American Journal", "o
conceito de transtorno e seus critérios diagnósticos são construções sociais por
definição".
Os defensores do TDAH tampouco se incomodam com a acusação de serem
propagandistas remunerados pela indústria farmacêutica. O grupo de Rohde
recebe financiamento de pesquisa das empresas Bristol-Myers Squibb, Eli Lilly,
Janssen-Cilag e Novartis. O psiquiatra também dá palestras sob patrocínio das
empresas, mas declara que a remuneração pessoal por serviços prestados à
indústria não ultrapassa US$ 10 mil anuais.
O mesmo argumento desconfiado, segundo ele, pode ser voltado contra os
inimigos do TDAH. "Recebo pacientes que faziam psicanálise e que, quando
melhoram os sintomas com medicamentos, se sentem desmotivados a seguir com
a psicanálise", diz Rohde. "Vai me dizer que não existe conflito de interesse em
manter o cara no consultório dele por anos?"
Em 2008, o Centro Hastings, nos EUA, dedicado a questões de bioética e políticas
públicas, organizou seminários sobre os controversos distúrbios emocionais e
comportamentais em crianças, como o TDAH. A discussão resultou num artigo
que dá o que pensar sobre a querela dos construcionistas com os psiquiatras.
O título é: "Fatos, Valores e TDAH - Uma Atualização da Controvérsia". Os
autores, Erik Parens e Josephine Johnston. O trabalho, que saiu no periódico
"Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health" (2009), faz uma
apresentação equilibrada dos dois lados na disputa bizantina.
O artigo alerta para o risco de distorcer as categorias diagnósticas do DSM. Essas
categorias seriam abstrações, não entidades encontradas na natureza. Mas
ressalva: "Nossa descrição das complexidades e da indefinição das fronteiras não
foi feita para sugerir que o TDAH não seja real. Os sintomas de TDAH podem
causar sofrimento significativo em crianças, nas famílias e nas escolas".
Diante desse sofrimento, o "niilismo diagnóstico" não seria uma opção. Só a
adesão irrefletida a um calvinismo farmacêutico -que enfatiza o culto moralista do
sofrimento como alternativa à solução fácil dos comprimidos- poderia servir-lhe
de justificativa.
Huck Finn e Macunaíma não cairiam nessa.
Conflito de interesses: os autores desta reportagem declaram que não contaram
com apoio de drogas psicoativas, exceto cafeína.
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