São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Barthes íntimo


Em meio a polêmica, saem na França diários inéditos em que o crítico estruturalista fala sobre a morte da mãe e de sua viagem à China

GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Roland Barthes deixou algumas das mais importantes reflexões sobre semiologia e teoria literária do século 20, antes de morrer atropelado pela caminhonete de uma lavanderia no inverno de 1980.
Mas, além da obra propriamente dita, ficaram cartas, rascunhos, anotações ou "fragmentos", como ele próprio os chamaria. A quem pertencem e o que fazer com eles?
A questão mobiliza o meio intelectual francês há algumas semanas por conta da notícia da publicação de escritos inéditos de Barthes: "Carnets du Voyage en Chine" (Diários da Viagem à China, ed. Christian Bourgois, 21,85, R$ 66) e "Journal de Deuil" (Diário do Luto, Éditions de Seuil, 18,90, R$ 57).
Previstos para chegar às livrarias do país na próxima quinta-feira, os dois novos volumes reúnem anotações de cunho pessoal referentes à viagem do autor à China de Mao Tse-tung, em 1974, e ao luto vivido após a morte de sua mãe, Henriette, em 1977.

"Revolta"
Os livros viraram alvo de polêmica após o antigo editor e amigo de Barthes, François Wahl, declarar à imprensa que o escritor ficaria certamente "revoltado" ao ver publicadas essas notas íntimas. Coordenador de filosofia da editora Seuil por mais de 30 anos, Wahl foi também o editor de Lacan e figura de primeira importância na cena estruturalista.
"Um autor é livre para decidir o que quer publicar ou não. E Barthes tinha, nesse sentido, uma doutrina estrita: só deveria vir a público aquilo que foi verdadeiramente escrito", disse Wahl.
"Ele sem dúvida teria utilizado esse material sobre o luto para um romance que planejava escrever. Mas essa publicação em estado bruto o teria transtornado."
Seu ataque se dirige menos às editoras responsáveis e mais a Michel Salzedo, meio-irmão do autor e detentor dos direitos, que concedeu seu aval para a publicação.
Defendendo a legitimidade das novas obras, Salzedo e sua equipe apontam para a importância histórica dos textos e definem a postura de Wahl como "controversa" -já que foi ele mesmo o responsável pela edição e publicação, em 1987, de "Incidentes", notas tão ou mais íntimas do que estas que agora vêm à luz.
Professor de teoria literária da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e especialista em Barthes, Phillipe Roger classificou o escândalo como "desmedido". "Este é o mesmo François Wahl que bloqueou durante dez anos a publicação dos cursos no Collège de France -estes sim de importância capital", ressalta.
Mas de onde saíram estes "novos" livros? Desde 1996 os manuscritos de Barthes se acham depositados no IMEC (Instituto Memórias da Edição Contemporânea), para acesso de pesquisadores.
Além das cartas, fotos e cadernos, encontra-se aí o grande fichário, um conjunto de 13 mil "fichas" (um quarto de folha) onde o autor anotou, ao longo da vida, suas ideias, impressões, citações e reflexões de leitura que ele organizava por tema, consultava e reordenava regularmente.
Foi vasculhando esses arquivos que a pesquisadora Natalie Léger encontrou o "Diário do Luto", conjunto fechado de 330 fichas escritas entre 1977 e 1979 e que giram em torno da "náusea do irremediável", da solidão do indivíduo confrontada ao discurso dos "pêsames" construído pelo coletivo.
"Nesta manhã ainda a neve, e na rádio, os líderes. Que tristeza! Eu penso nas manhãs em que, doente, eu não ia à aula e a alegria que tinha em ficar com ela", escreve Barthes em uma das notas, algumas delas bastante simples ("Ao tomar essas notas, eu entrego a banalidade que está em mim"). E talvez seja justamente esse aspecto "banal" do autor que François Wahl tentou preservar.
Segundo Léger, o diário revela aos leitores o "pano de fundo" emocional das obras escritas pelo autor no mesmo período. ""A Câmara Clara" é um livro escrito a partir do luto, "A Preparação do Romance" também. A aparição do "Diário" irá ajudar a esclarecer a construção dessas obras. O diário é em certo sentido o lado avesso delas", disse.
Os "Diários da Viagem à China" não faziam parte do grande fichário. As notas estavam reunidas em três pequenos cadernos avulsos, em que se misturam textos e desenhos, estes também reproduzidos na nova edição.
Nesse caso, a preparação ficou por conta de Anne Herschberg, que defende a importância dos escritos. "Trata-se de um homem que observa o país a partir de seus detalhes: vestimentas, cores.
No auge da propaganda maoísta, esse homem responde à China com um olhar etnográfico e com um discurso oposto ao do "turista" estrangeiro. Além disso, há o interesse pelo texto. Apesar do caráter privado das notas, a escritura de Barthes é extremamente elaborada", diz Herschberg.
Ela prepara ainda, para o segundo semestre, a publicação de aulas inéditas ministradas por Barthes na Escola Prática de Altos Estudos.

Faro comercial?
"Estamos voltando no tempo. Em 2002/2003 publicamos os cursos dados por ele no Collège de France [reunidos sob os títulos de "O Neutro", "Como Viver Junto" e "A Preparação do Romance']. Agora estamos trabalhando para publicar os cursos dados nos anos 60", antecipa Herschberg. A publicação desses cursos chega em boa hora, pois grande parte do meio acadêmico e literário já começa a se perguntar se esses textos tão "pessoais" têm algum valor por si próprios ou são apenas indício de um interesse comercial desmedido pela vida pessoal dos teóricos.
"A meu ver, não há nada de muito interessante nesses escritos", diz Roger.


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