São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

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O jornalista André Singer, que viveu no Chile de 1970 até pouco antes do golpe que derrubaria o presidente Salvador Allende, em 1973, retorna ao país para investigar como a população lida hoje com a dupla herança da era Pinochet: os desaparecidos políticos e a vigorosa expansão da economia iniciada em 1976
Reprodução
O presidente Salvador Allende conversa com Fidel Castro durante visita do líder cubano ao Chile em 1971; acima, manifestação de apoio a Allende depois de forças leais ao presidente terem sufocado tentativa de golpe militar, em 29/6/1973


por André Singer

0lê, olê,/ olê, olá/ como a los nazis/ les va a pasar./ Adonde vayan,/ los iremos a buscar." Domingo, 4 de março de 2001. Acaba de terminar, no memorial aos executados e desaparecidos políticos, um ato em homenagem às vítimas da ditadura. Os cerca de 400 manifestantes que estavam no cemitério Geral de Santiago saem agora em passeata ao som das palavras de ordem.
No interior do campo-santo, um homem baixo e magro, moreno e de óculos, lera, com voz embargada, uma passagem do "Canto Geral", do Prêmio Nobel de 1971, Pablo Neruda (1904-1973): "Por estos muertos, nuestros muertos,/ pido castigo./ (...)/ Para el verdugo que mandó esta muerte,/ pido castigo".
O trecho lido chama-se "Os Inimigos". Refere-se à repressão aplicada aos mineiros em greve e comunistas em 1946. Hoje os inimigos são outros. Trata-se de vingar o banho de sangue que começou com o golpe de 11 de setembro de 1973. Ao regime militar, instalado naquele dia e findo 17 anos depois com a posse do democrata-cristão Patricio Aylwin, são atribuídos 1.200 desaparecimentos, 3.000 execuções e um número incalculável de casos de tortura. Fala-se de 50 mil a 500 mil prisioneiros submetidos a tormentos. Houve baixas também pelo lado dos militares. O Informe Rettig, elaborado por uma comissão criada por Aylwin, aponta cerca de 150 membros das Forças Armadas e policiais mortos em confrontos com a esquerda.
O comandante da empreitada repressiva, Augusto Pinochet Ugarte, 85 anos, no momento em que a marcha saía do cemitério cumpria tranquila prisão domiciliar em seu sítio, a 130 quilômetros dali. Duas semanas depois seria libertado sob fiança. Os homens e mulheres que abandonam a necrópole prometem não deixá-lo em paz: "Como a los nazis/ les va a pasar...".
A marcha ocupa uma das quatro vias da avenida Recoleta, no bairro que leva o mesmo nome. Ônibus e carros passam por ela em velocidade, sem sinais de apoio ou de repúdio. Apenas silêncio. Para que serve lembrar, perseguir e punir os responsáveis por crimes cometidos há quase três décadas? A quem interessa? Que executivo, desses que vejo transitar de terno, gravata e maleta 007, vai abrir espaço na superlotada agenda de compromissos para acompanhar a incômoda arqueologia das crueldades praticadas por órgãos já extintos? Aqueles jovens que observo se divertindo nas ruas, quando a noite de sexta-feira cai sobre a capital, sabem que há quase 30 anos houve sinistras "casas de suplício" perto de onde eles agora dançam? Quererão saber? Passei dez dias no Chile com tais perguntas na cabeça. O relato que segue procura explicar por que as feridas do passado tinham que voltar à tona em um país tão dirigido para o futuro que sonha estar no Primeiro Mundo quando chegar 2010.

Cordialidade perdida
Passa um pouco das 12 horas. A alguns quarteirões do cemitério deixo de acompanhar a passeata. O sol está insuportável. Tomo um táxi e pergunto se antes não havia mais umidade no verão. O taxista confirma. Diz que, nos últimos anos, o calor se tornou áspero. Fala com o mesmo tom em que um motorista em São Paulo contaria a um visitante ausente há decênios: "Não, aqui já não garoa como antigamente". O sol de Santiago agora queima "a palo seco", como diria João Cabral de Melo Neto, "quando a sombra foge/ e não medra a magia".
A impressão de secura fica mais forte porque os belos picos nevados, que na capital chilena indicavam de modo perene o Oriente, nestes dias apenas se divisam no meio do ar sujo.
O resto, porém, mudou pouco. O palácio de La Moneda (antiga Casa da Moeda, construído no final do século 18 e transformado em sede do Executivo em 1846) continua a reinar solene sobre a vasta alameda Bernardo O'Higgins, o herói da independência. Os velhos edifícios que cercam a sede do governo seguem lá, imponentes, severos, como a representar a solidez e a formalidade do serviço público chileno. Herança ibérica que a americanização dos costumes não afetou.
Assim como permanece a tranquilidade das ruas amplas nos tradicionais bairros de Providencia e Nuñoa. Lá estão os mesmos sobrados de classe média que conheci. Um ou outro edifício novo não alteraram o aspecto do conjunto. Silêncio aprazível sob os plátanos que colorem e perfumam as largas calçadas. Lugares em que se pode morar com infinito prazer.
Santiago mudou nas bordas. Novos bairros de milionários sobem as montanhas, antes despovoadas. Favelas surgem nas beiradas pobres. O miolo da urbe, contudo, conserva certa leveza provinciana, que existia mesmo durante os combates que marcaram a época da Unidade Popular (UP), aliança entre socialistas, comunistas e católicos de esquerda que governou o Chile de 1970 a 1973.
Na primeira fase da UP, de 1970 a 1971, havia uma estranha cordialidade entre as partes em luta. À esquerda, falava-se em derrotar os "momios" (múmias, apelido que se dava e se dá aos conservadores).

Fidel, ainda jovem, de uniforme verde e botas, percorrera o país como se tivesse deixado a Sierra Maestra havia poucas horas; a seu lado, Allende, fanático por paletós, sempre de terno e, em geral, gravata; era grande o contraste entre o herói guerrilheiro e a liderança civil


À direita, pequenos grupos conspiravam havia meses quando Salvador Allende Gossens (1908-1973), do Partido Socialista, tomou posse na Presidência da República. No entanto era ainda uma guerra limpa, democrática, na qual os oponentes -com exceção de pequeníssimas minorias de um lado e de outro- encontravam espaço para rir de si mesmos. Não era raro um "momio", em momentos informais, se autodesignar como tal, ou um partidário da UP chamar-se de "upeliento" ("peliento" quer dizer sujo, repelente; "upeliento" era a forma depreciativa pela qual a direita designava os apoiadores do governo). O melhor símbolo desse espírito era o próprio presidente. Elegante, brincalhão, irônico, Allende irritava a direita e alguns setores da esquerda. Ninguém, contudo, conseguia deixar de admirá-lo. Encarnava como ninguém o complexo espírito chileno, no qual a discrição, que beira a falsa humildade, é temperada por altas doses de altivez, que raia a arrogância. Conta a escritora Isabel Allende, sobrinha do presidente, que este chegou, quando parlamentar, a se enfrentar em duelo contra um senador do Partido Radical, Raúl Rettig (o mesmo que em 1991 assinaria o informe sobre violação aos direitos humanos durante a ditadura). Tempos depois do duelo, o próprio Allende, ao assumir a Presidência, nomeou Rettig embaixador no Brasil. Nos dois anos e dez meses de seu período presidencial (tinha direito a seis anos), Allende sustentou com maestria essa mescla rara de jogo de cintura e soberba que caracteriza o povo do Chile. Lembro-me do Estádio Nacional lotado para ouvir o "companheiro" presidente e o ilustre visitante Fidel Castro, em dezembro de 1971. Mais de 50 mil pessoas em ambiente de festa cívica. Expectativa para saber o que diria o Chicho (pronuncia-se Tchitcho), apelido familiar e carinhoso do mandatário. A visita de três semanas do líder cubano eriçara os medos e os sonhos. Dividira a sociedade.

Loucura desatada
Fidel, ainda jovem, de uniforme verde e botas, percorrera o país como se tivesse deixado a Sierra Maestra havia poucas horas. A seu lado, Allende, fanático por paletós, sempre de terno e, em geral, gravata. Era grande o contraste entre o herói guerrilheiro e a liderança civil. A simpatia dos jovens que lotavam o estádio, claro, se encontrava com "el comandante". Como se sairia Allende?
"Eu lhes digo, companheiros, com calma, com tranquilidade absoluta: eu não fui feito para apóstolo nem para messias, não tenho condições de ser mártir; sou um lutador social que cumpre uma tarefa, a tarefa que o povo me deu. Mas que o entendam os que querem fazer a história retroceder e querem desconhecer a vontade majoritária do Chile: sem ter carne de mártir, não darei um passo atrás; deixarei La Moneda quando tiver cumprido o mandato que o povo me deu. Que o saibam, que o ouçam, que lhes fique profundamente gravado: defenderei a revolução chilena e defenderei o governo popular, porque é o mandato que o povo me entregou; não tenho outra alternativa. Só me crivando de balas poderão impedir a vontade que é cumprir o Programa Popular", afirmou Allende no discurso.
Quando chegou a hora fatal, em 11 de setembro, cumpriu a promessa. Durante cerca de quatro horas resistiu a bala ao assalto do palácio com um grupo de auxiliares. Quando a parte de baixo de La Moneda foi tomada pelas tropas, se suicidou no andar de cima para não se render. Desse momento em diante, o Chile passaria a viver o luto de um corte jamais reparado.
Alguns meses antes do dia fatídico, a ruptura já estava no ar. A partir de 1972, a textura social foi se esgarçando para além dos limites em que Allende era capaz de costurá-la. O Partido Socialista e o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), que não pertencia à UP, mas dava apoio crítico ao governo, preconizavam -e em parte praticavam- o estabelecimento de um poder popular extraconstitucional. A cada passo nessa direção, os pequenos grupos golpistas da direita, como Patria y Libertad, eram engrossados por setores das classes burguesa e média. Situado ao centro do espectro político, o Partido Democrata-Cristão, que de início fazia oposição moderada a Allende, foi-se movendo para a direita à medida que os setores moderados da UP, liderados pelo Partido Comunista, perdiam espaço para os radicais. No final do processo, em 22 de agosto de 1973, a DC terminou por apoiar no Parlamento uma declaração de inconstitucionalidade das ações presidenciais, o que deu certa cobertura ao pronunciamento militar que ocorreria três semanas depois. Bem antes disso, porém, a relativa cordura das relações políticas fora dinamitada. Estabelecida a dinâmica do tudo ou nada, a violência do confronto cresceu dia a dia. A loucura que tomou conta dos militares depois do 11 de setembro pode ser avaliada pelo relato de apenas um caso, hoje o mais comentado no Chile, entre centenas de milhares. Eugenio Ruiz-Tagle, 26, era um jovem de família aristocrática. Formara-se em engenharia na Universidade Católica do Chile, onde costuma estudar a elite local. Lá, tornara-se militante do Mapu (Movimento de Ação Popular Unitária), um partido de origem católica que integrava a UP. Um dia após o golpe, o nome de Ruiz-Tagle apareceu numa lista confeccionada pela junta e ele apresentou-se voluntariamente à sede do governo de Antofagasta, Província no norte do país, onde morava. Ruiz-Tagle foi preso e brutalmente torturado. Teve um olho arrancado com um gancho, o nariz e uma orelha rasgadas, a coluna quebrada, o pescoço cortado e torcido, os dentes destruídos. Mais tarde, retirado da prisão, acabou executado no curso da famigerada Caravana da Morte, pela qual agora Pinochet responde a processo (leia em box na pág. 8 explicação do juiz Juan Guzmán Tapia sobre por que a Lei de Anistia pode não cobrir casos como esse). A mãe de Ruiz-Tagle pôde vê-lo depois de morto e por isso o suplício a que foi submetido está documentado.

Invasão brasileira
Amplas camadas de classe média e alta, assustadas com a possibilidade de perderem o patrimônio material, cultural e afetivo, se houvesse uma cubanização do Chile, legitimaram, ao menos pelo silêncio, a sanha contra a esquerda. "Havia um oficial cubano com tropas aqui", me diz o general Guillermo Garin, braço direito de Pinochet, sentado em seu apartamento num dos bairros altos da capital. "De modo que o confronto foi cruento."
Na Fundação Augusto Pinochet, no elegante bairro de Vitacura, fui recebido pelo empresário Hernán Briones Gorostiaga, o presidente da instituição. Briones, um senhor gentil de cabelos brancos e baixa estatura, é o maior produtor de cimento do país. "Havia 10 mil estrangeiros de esquerda aqui", afirma o empresário. "O Exército foi obrigado a atuar de modo muito violento", justifica. Talvez ele não saiba que, entre os milhares de estrangeiros residentes em Santiago, boa parte era formada por brasileiros. É possível que ele não tivesse conhecimento também de que muitos deles nada tinham a ver com supostos exércitos formados para invadir as casas da classe média.
Por exemplo, o atual ministro da Saúde do Brasil, José Serra, que morava perto de onde hoje funciona a fundação presidida por Briones. Ou o ministro da Educação, Paulo Renato Souza. Alguns anos antes de Allende assumir o cargo, o próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, morara no Chile. Nenhum deles parecia empenhado em transformar o país em uma segunda Cuba.
Não longe da Fundação Pinochet, residia também o ex-chefe da Casa Civil de João Goulart, Darcy Ribeiro (1922-1997), que chegou a assessorar o próprio Allende. No belo apartamento em que Darcy morava, frequentado por muitos brasileiros asilados no Chile, não predominavam idéias contrárias à democracia. Ao contrário.

À medida que a repressão desmantelava a guerrilha em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, as ruas da capital chilena se enchiam de diferentes sotaques e crescia o envolvimento com o processo local


Mas nas discussões sobre se o apego à Constituição e às leis não terminaria por fazer o governo sucumbir às óbvias articulações golpistas havia os que acreditavam na inevitabilidade de um confronto militar. Em geral eram mais jovens e moravam em regiões menos nobres da cidade. Muitos deles tinham saído do Brasil em períodos mais recentes e haviam estado envolvidos, em maior ou menor grau, com a luta armada contra o regime de 1964. Os brasileiros em Santiago dividiam-se, em linhas gerais, entre os mais velhos, que haviam deixado o Brasil após o golpe de 1964, como o ex-ministro Almino Affonso e o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio, e os que haviam chegado como resultado da repressão aos grupos guerrilheiros depois do AI-5 em dezembro de 1968. Dentre a ala jovem, alguns desenvolveram forte relação com os partidos que pressionavam Allende por medidas de ruptura com a burguesia. Entre eles, pontificava um personagem com maior vivência e traquejo teórico, o cientista político Ruy Mauro Marini (1933-1997), um crítico da teoria da dependência elaborada por FHC e pelo chileno Enzo Faletto. Marini publicara, em 1969, no México, um clássico para os que o ouviam em Santiago: "Subdesarrollo y Revolución" (Subdesenvolvimento e Revolução). Nos churrascos, feijoadas e sambas promovidos pelos círculos brasileiros, os temas da política chilena misturavam-se aos da análise da conjuntura no Brasil. À medida que a repressão desmantelava a guerrilha em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, as ruas da capital chilena se enchiam de diferentes sotaques e crescia o envolvimento com o processo local. Conforme caminhava-se para o desfecho, a ação quase explícita dos golpistas dava aparente razão aos que, nas controvérsias, duvidavam da via pacífica. Não armar-se equivaleria a deixar que o movimento popular fosse esmagado sem dó nem piedade.

Vanguarda neoliberal
Mas a efervescência social desencadeada pela experiência da UP era de tal ordem que havia pouco tempo para articular colunas guerrilheiras. Fazer funcionarem as Juntas de Abastecimento e Preços (JAP) e demonstrar que as conquistas inspiradas pelo socialismo não geravam caos absorveram mesmo os brasileiros que estavam convencidos da necessidade de preparar a resistência.
Como, aliás, consumiu quase todo o esforço da esquerda chilena. O governo caiu com pouquíssima resistência armada, além daquela que Allende empreendeu no palácio. Isabel Allende, a sobrinha escritora do presidente, resumiu a visão do lado derrotado: "Não existia o armamento russo nas mãos do povo, os arsenais clandestinos, os guerrilheiros cubanos nem os soldados soviéticos no Chile, como tanto se havia dito".
Morto Allende, sai um Brasil e entra outro na paisagem santiaguina. Expulsos os brasileiros (radicais e moderados) que haviam colaborado na experiência do governo popular, Pinochet começou a reorganizar o Chile inspirado no modelo dos militares brasileiros que tinham tomado o Palácio do Planalto em 31 de março de 1964. No entanto, ao cabo de dois anos, as soluções monetaristas da junta fracassaram. Em 1975, a inflação alcançou a taxa de 174% ao ano e o PIB caiu na estrondosa proporção de 12,9%. Foi aí que Pinochet resolveu dar chance a um grupo de economistas que tinham formação nos EUA e fez do Chile o primeiro laboratório do modelo neoliberal no mundo.
Muitos se perguntam como Pinochet percebeu para onde soprariam os ventos alguns anos antes que a vitória eleitoral de Margaret Thatcher no Reino Unido viesse a espalhar para o resto do planeta a moda neoliberal. Aparentemente, foi acaso. Depois do fracasso inicial, Pinochet chamou o pequeno cenáculo de professores da Universidade Católica que há alguns anos realizava intercâmbio com a Universidade de Chicago, bastião do neoliberalismo nos EUA, para auxiliá-lo. A figura de maior destaque desse núcleo era Sérgio de Castro, que foi ministro da Fazenda entre 1976 e 1982. Livre da pressão exercida pelos partidos de esquerda, Castro pôde implementar as idéias ultraliberais cultivadas em Chicago e até então não postas em prática em lugar nenhum do mundo.
Ao comitê original comandado por Castro, Pinochet agregou jovens engenheiros, igualmente egressos de universidades americanas, entre os quais se destacavam Hernán Büchi e José Piñera, os dois então com menos de 30 anos.
"Quando Pinochet foi apresentado a Büchi, comentou que não poderia chamá-lo para o governo porque ele usava cabelo comprido e tênis amarelos", conta Briones. Mas acabou por render-se às suas idéias extravagantes, e Büchi, considerado um dos responsáveis pela construção do modelo chileno a partir de 1976, terminou por ser ministro da Fazenda entre 1985 e 1989.
Na essência, o esquema implantado consistiu em abrir a economia chilena, privatizar as empresas públicas (menos a do cobre) e liberalizar setores antes sob controle estatal, como previdência, saúde e educação. Ao integrar-se com poucas barreiras ao comércio internacional, o Chile especializou-se na exportação de produtos primários, como cobre, frutas, madeira, peixe e vinhos, e passou a importar o que é industrializado.
Antes da implantação do modelo havia 160 mil trabalhadores têxteis no país, hoje há 30 mil. Em compensação, o Chile conquistou o lugar de segundo exportador de salmão do mundo, depois da Noruega.
A par da abertura econômica, o Chile adotou institutos, como a autonomia do Banco Central, que diminuem o controle de que os governos dispõem sobre a política econômica. O resultado é que a capacidade de gastar por parte do Executivo fica, na prática, limitada pelo BC, segundo me explicou o presidente Ricardo Lagos. "Se gasto muito, eles sobem a taxa de juros", disse. Piñera introduziu no Chile a previdência privada e fez uma reforma trabalhista para diminuir os controles estatais sobre a liberdade do capital em contratar e demitir. "Piñera foi agora chamado por Bush para ser seu assessor na questão previdenciária norte-americana", conta Briones com orgulho. A partir de 1976, a economia começou a crescer a taxas altas. Entre aquele ano e 1981, produziu-se o chamado "milagre chileno", com uma expansão anual média do PIB de 7%. Em 1986, depois de um período recessivo relativamente curto, cujo pior momento foi em 1982, a economia chilena entrou em novo círculo virtuoso e sustentou o crescimento por uma década (veja box na página 10). O PIB, nesse período, expandiu-se em torno de 6,5% ao ano. Foi na vigência da primeira fase de prosperidade que Pinochet promulgou a Lei de Anistia, em 1978, e, em 1980, aprovou uma nova Constituição em plebiscito popular. Com ela, fixou as bases legais do modelo chileno que vigora até hoje, com as universidades pagas, sistema previdenciário e de saúde em que existe forte presença privada e legislação trabalhista favorável aos empresários. No plano político o modelo pinochetista também permanece. As Forças Armadas têm a incumbência legal de garantir a Constituição, o que significa fixá-las no papel de vigias políticos. Os comandantes militares têm mandato fixo, não podendo ser afastados pelo presidente da República. Além disso, as mudanças constitucionais requerem maiorias qualificadas difíceis de alcançar, uma vez que há senadores biônicos, ligados às FFAA (Forças Armadas). Ou seja, Pinochet, que esteve à frente do Exército até 1997 e em 1998 assumiu uma cadeira no Senado, criou uma blindagem institucional destinada a garantir que o Chile construído por ele com o auxílio dos jovens economistas neoliberais permanecesse assim para sempre.

Cidade dividida
Voltei a Santiago preparado para encontrar uma cidade reconstruída, em que os traços do antigo regime popular tivessem sido apagados pela nova ordem, tão bem instalada. Logo no primeiro dia, a surpresa. Na Plaza de la Constitución, para a qual se abre La Moneda, há uma bela estátua de Allende.


Para o psicanalista Ricardo Capponi a reconciliação no Chile não é mesmo possível, porque, na verdade, nunca houve conciliação


Nela foi inscrito o final do último discurso do presidente socialista transmitido pelo rádio, pronunciado desde o gabinete já cercado por militares golpistas, perto das 10h de 11 de setembro. "Antes cedo do que tarde se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor", está escrito na pedra da praça. Depois, outros sinais. A antiga rua Salesianos agora chama-se Salvador Allende. Há um museu e uma fundação com o nome do ex-mandatário. Cartazes com a imagem do ex-presidente acompanhada pelo texto do referido discurso, que corresponde, em impacto e beleza, à carta-testamento de Getúlio Vargas (1883-1954), estão expostos e à venda nas ruas. Nas livrarias, uma profusão de volumes procura dar conta da experiência socialista, assim como da repressão que se seguiu. A Fundação Pablo Neruda, poeta comunista que simbolizava a cultura de esquerda, mantém as três casas do escritor abertas à visitação pública. A antiga Peña de Los Parra (casa onde ocorriam apresentações de música folclórica), em que nos anos da UP cantavam os filhos da legendária Violeta, se tornou um Centro Cultural. Uma outra "peña", de um sobrinho de Violeta, abriga jovens que entoam canções de esquerda madrugada adentro. O Estádio Chile (não o Nacional), o maior ginásio coberto da capital, agora se chama Victor Jara, o cantor e compositor que foi detido e morto ali nos dias subsequentes ao golpe. Mas os símbolos da direita também estão espalhados pela cidade. Uma artéria importante, em Providencia, chama-se 11 de setembro. Na "alameda", como os chilenos chamam a avenida O'Higgins, há um gigantesco memorial aos policiais mortos em confronto com a esquerda. A Fundação Augusto Pinochet ostenta uma casa grande, no interior da qual há centenas de fotos, troféus, condecorações do general. A Fundação Liberdade e Desenvolvimento, na qual circulam alguns dos principais ideólogos e executivos do modelo implantado na era Pinochet, se encontra bem instalada num dos bairros nobres da capital. Ninguém duvida de que haverá pressão para que se faça uma estátua de Pinochet na praça da Constituição quando ele morrer. "Este é um país dividido, metade para cá, metade para lá", me diz Mireya Garcia, vice-presidente da Agrupação de Familiares dos Presos Desaparecidos, na sede própria, recém-inaugurada, da entidade, que existe desde 1975. É um prédio baixo de dois andares na região antiga da cidade. Foi construído com o dinheiro arrecadado em um concerto no Estádio Nacional em 2000. "Havia 54 mil jovens lá", conta a presidente da agrupação, Viviana Diaz. 00 Reparar o mal feito "Não há reconciliação possível", afirma Mireya. De acordo com o psicanalista Ricardo Capponi, autor de "Chile - Un Duelo Pendiente" ("Chile - Um Luto Suspenso", editora Andres Bello, 233 págs., 1999), a reconciliação não é mesmo possível, porque, na verdade, nunca houve conciliação. São dois bandos e sempre o serão. O que se pode fazer, argumenta ele, é um acordo entre as partes, no interior do qual os indivíduos envolvidos no confronto de 1973 façam o luto dos mortos, desaparecidos e torturados. E os agressores possam reconhecer e se arrepender do que fizeram, pois, segundo Capponi, não só a vítima precisa aceitar a perda como o agressor precisa ter a oportunidade de reparar o mal feito.
Algo disso começou a acontecer em consequência do processo contra Pinochet, cujas imunidades senatoriais foram cassadas em 2000. Em fevereiro, uma deputada de direita, María Pía Guzmán, do partido Renovação Nacional, admitiu, pela primeira vez, que houve atrocidades na época do regime militar e que o silêncio a respeito implicava culpa. "Eu sabia, pela minha família, que houve pessoas torturadas e mortas em 1973. Soube o que aconteceu com Eugenio Ruiz-Tagle desde o começo, desde que eu tinha 13 anos. Quando cheguei à universidade e esse assunto aparecia, foi mais cômodo não ver nem ouvir. Esse foi o nosso erro", declarou a congressista.
"Para mim, esse é o fato mais importante de tudo o que aconteceu no último ano", disse à Folha o sociólogo Tomás Moulian, autor do best seller "Chile Actual -Anatomía de un Mito" (LOM, 336 págs., 1997). "Entendo perfeitamente o que ela sente porque estaria na posição dela se nós tivéssemos ganho o jogo", afirma Moulian, que era do MAPU na época e continua militante de esquerda. "Se nós tivéssemos conseguido impor a ditadura do proletariado, acho que teríamos feito as mesmas coisas que Pía Guzmán", afirma Moulian.
Saio da residência de Moulian, num velho bairro perto do centro de Santiago, meio atordoado com a última declaração. Caminho devagar pela alameda, enquanto observo as simpáticas casas de começo do século. Findam o dia e a viagem.
Aos poucos me dou conta da importância do que disse o sociólogo. Ao reconhecer, da forma como o fez, a novidade no gesto da adversária -que por sua vez também é de reconhecimento-, Moulian ficou livre para admitir e superar as limitações da posição que ele mesmo adotara 30 anos atrás. Perto de La Moneda apanho um táxi para o hotel. Ao passar pelo simbólico palácio, restaurado, entendo, por fim, por que é necessário lembrar. Para poder partir em paz.


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