São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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FOTOGRAFIA
A guerra de frente

Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
O fotógrafo norte-americano James Nachtwey no Rio de Janeiro



James Nachtwey, um dos principais fotojornalistas do mundo, fala com exclusividade à Folha


FERNANDO COSTA NETTO
Editor-chefe do NP

James Nachtwey, 49, provavelmente o maior fotojornalista do planeta na atualidade, esteve no Brasil e passou despercebido.
Sócio da consagrada agência Magnum Photos, Nachtwey desembarcou no país na segunda semana de fevereiro e ficou entre Rio e São Paulo fotografando futebol a convite do jornal francês "Le Figaro". Além dele, outros 14 fotógrafos foram escalados para registrar imagens inusitadas do esporte em 15 diferentes locações. O trabalho todo vai poder ser conhecido em junho próximo, durante a Copa do Mundo da França.
Nachtwey nasceu em Nova York, onde vive atualmente. Talvez seja o fotógrafo mais premiado que se conhece. Enxergou o mundo por meio de uma câmera pela primeira vez depois de completar a Universidade de Ciência Política e Artes, nos anos 70. De lá pra cá, foi ganhando projeção internacional pela ousadia, elegância e olho em registros que colocaram o mundo a menos de um metro dos horrores da guerra.
Sempre sozinho no trabalho de campo, com duas câmeras fotográficas penduradas no ombro, Nachtwey procura retratar a guerra com estética de arte. Detesta comparações, mas fica clara a influência de Robert Capa, outro gênio da fotografia, sobre seu trabalho. Capa, coincidentemente um dos fundadores da Magnum (leia texto na pág. ao lado), perdeu a vida ao pisar numa mina na guerra da Indochina em 1954. Morreu aos 41 anos e teve a vida transformada quase numa lenda dentro do universo da fotografia.
Rio de Janeiro. Minutos antes de deixar-se levar por um helicóptero da Petrobrás, que a conduziria até uma das plataformas de petróleo da Bacia de Campos, onde iria registrar uma pelada de futebol, James Nachtwey falou à Folha.

Folha - Quantas guerras você já cobriu?
James Nachtwey -
Eu não tenho o número exato, mas em torno de 20 guerras.
Folha - Quando você começou a fotografar?
Nachtwey -
Comecei depois da universidade, sozinho, em 1972 ou 1973. O primeiro trabalho que fiz foi um ano mais tarde, em 1974, como free-lance em Boston. Em 1976 consegui meu primeiro emprego num jornal do Novo México (EUA). Eu continuo aprendendo e mandando meu "portfolio" para diversas publicações feitas por jovens fotógrafos.
Folha - Você lembra da sua primeira foto publicada?
Nachtwey -
Sim, saiu estampada numa revista linda da Suíça chamada "Camera".
Folha - Você já esteve em situações de perigo real nas guerras que fotografou?
Nachtwey -
Já fui ferido por minas três vezes e poderia ter morrido. Foram explosões que aconteceram a um metro de onde eu estava. Mas, pelo que já passei, poderia ter sido bem pior, isso não é algo que me desencoraje.
Folha - Faz parte do seu negócio?
Nachtwey -
Acho que esse é o meu trabalho...
Folha - Pela suas fotos, sempre muito perto do objeto fotografado, a impressão que se tem é a de que é preciso ser ágil para poder avançar e recuar rapidamente. Qual é exatamente o seu método de trabalho?
Nachtwey -
Prefiro trabalhar com uma estrutura pequena, apenas com o equipamento indispensável, e sempre tento estar sozinho. Em campo, sigo o meu instinto. Mas quando você vai para uma guerra, é indispensável fazer conexões com organizações locais para ter uma possibilidade maior de trabalhar, para poder atravessar linhas que dividem as milícias. Essa, normalmente, é a hora mais perigosa, quando se está no meio da zona neutra e ninguém sabe ao certo quem é você. Mas cada situação é uma história diferente. Não há um manual de como agir. Você tem que ir lá, com um objetivo na mente e tentar fazer contato com as pessoas certas.
Folha - Quantas câmeras você usa para trabalhar?
Nachtwey -
Geralmente duas câmeras. Eu não viajo com "malas" fotográficas e sim com uma pequena bolsa. Carrego uma 50 mm e outras duas ou três lentes. Não uso teleobjetivas. Prefiro estar próximo da minha foto para mostrar o espaço real da cena. Quando a foto é feita com uma teleobjetiva, há uma compressão da imagem, os detalhes na foto estão comprimidos e se tem uma impressão irreal do espaço, uma sensação artificial.
Folha - Qual a sua escola fotográfica?
Nachtwey -
Não gosto de comparações, mas Robert Capa estava sempre muito perto do objeto que ele fotografava. Ele dizia que a foto não é tão boa se você não estiver perto suficiente para fazê-la. Tento seguir a mesma teoria.
Folha - Quantos prêmios você já ganhou na sua carreira?
Nachtwey -
Não fotografo para ganhar prêmios, é uma consequência do meu trabalho. É claro que ajuda profissionalmente, pesa no julgamento dos editores e ajuda a conseguir novos trabalhos. No que diz respeito à alma, ao coração e ao objetivo do trabalho, não é importante.
Folha - Numa das últimas edições do World Press Photo (concurso anual de fotografia realizado em Amsterdã), um fotógrafo sul-africano ganhou o prêmio máximo numa das categorias com uma imagem de um menino africano morrendo de fome cercado por um urubu. Qual é a história desta foto?
Nachtwey -
Kevin Carter era meu amigo. Ele estava cobrindo a população de famintos no sul do Sudão, na África. A maioria dos fotógrafos que querem fotografar os povos famintos vão a campos de refugiados da Cruz Vermelha, onde a população é levada para ser alimentada. Kevin estava num desses campos que vivem cercados de lixo e de urubus, que estão em todos os lugares. Eles são enormes e muito comuns. Eu nunca ouvi falar que um urubu tenha comido um cadáver humano. A foto do menino faminto é muito mais simbólica que qualquer outra coisa. Kevin usava uma teleobjetiva que comprimiu a imagem, aproximando o urubu do garoto. A foto teve o impacto desejado. Mas tenho certeza de que, se o urubu ameaçasse o garoto, Kevin jogaria uma pedra para salvar a vida. Infelizmente, depois de algum tempo, Kevin se suicidou, foi um choque!
Folha - Um dia desses, uma revista publicou uma foto sua com um menino negro e faminto no colo. Onde era aquilo?
Nachtwey -
Foi no Zaire. Muitas crianças no país são abandonadas pelos pais. Algumas vezes eles morrem e as crianças ficam perdidas pelas estradas. Eu encontrei aquele menino muito doente, numa condição horrível, com o corpo já frio, e eu o levei até um campo de ajuda humanitária. Mas não é muito comum um fotojornalista ajudar.
Folha - Qual a reação de uma pessoa faminta e destruída na hora de ser fotografada?
Nachtwey -
Não há reação. Não acredito que essas estejam focando alguma coisa com seus olhos ou percebendo o que você está fazendo. Minha idéia é sensibilizar o mundo, fazer publicidade para tentar ajudar esses povos.
Folha - Numa situação extrema, você salvaria uma pessoa ou faria a foto dela morrendo?
Nachtwey -
Se eu tivesse que escolher entre salvar uma pessoa ou fazer uma grande foto, eu optaria pelo ser humano. Não conheço nenhum fotógrafo que não fizesse essa escolha, não conheço ninguém que virasse as costas para uma vida. Há uma grande polêmica em torno desse tipo de trabalho que retrata soldados e povos famintos. Se houver alguém para salvar uma pessoa, então eu me concentro no trabalho. Mas se você for a única chance de sobrevivência de alguém, não há escolha, já salvei pessoas no Haiti, na Somália levei, de carro, muita gente ferida até os campos humanitários.
Folha - Você já achou que fosse morrer?
Nachtwey -
Várias vezes me encontrei em situações em que não havia razão para sobreviver e por pura sorte não morri. Muitas vezes pensei que não fosse voltar para casa. É um pensamento natural que vem à cabeça da gente.
Folha - Você é casado?
Nachtwey -
Não, talvez por essa razão. Não me sinto preparado.
Folha - Qual o sentimento de algumas vezes se aproximar tanto da morte?
Nachtwey -
Eu me concentro na razão que me levou a estar naquela situação e no valor do meu trabalho. Eu tento acreditar no trabalho. Ficar perto de uma situação de risco, de perigo, é muitas vezes inevitável. Eu tenho que lidar com isso, é o meu trabalho. Fazendo uma analogia, comparo o trabalho de administração do medo numa situação de risco ao de um maratonista que aprende a lidar com a dor para seguir na competição.
Folha - Qual é a sua sugestão para o conflito envolvendo o Iraque?
Nachtwey -
É muito difícil dizer, mas eu torço para que haja uma solução diplomática.
Folha - Mas não é o que parece.
Nachtwey -
Deve estar havendo uma negociação por trás das câmeras.
Folha - Caso haja guerra, você irá cobri-la?
Nachtwey -
Não tenho nada programado.
Folha - Saindo do Brasil, para onde você segue?
Nachtwey -
Para o Oriente Médio.
Folha - Mas é lá que haveria o conflito. Como você fotografaria essa guerra?
Nachtwey -
Deverá ser uma guerra de mísseis, de bombardeio de aviões sobre alvos iraquianos. Se for dessa forma, infelizmente muitos civis vão morrer por engano, será muito trágico. Se eu estiver certo no formato do conflito, estar em Bagdá atrás dos resultados dos bombardeios é a melhor forma para fotografar. Mas isso depende muito do acesso que os jornalistas vão ter em Bagdá.
Folha - Você admira o trabalho de algum fotógrafo brasileiro?
Nachtwey -
Sou amigo e grande admirador de Sebastião Salgado. Também gosto muito do trabalho de Miguel Rio Branco, que é membro da agência Magnum. O trabalho de Miguel é sofisticado, vigoroso.
Folha - Alguém inspirou a sua carreira fotográfica?
Nachtwey -
Tive influência de Eugene Smith. Robert Frank também me influenciou bastante e gosto do trabalho do Don McCullin, de Larry Burrows, que é um dos maiores fotógrafos que esteve no Vietnã, um cara muito corajoso.
Folha - Todas as fotos do seu livro "Deeds of War" são em cor. Você prefere fotografar em cor?
Nachtwey -
Não. "Deeds of War" é um trabalho anterior a 1990. Depois disso, a maior parte do meu trabalho é em preto-e-branco.
Folha - Que filmes que você usa?
Nachtwey -
Tri-X e Kodachrome.
Folha - Você faz também outro tipo de fotografia, como moda ou esporte?
Nachtwey -
Não. Faço muito pouco além da fotografia documental. Mas já não dedico meu tempo exclusivamente às guerras como antes. Nos últimos dez anos tenho investido em temas sociais, violência contra a humanidade e também em guerras.
Folha - Você faz muito dinheiro com fotografia?
Nachtwey -
O suficiente para viver. Me considero um homem de sorte por poder viver do meu trabalho. Todas as pessoas que conheço que vivem desse trabalho não o fazem pelo dinheiro.
Folha - Que carro você dirige?
Nachtwey -
Eu não dirijo mais. Meu último carro foi um Fusca em 1980. Levo uma vida muito simples, moro num apartamento de um quarto em Nova York.
Folha - O seu trabalho documental é tão estético que dá a impressão de que algumas vezes você arrumou a cena antes de registrá-la.
Nachtwey -
Não, é fotografia pura. Meu trabalho é o de reportar o que acontece. Acredito que o poder da fotografia vem da realidade, da verdade. A maioria das situações são tão poderosas que é muito mais do que eu poderia imaginar em fazer. Manipular a cena é um sinal de perda de força.
Folha - Você tem um livro quase pronto. Pode falar um pouco sobre ele?
Nachtwey -
Se chama "The Inferno" e vai ser publicado por uma editora inglesa. Vai estar nas lojas até o fim deste ano. São fotos de guerra, violência e crimes contra a humanidade. Todas em preto-e-branco.
Folha - É verdade que você está escrevendo um roteiro de longa-metragem sobre sua vida?
Nachtwey -
É verdade. É uma história baseada na vida de um fotojornalista. Estou seguro de que é uma grande história e estou seguro de que poderia dar um bom filme. Se as coisas caminharem no sentido certo, se as pessoas certas se interessarem, há uma boa chance de dar certo. Mas é muito cedo para falar sobre isso.
Folha - Qual é o seu filme de guerra favorito?
Nachtwey -
"Gritos do Silêncio". É o filme mais verdadeiro, o retrato mais próximo da vida de um fotojornalista.
Folha - O que impressiona você no Brasil?
Nachtwey -
A força que o povo tem para viver.
Folha - Vivendo esta semana de frente para o mar, você já cruzou a avenida e mergulhou no mar de Ipanema?
Nachtwey -
Não. Ainda não fui capaz.


Colaborou Adriana Zebrauskas.



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