São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2010

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Ópera de sabão

FELIPE SANT'ANGELO

CENA 4
Narrador - Voltamos a apresentar "Ópera de Sabão", uma novela dentro da peça.
Apartamento de Mauro e Samanta - (Samanta está arrumando um arranjo de flores sobre a mesa. Chega Zé Mauro.)
Samanta - Oi, amor!
(Zé Mauro nada responde. Afrouxa a gravata e larga a pasta do trabalho na poltrona.)
Samanta - Parabéns...
Zé Mauro - Hoje não é meu aniversário.
Samanta - Eu sei.
Zé Mauro - Então?
Samanta - É nosso! De namoro!
Zé Mauro - Já?
Samanta - Faz um ano que foi o último.
Zé Mauro - Quer saber? Eu não acho certo comemorarmos aniversário de namoro até hoje. Já estamos casados.
Samanta - Mas não somos casados no papel!
Zé Mauro - E daí? Precisa do papel? Moramos juntos há tanto tempo.
Samanta - Nossa, como você é desagradável, Zé Mauro. Eu tô tentando que a gente fique bem hoje, que é um dia especial.
Zé Mauro - Eu só tô dizendo que não é tão especial assim.
Samanta - Se nós tivéssemos casado no papel, você não agiria assim.
Zé Mauro - Pra que você precisa do papel?
Samanta - Pra comemorar um aniversário de casamento, e não de namoro.
Zé Mauro - Porra, você é muito infantil às vezes, Samanta.
Samanta - Infantil? Eu?!? Só quero um pouco de romantismo. Só isso!
Zé Mauro - Não adianta ser romântica só em ocasiões especiais.
Samanta - Como assim? Eu cuidei de você durante o seu câncer!
Zé Mauro - Era uma ocasião especial ao contrário.
Samanta - Foi um tratamento longuíssimo, eu estive sempre a seu lado, e nunca exigi nada!
Zé Mauro - Só faltava exigir, né? Eu tava com uma porra dum câncer no estômago!
Samanta - Eu só tô dizendo que te dou muita coisa...
Zé Mauro - Não era disso que eu estava falando.
Samanta - Era do que então?
Zé Mauro - Sexo. Você tá sempre com essa cara!
Samanta - Não sou obrigada a querer sempre.
Zé Mauro - Você não é obrigada a querer nunca. Mas, é isso que acontece: parece sempre uma obrigação.
(silêncio.)
Samanta - ... Desculpe. Por que você nunca falou isso?
Zé Mauro - Tô falando agora.
Samanta - Eu não sabia. Eu gosto quando a gente faz amor. Zé Mauro - Tá.
Samanta - Você não acredita?
Zé Mauro - Eu não sinto.
Samanta - O que eu posso fazer então? Eu quero que a gente seja feliz!
Zé Mauro - Agora é tarde.
Samanta - Como assim?
Zé Mauro - Eu acho que a gente não será mais feliz. Pelo menos juntos.
Samanta - O que você tá falando, Zé Mauro? Que porra é essa?
Zé Mauro - Eu tô querendo me separar.
Samanta - Como assim?!?
Zé Mauro - Cansei.
Samanta - Estamos juntos há dez anos, hoje é nosso aniversário, por que agora?
Zé Mauro - Sempre é tempo de mudar.
Samanta - Você tem outra.
Zé Mauro - Não é bem isso.
Samanta - "Bem" isso? Então você tem outra mesmo. Canalha!!!
Zé Mauro - Calma, Samanta, vamos conversar civilizadamente.
Samanta - Civilizadamente? Você me traiu civilizadamente?
Zé Mauro - Eu sempre usei proteção.
Samanta - Seu escroto.
(Samanta anda de um lado para o outro. Zé Mauro está parado.)
Samanta - Quem é ela?
Zé Mauro - Não interessa.
Samanta - Não interessa o caramba. Fala quem é ela!
Zé Mauro - Você só vai se machucar assim. Melhor não saber.
Samanta - Melhor não trair! Se você estivesse preocupado em não me machucar, melhor seria se não tivesse me traído.
Zé Mauro - Desculpe. Eu me apaixonei.
Samanta - Quem é a vagabunda?
Zé Mauro - Não adianta. Eu não vou contar.
(Samanta pega a pasta dele da poltrona e corre com ela para a janela.)
Samanta - Pois então eu vou jogar sua pasta.
Zé Mauro - Eu pego lá embaixo.
Samanta - (abrindo a pasta) Pega é? E esses papéis? Acho que vão voar longe durante a queda.
Zé Mauro - Para com isso, Samanta!
(Ela joga a pasta.)
Zé Mauro - Filha da puta!
Samanta - É você!
Zé Mauro - Tá bom, sua louca! Quer saber? Eu tô apaixonado pela sua amiga Diana. Há mais de dois meses.
(Samanta congela.)
Zé Mauro - Desde aquela noite em que você esqueceu o celular, a gente se desencontrou e eu cheguei lá sozinho.
(Samanta dá um berro descontrolado. Corre até a sua bolsa e tira seu celular.)
Samanta - Celular filho da puta!!!!
(Espatifa o celular no chão.)
Zé Mauro - (Tentando se aproximar) Calma, Samanta.
Samanta - Calma a boceta da tua mãe! Eu vou matar aquela vagabunda oferecida, ladra de marido!
Zé Mauro - A culpa não é dela. É minha. Eu achei que ia ser só uma trepadinha gostosa, mas a coisa entre a gente foi esquentando, e eu vi que tem coisas muito melhores no mundo do que o que a gente vive aqui em casa.
(Samanta começa a chorar. Toca o telefone da casa. Zé Mauro atende.)
Zé Mauro - Alô?
Samanta - (Berrando) É sua amante, é? Passa aqui que eu vou falar com ela. Dá o telefone aqui!!!
Zé Mauro - (No telefone) Desculpe, um momento. (Tampa o bucal) Cala a boca, Samanta. É da polícia.
Samanta - (Gritando ainda) Eu não acredito. Mentiroso. Canalha! É ela, eu sei que é ela!
(Zé Mauro acerta um tapa em sua cara. Samanta finalmente se cala.)
Zé Mauro - (Voltando ao telefone) Oi. Sim, qual a delegacia? Obrigado, eu estou a caminho.
(Desliga o telefone)
Parece que o Ariel tentou estuprar a ex-mulher dele. Ele está preso. Eu preciso ir.
Samanta - Você não pode me deixar aqui sozinha. Se você sair por essa porta eu me mato, eu pulo dessa janela.
Zé Mauro - (saindo) Não faça isso. Vai ser ruim apenas pra você. (...)


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