São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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+Sociedade

A era das multidões

Obra que inspirou Freud, "Psicologia das Multidões", de Gustave le Bon, analisa a "alma coletiva" e a diluição das diferenças individuais

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

O prestígio da objetividade científica que animou o século 19 produziu, nas ciências humanas e nas artes, resultados díspares. Balzac escreveu "A Comédia Humana" na intenção de diagnosticar, como um médico, as doenças da sociedade francesa. O jovem Freud considerava-se uma espécie de cientista da alma.
Em uma vertente mais obscura, a da classificação naturalista das patologias sociais encabeçada pelo italiano Cesare Lombroso, o livre pensador francês Gustave le Bon (1841-1931) escreveu "Psicologia das Multidões" (1895) como um cientista a abordar seu objeto de investigação pelo método empírico das ciências naturais. Este livro (ed. Martins Fontes, trad. Mariana Sérvulo da Cunha, 224 págs., R$ 36) é uma mistura desigual de boas observações sobre o comportamento das grandes massas que se formavam na Europa recém-industrializada, classificações pseudocientíficas inadequadas à complexidade do objeto e conclusões desabusadamente subjetivas e conservadoras para a época.
Le Bon, autor de diversos outros livros de psicologia e divulgação científica, é conhecido por ter inspirado Freud na escrita de "Psicologia das Massas e Análise do Eu" (1920-21). Freud dedica um capítulo inteiro a examinar a ideia de "alma coletiva" e as observações agudas sobre o comportamento das massas, contidas na primeira parte do livro de Le Bon.
A ideia mais importante do autor francês diz respeito à diluição das diferenças individuais que se produz entre os membros do que ele chama de "multidão psicológica". O grande achado de Le Bon, na primeira parte do livro ("A Alma das Multidões"), refere-se ao caráter inconsciente das motivações das massas, que "pensam por imagens" e agem guiadas pelo poder hipnótico de certos líderes.

É massa
Freud, no texto de 1920, perseguiu com entusiasmo as observações iniciais de Le Bon, mas não se satisfez com as explicações que ele propôs sobre a disposição das multidões em seguir, irrefletidamente, seus líderes: contágio, prestígio, carisma, hipnose. Como se produz esse tipo de poder? Foi Freud, e não Le Bon, o grande teórico da psicologia de massas do século 20, ao propor que os membros da massa se apropriam do líder por meio de mecanismos de identificação com os ideais (paternos) que ele representa.
Ao se identificarem com o ideal, os membros das formações de massa se sentem dispensados do julgamento de seu próprio supereu -daí a disponibilidade das massas para a violência, para atos de caráter delinquente que nenhum de seus membros, isoladamente, teria coragem de praticar. O único poder das multidões é o de destruir, escreve Le Bon, que reconhece o papel da "era das multidões" (para ele, o século 19) em destruir civilizações envelhecidas.
"O advento das multidões marcará talvez uma das últimas etapas das civilizações do Ocidente, o retorno a períodos de confusa anarquia que precederam a eclosão de novas sociedades" (pág. 22). Não que Le Bon considere desejável o advento de tais novas sociedades; seu texto é uma espécie de lamento permanente pela destituição da velha ordem, quando uma espécie de aristocracia do espírito de formação sólida -imune, portanto, à atração exercida pelos movimentos de massa- governava a Europa.
O texto de Freud fornece elementos preciosos para a crítica das grandes manipulações de massas que se seguiram, no século 20. Mas não compartilha do desprezo de Le Bon pelas multidões, a começar pelo repúdio às manifestações de massa da Revolução Francesa [1789] e da Comuna de Paris [1871] para, a seguir, condenar as lutas sindicais, os movimentos operários, a democracia em geral ("multidões eleitorais"), os tribunais do júri, as assembleias parlamentares, o ensino público (celeiro de diplomados frustrados que se tornam presa fácil de líderes incendiários), a ponto de colocar sob suspeita toda a sociedade moderna.
Mas, enquanto Le Bon fala em raças inferiores compostas de indivíduos que se assemelham aos povos "primitivos", Freud equipara a psicologia das multidões à do neurótico comum. Enquanto o psicólogo francês acredita em uma casta superior capaz de conduzir as multidões, Freud atribui aos fenômenos de massa o caráter universal das formações do inconsciente.

MARIA RITA KEHL é psicanalista, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Cia. das Letras) e "Deslocamentos do Feminino" (Imago).


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