São Paulo, domingo, 01 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ contraponto

Ao oporem uma ética coletiva e uma individual, "Herói", de Zhang Yimou, e "Kill Bill", de Quentin Tarantino, podem ser entendidos como formas compensatórias criadas pela indústria cultural

Entre o sacrifício e o cinismo

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Kill Bill", de Quentin Tarantino e "Herói", de Zhang Yimou, são dois filmes que, aparentemente, nada têm em comum, a não ser suas infindáveis cenas de lutas marciais estilizadas. No entanto os dois podem ser vistos como sintomas complementares de certos impasses sobre a maneira como a ideologia hegemônica da contemporaneidade quer nos apresentar estruturas de julgamentos e valores.
"Kill Bill" se propõe a contar a história de uma vingança. Durante o ensaio de seu casamento, uma ex-assassina profissional, grávida, especialista em artes marciais, vê seus antigos companheiros entrarem na igreja para trucidarem todos os presentes. Ela escapa por pouco, passa cinco anos em coma e, ao acordar, promete vingança irrestrita. O filme, em duas partes, é a história dessa vingança movida a sangue farto.

Assassino com princípios
Como o assassino de "Pulp Fiction", que precisa justificar suas ações com versos do Antigo Testamento sobre a ira justa do Senhor, Uma Thurman segue lá seus princípios de conduta. Ela procura não matar uma mãe na frente da filha, ela tenta recusar-se a duelar com uma menor de 18 anos, enfim, ela segue todas as regras da sua profissão com zelo, principalmente aquela que legitima a vingança com suas exigências irrestritas e imaginárias de reparação.
Da mesma maneira que os personagens dos livros de Sade, os atos cruéis de Uma Thurman não são simples resultados de um gozo assassino, mas são feitos em nome e em respeito a uma lei com fortes disposições normativas. As referências ao Oriente e aos samurais apenas servem para salientar uma submissão à lei que orienta a conduta da protagonista.
Essa história de um "anjo exterminador samurai" poderia servir para expor o caráter abstrato de disposições morais que parecem flutuar em um ambiente que as nega. Ela poderia demonstrar a esquizofrenia social, tão comum atualmente, que consiste em sustentar alguns valores e normas de conduta arbitrariamente escolhidos, como se isso bastasse para distinguir nossa brutalidade da pura e simples barbárie pretensamente feita pelo outro.
No entanto Tarantino quer mais do que isso. Na verdade, ele quer levar a ambigüidade ao extremo a fim de nos colocar lá onde nenhum julgamento moral parece ser possível. Isso a ponto de mostrar que, por trás desse anseio de vingança, pulsa a verdade de um amor trágico entre Bill e Thurman. E quem pode ser mesquinho o suficiente para julgar moralmente um amor trágico? No entanto mesmo essa tragédia tem uma função "irônica".


Os atos cruéis de Uma Thurman não são simples resultados de um gozo assassino

Auto-ironia
Aqui, vale uma digressão. Os filmes de Tarantino são estilizações de uma disposição cada vez mais comum na ideologia da indústria cultural. Não vivemos mais na época em que a ideologia procurava naturalizar modelos normativos de conduta e tipos sociais ideais, até porque isso exigiria identificações com tipos sociais pautados pela ética da convicção; o que é impossível em situações de crise de legitimidade como a nossa. Mas notemos essa disposição atual dos produtos da indústria cultural em ironizar a todo momento aquilo que eles próprios apresentam. Esta autoderrisão é uma maneira astuta de perenizar estruturas narrativas e quadros de socialização, mesmo reconhecendo que eles já estão completamente arruinados.
Os filmes de Tarantino são feitos dessa autoderrisão. Sua tendência em trabalhar a partir da saturação de clichês gastos do cinema que se afirmam enquanto tais é maneira de criar uma distância interna em relação ao que é apresentado. A saturação indica que o que é posto não deve ser levado a sério, da mesma maneira que os valores abstratos em contextos invertidos que guiam as ações dos personagens só podem ser assumidos de maneira irônica.
No entanto exatamente graças a essa autoderrisão, valores e estruturas narrativas que pareciam em crise poderão se perpetuar. Temos um nome para essa maneira de perpetuar critérios que, a todo momento, ironizamos: cinismo.

Moral fundamentada
Nesse contexto, poderia parecer que "Herói", de Zhang Yimou, seria o inverso do cinismo de Tarantino. Afinal, seu filme diz respeito a um mundo no qual os julgamentos morais parecem suficientemente fundamentados. Yimou quis contar a história de um guerreiro que é apresentado ao imperador de Qin, homem que procura unificar a China de maneira violenta, como o herói que matou os três maiores inimigos do soberano. Aos poucos, o imperador descobre que o pretenso herói é alguém que está lá para matá-lo.
No entanto, no momento de agir, o herói compreende estar diante de alguém capaz de unificar o povo e pacificar o território. Ao invés de cumprir sua missão, ele se deixa sacrificar, afirmando que o sacrifício e a dor dos indivíduos às vezes são os preços a serem pagos para a realização da felicidade de um povo.
À parte a estética new age requentada e o hegelianismo vulgar -que consiste em pensar que o universal só pode se realizar quebrando o interesse dos particulares e que, depois, podemos justificar tudo com uma teoria do fato consumado, que cura as feridas do espírito sem deixar cicatrizes, algo bem ao gosto da brutalidade do capitalismo de Estado chinês-, resta do filme uma certeza.
Sua boa aceitação nos EUA talvez demonstre que, contra o cinismo ambiente, nada melhor do que reatualizar de vez em quando uma ética do sacrifício. Ainda mais quando sempre tem alguém querendo vender a idéia de que, após a violência belicista do curso atual do mundo, a democracia pacificadora brilhará. Ao que parece, a indústria cultural quer nos acostumar a ter de escolher entre sacrifício e cinismo.

Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).

Texto Anterior: + poema
Próximo Texto: + sociedade: Os marqueteiros da web
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.