São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Ponto de fuga

O suor e o cloro

Jorge Coli
especial para a Folha

Quando o primeiro longa-metragem de François Ozon, "Sitcom", chegou aos cinemas em 1997, a crítica torceu o nariz. Depois, as coisas foram mudando. Existem ainda alguns blasés, cada vez mais raros, que não levam a sério um diretor capaz de tratar suas obsessões artísticas e pessoais com tanta desenvoltura.
Boa parte da invenção criadora de Ozon vem de reciclagens: atrizes fetiches que reaparecem em seus elencos, bricolagem meio mambembe de citações cinematográficas em seus filmes mais "teatrais"; silêncios incertos e perturbadores surgindo em suas obras de veia mais confidencial: "Sob a Areia" e "Swimming Pool". Essas constantes criam uma teia de fios condutores. Assim, Ludivine Sagnier encorpou de "Gotas d'Água sobre Pedras Escaldantes" a "8 Mulheres", agora se metamorfoseando numa "Marylin Monroe mediterrânea", como diz o diretor (é também um prazer vê-la como a fada Sininho, no esplêndido "Peter Pan", de P. J. Hogan). "Swimming Pool" é um filme de mistério sobre a redação de um romance de mistério. Ao avesso das regras do gênero, porém, não se interessa pela ação. Nisso, o filme coincide com o livro que a personagem da escritora, encarnada por Charlotte Rampling, está escrevendo e é criticado pelo editor por "não ter história" nem enigma.
Na verdade, o filme volta-se para relações muito intensas que não se decifram. Nelas encontra seu fascínio mais forte e sua profundidade: não é um filme de mistério, mas de mistérios, vários, insondáveis e sem solução. É também um filme feminino ou, antes, um filme de fêmeas enfrentando os machos ao desejá-los. Ozon foi capaz de filmar essa exasperação invisível.

Eflúvios - "Lisa and the Devil", de Mario Bava, sai em DVD (Image) num restauro impecável. Teve outros títulos: "Il Diavolo e il Morto", "La Casa dell'Esorcismo", este último para colar no sucesso do "Exorcista", de Friedkin, que saíra um ano antes, em 1973. Foi, nessas diferentes versões, cortado, remontado, esquartejado: era a maneira como produtores e distribuidores tratavam as obras do mestre, concebidas apenas como "divertimento" de custo barato e jamais enquanto arte. Porém tudo o que Bava dirigia era transfigurado em criação mais alta.
"Lisa and the Devil" não tem enredo: tem personagens perdidos numa casa. Bava atinge um apogeu ao carregar espaços, objetos, atores de medos e poderes, dotando-os da mais suntuosa e perversa beleza. Trata a fotografia em tons picturais e vívidos. O elenco é formidável: Elke Sommers, Alisa Valli, Silva Koscina, Gabrielle Tinti, acima de todos, Telly Savalas, em quem se concentram ironias diante das situações que, em suma, são pueris, mas que se elevam imediatamente por obra e graça do diretor.
"Lisa and the Devil" demonstra uma força criadora nascida por dentro dos procedimentos cinematográficos, impondo-se contra ventos e marés, desprezada pelas convenções de gosto, sem apoio de marketing ou de crítica. Não é, como se diz hoje com tanta freqüência, "um produto". É cinema, legítimo e verdadeiro.

Ila-ila-riê - Para a lista de filmes que os leitores do Mais! provavelmente não vão ver, mas deveriam: "Xuxa Abracadabra", de Moacyr Góes. Tem um jeito espoleta e divertido de inserir os personagens dos contos infantis em situações inesperadas. Lembra os livros de Monteiro Lobato, que desviavam, sem cerimônias, o Gato de Botas ou Pinóquio, para fazê-los entrar em suas próprias histórias. A TV captou o tom, há 50 anos, nos programas de Júlio Gouveia, em que Lúcia Lambertini era verdadeira reencarnação de Emília. Depois, nunca mais. Moacyr Góes chegou agora, no cinema, perto desse espírito.

Lubitsch touch - "Sexo, Amor e Traição", xoxo, sem graça a mais não poder, emparelha com "Os Normais -O Filme" e "A Taça do Mundo é Nossa" no páreo de comédias que não deram mesmo certo. É como se os diretores não soubessem, ou não precisassem, fazer cinema, já que o sucesso está garantido por serem esses filmes prolongamentos da televisão. Encontram-se no grau zero da propalada "renascença do cinema nacional".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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