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Fulguração do instante
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
especial para a Folha
Takeshi Kitano continua, em
"Hana-Bi", sua meditação sobre o
sentido dos valores espirituais tradicionais num Japão ultramoderno -tema que vinha desenvolvendo em filmes anteriores. "Fogos de Artifício" merece o seu nome: é a fulguração de um momento que ilumina, para olhos atentos,
a realidade última da existência.
Depois de Ozu e sua câmera zen,
que colhiam, com um sorriso, o
sublime desabrochando na própria vida cotidiana, parecia impensável que aparecesse no Japão
outro cineasta religioso. Felizmente Takeshi Kitano veio desfazer essa expectativa: "Hana-Bi" se inscreve rigorosamente na disciplina
budista, que tem como princípio
básico a realidade da impermanência e por isso prepara o monge
e o samurai para se verem como a
efêmera flor da cerejeira, que vive
a plenitude de um instante.
Nos filmes de Kitano, o samurai
que aceita a morte sem resistir -e
por isso mesmo reencontra uma
positividade, um sentido num
mundo vazio- surge sob a máscara do mafioso ou do policial, isto é, as figuras contemporâneas do
combatente. O espectador pode
crer que assiste a um policial sofisticado, chocante pela aparente
amoralidade e distância com que
trata a violência extrema do mundo da lei e do crime; pode até mesmo sentir, rondando, o vulto dos
primeiros Godard, que ambicionavam transformar o gênero num
meio de se filosofar sobre a condição moderna. Mas não se iluda
com suas próprias projeções: não
há reverência ao cinema americano nem referência à Nouvelle Vague. Como Ozu, Kitano é um mestre... e um mestre sempre reinventa o cinema.
"Fogos de Artifício" é o instante
no qual reverbera o sentido da vida e da morte para Nishi e Horibe,
dois ex-detetives da polícia japonesa, cujas trajetórias foram compartilhadas desde a juventude e
correram entrelaçadas, até que o
destino as atira ao mesmo tempo
numa situação-limite. Nishi, desempregado, endividado, se vê às
voltas com a Yakuza e com o câncer terminal da mulher; Horibe,
ferido numa ação policial e abandonado pela família, tem de enfrentar a invalidez e a solidão. O
primeiro "resolve" sua situação-limite aceitando sem mácula seu
destino de samurai; o segundo encontra o seu caminho no trabalho
artístico, na pintura. "Hana-Bi" é
o relato cinematográfico da crise e
de sua superação, por meio da
conversão do niilismo à revelação.
Não seria possível nem cabível
contar como se opera tal transformação, cujo desenrolar toca o espectador com seu lirismo seco e
surpreendentemente intenso, com
suas imagens despojadas e silenciosas que imprimem à natureza, à
cidade e às pessoas um ar estranho
e algo irreal, uma presença elementar, um brilho próprio. Mas
talvez valha a pena registrar a sabedoria e a beleza do procedimento do cineasta para tramar no tecido fílmico as metamorfoses de
Nishi e Horibe. Com efeito, aos
poucos, o espectador vai percebendo que não há dois processos
concomitantes, mas sim um processo único, no qual Horibe, por
intermédio de seus desenhos e
pinturas, capta, expressa e mostra
o que está acontecendo com Nishi.
Como se a mesma força que comanda o gesto de Horibe ditasse
também a conduta de Nishi, muito embora cada um esteja, a seu
próprio modo, vivendo a revelação. Assim, os animais-flores dos
primeiros desenhos de Horibe
anunciam mudanças nos afetos de
Nishi, sugerindo como se esboça a
decisão deste de partilhar com a
mulher seus últimos dias; também
os fogos de artifício que espoucam
na tela do pintor vão explodir no
céu, durante a viagem ritual do casal até o monte Fuji; enfim, Horibe
poderá "ler" no pontilhismo ideogramático de seu último trabalho a
consumação do caminho do amigo.
O artista experiencia portanto
numa dimensão o que o samurai
vai vivenciar em outra. Isso não
significaria, porém, que aquela
simboliza esta, que a pintura "sublima" a realidade. Para Kitano, o
artista é tão flor de cerejeira quanto o samurai -a afirmação da vida e da morte se exerce tão plenamente no plano artístico quanto
no da ação. Na verdade, o mais
perturbador em "Hana-Bi" é descobrir que não há separação, e sim
passagem entre os planos e as dimensões, que paradoxalmente a
afirmação da vida de Horibe é a
afirmação da morte de Nishi. Nesse sentido, o amor à vida pode se
manifestar por meio da morte
-na tela ou na praia.
Nishi e Horibe são duplos um do
outro, como a morte é um duplo
da vida. No entanto tal relação de
concomitância e complementaridade adquire um alcance ainda
maior quando se sabe que o par
Nishi-Horibe ecoa, por sua vez,
duas "personas" encarnadas por
Takeshi Kitano: pois, além de cineasta, este é a um só tempo o autor dos desenhos e pinturas mostrados no filme e o ator que nele se
mostra como Nishi! Tudo se passa, então, como se fossem revelados num mesmo filme e ao mesmo
tempo os diferentes momentos do
processo de criação: o trabalho
pictural que Kitano fez, o filme
que o diretor faz e o trabalho de
ator que vai fazer -como se o
presente convocasse o passado e o
futuro para poder se desenrolar,
como se o trabalho do diretor consistisse em realizar a passagem de
uma visão estática para uma visão
dinâmica, da pintura para o cinema, de uma tela para outra, mas
sempre voltando ao ponto de partida, num eterno vai-e-vem.
Em "Hana-Bi", fogo de artifício,
tudo fulgura por um instante. Mas
é o Instante mesmo que fulgura.
Pensando bem, o filme de Kitano é
como um haikku de Bashô.
Laymert Garcia dos Santos é professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Tempo de Ensaio"
(Companhia das Letras), entre outros.
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