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+Sociedade
A era das multidões
Obra que inspirou Freud, "Psicologia das Multidões", de Gustave le Bon, analisa a "alma coletiva" e a diluição das diferenças individuais
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
O prestígio da objetividade científica
que animou o século 19 produziu,
nas ciências humanas e nas artes, resultados
díspares. Balzac escreveu "A
Comédia Humana" na intenção de diagnosticar, como um
médico, as doenças da sociedade francesa. O jovem Freud
considerava-se uma espécie de
cientista da alma.
Em uma vertente mais obscura, a da classificação naturalista das patologias sociais encabeçada pelo italiano Cesare
Lombroso, o livre pensador
francês Gustave le Bon (1841-1931) escreveu "Psicologia das
Multidões" (1895) como um
cientista a abordar seu objeto
de investigação pelo método
empírico das ciências naturais.
Este livro (ed. Martins Fontes, trad. Mariana Sérvulo da
Cunha, 224 págs., R$ 36) é uma
mistura desigual de boas observações sobre o comportamento das grandes massas que
se formavam na Europa recém-industrializada, classificações pseudocientíficas inadequadas à complexidade do objeto e conclusões desabusadamente subjetivas e conservadoras para a época.
Le Bon, autor de diversos outros livros de psicologia e divulgação científica, é conhecido
por ter inspirado Freud na escrita de "Psicologia das Massas
e Análise do Eu" (1920-21).
Freud dedica um capítulo inteiro a examinar a ideia de "alma coletiva" e as observações
agudas sobre o comportamento das massas, contidas na primeira parte do livro de Le Bon.
A ideia mais importante do
autor francês diz respeito à diluição das diferenças individuais que se produz entre os
membros do que ele chama de
"multidão psicológica". O grande achado de Le Bon, na primeira parte do livro ("A Alma
das Multidões"), refere-se ao
caráter inconsciente das motivações das massas, que "pensam por imagens" e agem guiadas pelo poder hipnótico de
certos líderes.
É massa
Freud, no texto de 1920, perseguiu com entusiasmo as observações iniciais de Le Bon,
mas não se satisfez com as explicações que ele propôs sobre
a disposição das multidões em
seguir, irrefletidamente, seus
líderes: contágio, prestígio, carisma, hipnose. Como se produz esse tipo de poder?
Foi Freud, e não Le Bon, o
grande teórico da psicologia de
massas do século 20, ao propor
que os membros da massa se
apropriam do líder por meio de
mecanismos de identificação
com os ideais (paternos) que
ele representa.
Ao se identificarem com o
ideal, os membros das formações de massa se sentem dispensados do julgamento de seu
próprio supereu -daí a disponibilidade das massas para a
violência, para atos de caráter
delinquente que nenhum de
seus membros, isoladamente,
teria coragem de praticar.
O único poder das multidões
é o de destruir, escreve Le Bon,
que reconhece o papel da "era
das multidões" (para ele, o século 19) em destruir civilizações envelhecidas.
"O advento das multidões
marcará talvez uma das últimas etapas das civilizações do
Ocidente, o retorno a períodos
de confusa anarquia que precederam a eclosão de novas sociedades" (pág. 22).
Não que Le Bon considere
desejável o advento de tais novas sociedades; seu texto é uma
espécie de lamento permanente pela destituição da velha ordem, quando uma espécie de
aristocracia do espírito de formação sólida -imune, portanto, à atração exercida pelos movimentos de massa- governava a Europa.
O texto de Freud fornece elementos preciosos para a crítica
das grandes manipulações de
massas que se seguiram, no século 20. Mas não compartilha
do desprezo de Le Bon pelas
multidões, a começar pelo repúdio às manifestações de massa da Revolução Francesa
[1789] e da Comuna de Paris
[1871] para, a seguir, condenar
as lutas sindicais, os movimentos operários, a democracia em
geral ("multidões eleitorais"),
os tribunais do júri, as assembleias parlamentares, o ensino
público (celeiro de diplomados
frustrados que se tornam presa
fácil de líderes incendiários), a
ponto de colocar sob suspeita
toda a sociedade moderna.
Mas, enquanto Le Bon fala
em raças inferiores compostas
de indivíduos que se assemelham aos povos "primitivos",
Freud equipara a psicologia das
multidões à do neurótico comum. Enquanto o psicólogo
francês acredita em uma casta
superior capaz de conduzir as
multidões, Freud atribui aos fenômenos de massa o caráter
universal das formações do inconsciente.
MARIA RITA KEHL é psicanalista, autora de
"Sobre Ética e Psicanálise" (Cia. das Letras) e
"Deslocamentos do Feminino" (Imago).
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