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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
O iídiche filho
São Paulo, 1948
SÉRGIO SISTER
ACHEI ESTA CARTA, ESCRITA EM IÍDICHE, em março de 1983, quando juntava a
papelada para os funerais de meu pai. Datada de 24 de junho de 1948, Jayme (ou
Chaim) informava a seus pais, residentes no Rio de Janeiro, sobre o meu
nascimento em São Paulo.
Pela data, relativamente próxima do meu aniversário, e pela identificação de
algumas palavras em letras hebraicas, logo percebi do que se tratava. Minha
verdadeira certidão de nascimento. Estão ali meus nomes judaico e brasileiro,
rezando como Schmerl e sambando como Sérgio.
Nascidos na imprecisa Bessarábia, num pedaço de terra que hoje faz parte da
Ucrânia, meus avós paternos derretiam no calor carioca do Méier desde a década
de 1930, após a falência da fábrica de móveis de meu pai.
A família trocou São Paulo pelo Rio, provavelmente pela vergonha e pelo
desgosto de terem quebrado. Diz Anita, minha mãe, que eles se afastaram de
amizades mais ricas, dos Feffer e dos Teperman, porque já não tinham como
retribuir jantares e festas.
Jayme voltou ainda mais arrasado para São Paulo, após a morte de seu irmão
mais novo, que o ajudara com trabalho a se recuperar do tombo financeiro e por
quem gastara até o último centavo, na esperança de vencer um câncer. Veio
sozinho. A partir de então, todas as comunicações com pai, mãe e irmã,
dependentes dele, se davam por poucas cartas e por remessas de dinheiro.
Talvez ele tenha ido ao Rio visitá-los -mas é apenas uma suposição, porque nem
minha mãe se lembra disso. O mais provável é que não sobrasse dinheiro para
manifestações presenciais de afeto. Sei que eles não estiveram no casamento do
filho, na circuncisão e enterro do neto mais velho, nem no nascimento da primeira
menina da família. Os vovós do Rio só viraram entes concretos por volta de 1955,
quando retornaram a São Paulo para não sair mais.
Mas voltemos à carta. Fui alfabetizado em hebraico e iídiche, mas sou incapaz de
passar de algumas palavras. Virei analfabeto de uma língua ressuscitada e de
outra praticamente morta.
"Queridos pais, estamos bem de saúde e espero que vocês também assim o
estejam", tenta traduzir minha mãe. E entra no assunto principal, dando destaque
ao meu nome, o mesmo do tio Schmerl, dizem que um homem parecido com um
ex-rabino do grupo Lubavitch, pai da prima Raike -mulher batalhadora que matou
boi a unha para sustentar a família antes e após o suicídio do marido. "Temos uma
linda filhinha de dois anos", conta ele, possivelmente com o envio de uma foto
anexa.
Não sei do exato sentimento que esta carta me provocou na época. Creio que
foram os melhores e mais delicados sentimentos de alegria, satisfação, pesar,
carinho, desvelo, nostalgia e gratidão. Falo isso porque já tivera por meu pai
momentos carregados de emoção, adolescente, sob efeito de pinga, lembrando
que ele não abria um guaraná sem dividir com a família. Ele nem sequer
questionou quando pedi que me pagasse um curso de pintura.
E tanto gostava dele que sinceramente não me chateei com sua ausência nos
meus 19 meses de cadeia. Não foi por anticomunismo que ele evitou o presídio
-atéporque saiu da Rússia, como se dizia genericamente da região, em razão do
antissemitismo. Não ia ao presídio Tiradentes porque era um homem doente.
Mas por que só comunicou meu nascimento 15 dias após o evento? Hoje em dia é
difícil imaginar minutos de silêncio sem mensagens e ou ligações. Mas não é disso
que estou falando.
Por que não mandou um telegrama? Ocorreu-me que tenha esperado consolidar a
vida do bebê, o que é natural para quem já penara perdas pesadas. É sempre
preciso ponderar. O que é mais difícil de entender é por que esta carta estava
entre as coisas de meu pai - guardada e, quem sabe, não remetida.
Mas vamos pelo lado melhor: ele a reencontrou quando juntava a papelada para
enterrar seu pai. Acho que é isso.
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