|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+Livros
Barthes íntimo
Em meio a polêmica, saem na França diários inéditos em que o crítico estruturalista fala sobre a morte da
mãe e de sua
viagem à China
|
GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
Roland Barthes deixou algumas das
mais importantes
reflexões sobre semiologia e teoria literária do século 20, antes de
morrer atropelado pela caminhonete de uma lavanderia no
inverno de 1980.
Mas, além da obra propriamente dita, ficaram cartas, rascunhos, anotações ou "fragmentos", como ele próprio os
chamaria. A quem pertencem e
o que fazer com eles?
A questão mobiliza o meio
intelectual francês há algumas
semanas por conta da notícia
da publicação de escritos inéditos de Barthes: "Carnets du Voyage en Chine" (Diários da Viagem à China, ed. Christian
Bourgois, 21,85, R$ 66) e
"Journal de Deuil" (Diário do
Luto, Éditions de Seuil,
18,90, R$ 57).
Previstos para chegar às livrarias do país na próxima
quinta-feira, os dois novos volumes reúnem anotações de
cunho pessoal referentes à viagem do autor à China de Mao
Tse-tung, em 1974, e ao luto vivido após a morte de sua mãe,
Henriette, em 1977.
"Revolta"
Os livros viraram alvo de polêmica após o antigo editor e
amigo de Barthes, François
Wahl, declarar à imprensa que
o escritor ficaria certamente
"revoltado" ao ver publicadas
essas notas íntimas. Coordenador de filosofia da editora Seuil
por mais de 30 anos, Wahl foi
também o editor de Lacan e figura de primeira importância
na cena estruturalista.
"Um autor é livre para decidir o que quer publicar ou não.
E Barthes tinha, nesse sentido,
uma doutrina estrita: só deveria vir a público aquilo que foi
verdadeiramente escrito", disse Wahl.
"Ele sem dúvida teria utilizado esse material sobre o luto
para um romance que planejava escrever. Mas essa publicação em estado bruto o teria
transtornado."
Seu ataque se dirige menos às
editoras responsáveis e mais a
Michel Salzedo, meio-irmão do
autor e detentor dos direitos,
que concedeu seu aval para a
publicação.
Defendendo a legitimidade
das novas obras, Salzedo e sua
equipe apontam para a importância histórica dos textos e definem a postura de Wahl como
"controversa" -já que foi ele
mesmo o responsável pela edição e publicação, em 1987, de
"Incidentes", notas tão ou mais
íntimas do que estas que agora
vêm à luz.
Professor de teoria literária
da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais e especialista
em Barthes, Phillipe Roger
classificou o escândalo como
"desmedido". "Este é o mesmo
François Wahl que bloqueou
durante dez anos a publicação
dos cursos no Collège de France -estes sim de importância
capital", ressalta.
Mas de onde saíram estes
"novos" livros? Desde 1996 os
manuscritos de Barthes se
acham depositados no IMEC
(Instituto Memórias da Edição
Contemporânea), para acesso
de pesquisadores.
Além das cartas, fotos e cadernos, encontra-se aí o grande
fichário, um conjunto de 13 mil
"fichas" (um quarto de folha)
onde o autor anotou, ao longo
da vida, suas ideias, impressões, citações e reflexões de leitura que ele organizava por tema, consultava e reordenava
regularmente.
Foi vasculhando esses arquivos que a pesquisadora Natalie
Léger encontrou o "Diário do
Luto", conjunto fechado de 330
fichas escritas entre 1977 e
1979 e que giram em torno da
"náusea do irremediável", da
solidão do indivíduo confrontada ao discurso dos "pêsames"
construído pelo coletivo.
"Nesta manhã ainda a neve, e
na rádio, os líderes. Que tristeza! Eu penso nas manhãs em
que, doente, eu não ia à aula e a
alegria que tinha em ficar com
ela", escreve Barthes em uma
das notas, algumas delas bastante simples ("Ao tomar essas
notas, eu entrego a banalidade
que está em mim"). E talvez seja justamente esse aspecto "banal" do autor que François
Wahl tentou preservar.
Segundo Léger, o diário revela aos leitores o "pano de fundo" emocional das obras escritas pelo autor no mesmo período. ""A Câmara Clara" é um livro escrito a partir do luto, "A
Preparação do Romance" também. A aparição do "Diário" irá
ajudar a esclarecer a construção dessas obras. O diário é em
certo sentido o lado avesso delas", disse.
Os "Diários da Viagem à China" não faziam parte do grande
fichário. As notas estavam reunidas em três pequenos cadernos avulsos, em que se misturam textos e desenhos, estes
também reproduzidos na nova
edição.
Nesse caso, a preparação ficou por conta de Anne Herschberg, que defende a importância dos escritos.
"Trata-se de um homem que
observa o país a partir de seus
detalhes: vestimentas, cores.
No auge da propaganda maoísta, esse homem responde à China com um olhar etnográfico e
com um discurso oposto ao do
"turista" estrangeiro. Além disso, há o interesse pelo texto.
Apesar do caráter privado das
notas, a escritura de Barthes é
extremamente elaborada", diz
Herschberg.
Ela prepara ainda, para o segundo semestre, a publicação
de aulas inéditas ministradas
por Barthes na Escola Prática
de Altos Estudos.
Faro comercial?
"Estamos voltando no tempo. Em 2002/2003 publicamos
os cursos dados por ele no Collège de France [reunidos sob
os títulos de "O Neutro", "Como
Viver Junto" e "A Preparação do
Romance']. Agora estamos trabalhando para publicar os cursos dados nos anos 60", antecipa Herschberg.
A publicação desses cursos
chega em boa hora, pois grande
parte do meio acadêmico e literário já começa a se perguntar
se esses textos tão "pessoais"
têm algum valor por si próprios
ou são apenas indício de um interesse comercial desmedido
pela vida pessoal dos teóricos.
"A meu ver, não há nada de
muito interessante nesses escritos", diz Roger.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
pelo site
www.alapage.com
Texto Anterior: +Memória: Boyd Tonkin: Sem Updike, América encolhe Próximo Texto: +Trechos Índice
|