São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005 |
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+ contraponto Ao oporem uma ética coletiva e uma individual, "Herói", de Zhang Yimou, e "Kill Bill", de Quentin Tarantino, podem ser entendidos como formas compensatórias criadas pela indústria cultural Entre o sacrifício e o cinismo
VLADIMIR SAFATLE Os atos cruéis de Uma Thurman não são simples resultados de um gozo assassino Auto-ironia Aqui, vale uma digressão. Os filmes de Tarantino são estilizações de uma disposição cada vez mais comum na ideologia da indústria cultural. Não vivemos mais na época em que a ideologia procurava naturalizar modelos normativos de conduta e tipos sociais ideais, até porque isso exigiria identificações com tipos sociais pautados pela ética da convicção; o que é impossível em situações de crise de legitimidade como a nossa. Mas notemos essa disposição atual dos produtos da indústria cultural em ironizar a todo momento aquilo que eles próprios apresentam. Esta autoderrisão é uma maneira astuta de perenizar estruturas narrativas e quadros de socialização, mesmo reconhecendo que eles já estão completamente arruinados. Os filmes de Tarantino são feitos dessa autoderrisão. Sua tendência em trabalhar a partir da saturação de clichês gastos do cinema que se afirmam enquanto tais é maneira de criar uma distância interna em relação ao que é apresentado. A saturação indica que o que é posto não deve ser levado a sério, da mesma maneira que os valores abstratos em contextos invertidos que guiam as ações dos personagens só podem ser assumidos de maneira irônica. No entanto exatamente graças a essa autoderrisão, valores e estruturas narrativas que pareciam em crise poderão se perpetuar. Temos um nome para essa maneira de perpetuar critérios que, a todo momento, ironizamos: cinismo. Moral fundamentada Nesse contexto, poderia parecer que "Herói", de Zhang Yimou, seria o inverso do cinismo de Tarantino. Afinal, seu filme diz respeito a um mundo no qual os julgamentos morais parecem suficientemente fundamentados. Yimou quis contar a história de um guerreiro que é apresentado ao imperador de Qin, homem que procura unificar a China de maneira violenta, como o herói que matou os três maiores inimigos do soberano. Aos poucos, o imperador descobre que o pretenso herói é alguém que está lá para matá-lo. No entanto, no momento de agir, o herói compreende estar diante de alguém capaz de unificar o povo e pacificar o território. Ao invés de cumprir sua missão, ele se deixa sacrificar, afirmando que o sacrifício e a dor dos indivíduos às vezes são os preços a serem pagos para a realização da felicidade de um povo. À parte a estética new age requentada e o hegelianismo vulgar -que consiste em pensar que o universal só pode se realizar quebrando o interesse dos particulares e que, depois, podemos justificar tudo com uma teoria do fato consumado, que cura as feridas do espírito sem deixar cicatrizes, algo bem ao gosto da brutalidade do capitalismo de Estado chinês-, resta do filme uma certeza. Sua boa aceitação nos EUA talvez demonstre que, contra o cinismo ambiente, nada melhor do que reatualizar de vez em quando uma ética do sacrifício. Ainda mais quando sempre tem alguém querendo vender a idéia de que, após a violência belicista do curso atual do mundo, a democracia pacificadora brilhará. Ao que parece, a indústria cultural quer nos acostumar a ter de escolher entre sacrifício e cinismo. Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp). Texto Anterior: + poema Próximo Texto: + sociedade: Os marqueteiros da web Índice |
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