São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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Fulguração do instante

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
especial para a Folha

Takeshi Kitano continua, em "Hana-Bi", sua meditação sobre o sentido dos valores espirituais tradicionais num Japão ultramoderno -tema que vinha desenvolvendo em filmes anteriores. "Fogos de Artifício" merece o seu nome: é a fulguração de um momento que ilumina, para olhos atentos, a realidade última da existência.
Depois de Ozu e sua câmera zen, que colhiam, com um sorriso, o sublime desabrochando na própria vida cotidiana, parecia impensável que aparecesse no Japão outro cineasta religioso. Felizmente Takeshi Kitano veio desfazer essa expectativa: "Hana-Bi" se inscreve rigorosamente na disciplina budista, que tem como princípio básico a realidade da impermanência e por isso prepara o monge e o samurai para se verem como a efêmera flor da cerejeira, que vive a plenitude de um instante.
Nos filmes de Kitano, o samurai que aceita a morte sem resistir -e por isso mesmo reencontra uma positividade, um sentido num mundo vazio- surge sob a máscara do mafioso ou do policial, isto é, as figuras contemporâneas do combatente. O espectador pode crer que assiste a um policial sofisticado, chocante pela aparente amoralidade e distância com que trata a violência extrema do mundo da lei e do crime; pode até mesmo sentir, rondando, o vulto dos primeiros Godard, que ambicionavam transformar o gênero num meio de se filosofar sobre a condição moderna. Mas não se iluda com suas próprias projeções: não há reverência ao cinema americano nem referência à Nouvelle Vague. Como Ozu, Kitano é um mestre... e um mestre sempre reinventa o cinema.
"Fogos de Artifício" é o instante no qual reverbera o sentido da vida e da morte para Nishi e Horibe, dois ex-detetives da polícia japonesa, cujas trajetórias foram compartilhadas desde a juventude e correram entrelaçadas, até que o destino as atira ao mesmo tempo numa situação-limite. Nishi, desempregado, endividado, se vê às voltas com a Yakuza e com o câncer terminal da mulher; Horibe, ferido numa ação policial e abandonado pela família, tem de enfrentar a invalidez e a solidão. O primeiro "resolve" sua situação-limite aceitando sem mácula seu destino de samurai; o segundo encontra o seu caminho no trabalho artístico, na pintura. "Hana-Bi" é o relato cinematográfico da crise e de sua superação, por meio da conversão do niilismo à revelação.
Não seria possível nem cabível contar como se opera tal transformação, cujo desenrolar toca o espectador com seu lirismo seco e surpreendentemente intenso, com suas imagens despojadas e silenciosas que imprimem à natureza, à cidade e às pessoas um ar estranho e algo irreal, uma presença elementar, um brilho próprio. Mas talvez valha a pena registrar a sabedoria e a beleza do procedimento do cineasta para tramar no tecido fílmico as metamorfoses de Nishi e Horibe. Com efeito, aos poucos, o espectador vai percebendo que não há dois processos concomitantes, mas sim um processo único, no qual Horibe, por intermédio de seus desenhos e pinturas, capta, expressa e mostra o que está acontecendo com Nishi. Como se a mesma força que comanda o gesto de Horibe ditasse também a conduta de Nishi, muito embora cada um esteja, a seu próprio modo, vivendo a revelação. Assim, os animais-flores dos primeiros desenhos de Horibe anunciam mudanças nos afetos de Nishi, sugerindo como se esboça a decisão deste de partilhar com a mulher seus últimos dias; também os fogos de artifício que espoucam na tela do pintor vão explodir no céu, durante a viagem ritual do casal até o monte Fuji; enfim, Horibe poderá "ler" no pontilhismo ideogramático de seu último trabalho a consumação do caminho do amigo.
O artista experiencia portanto numa dimensão o que o samurai vai vivenciar em outra. Isso não significaria, porém, que aquela simboliza esta, que a pintura "sublima" a realidade. Para Kitano, o artista é tão flor de cerejeira quanto o samurai -a afirmação da vida e da morte se exerce tão plenamente no plano artístico quanto no da ação. Na verdade, o mais perturbador em "Hana-Bi" é descobrir que não há separação, e sim passagem entre os planos e as dimensões, que paradoxalmente a afirmação da vida de Horibe é a afirmação da morte de Nishi. Nesse sentido, o amor à vida pode se manifestar por meio da morte -na tela ou na praia.
Nishi e Horibe são duplos um do outro, como a morte é um duplo da vida. No entanto tal relação de concomitância e complementaridade adquire um alcance ainda maior quando se sabe que o par Nishi-Horibe ecoa, por sua vez, duas "personas" encarnadas por Takeshi Kitano: pois, além de cineasta, este é a um só tempo o autor dos desenhos e pinturas mostrados no filme e o ator que nele se mostra como Nishi! Tudo se passa, então, como se fossem revelados num mesmo filme e ao mesmo tempo os diferentes momentos do processo de criação: o trabalho pictural que Kitano fez, o filme que o diretor faz e o trabalho de ator que vai fazer -como se o presente convocasse o passado e o futuro para poder se desenrolar, como se o trabalho do diretor consistisse em realizar a passagem de uma visão estática para uma visão dinâmica, da pintura para o cinema, de uma tela para outra, mas sempre voltando ao ponto de partida, num eterno vai-e-vem.
Em "Hana-Bi", fogo de artifício, tudo fulgura por um instante. Mas é o Instante mesmo que fulgura. Pensando bem, o filme de Kitano é como um haikku de Bashô.


Laymert Garcia dos Santos é professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Tempo de Ensaio" (Companhia das Letras), entre outros.



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