São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AUTORES
O furor pós-moderno de uma ilha

Por que os albaneses não vão para o Brasil em vez de buscar a arrogância européia?


ANTONIO NEGRI
especial para a Folha, de Paris

Mas o que querem estes albaneses? É o que os jornais europeus estão se perguntando há certo tempo, enquanto publicam fotografias tão absurdas a ponto de parecerem as fotos publicitárias de Toscani/Benetton. Fotos de milhares de homens (ou talvez não?) apinhados (ou seriam larvas, ou insetos?), grudados em escombros marítimos em alto-mar, em embarcações que nem sequer a imaginação de Conrad soube criar ao narrar o tráfego dos "coolies" no Pacífico...
Fotos incríveis: seriam talvez montagens, um daqueles espetáculos criados pela mídia, como os "massacres" de Timsoara ou a "guerra incruenta" do Golfo? Mas quem são esses desesperados albaneses? Já havia os tchetchenos, os curdos ou os índios do Chiapas a nos exporem, quando não ao senso do desconhecido, a um certo constrangimento geográfico... Todavia, nesses casos, para responder à curiosidade, podíamos, de qualquer modo, reconhecer o inimigo desses povos -o imperialismo russo para os tchetchenos, o racismo genocida branco contra os índios americanos, e, enfim, contra os curdos, o ódio nacionalista de todos os vizinhos (e são muitos, e nenhum deles é especialmente simpático). Mas o que querem esses albaneses? Não estão famintos, não estão trucidando uns aos outros, nenhum inimigo os ultraja... Por que, então, tanta agitação, tanta intemperança e este alastramento pelos mares?
E por que só fogem por mar, e não se vão, antes, rumo aos Bálcãs? Evidentemente, para os albaneses, a Albânia é uma ilha... Mas uma ilha de que continente? É dúbio. Durante um certo período, de fato, os albaneses tinham declarado fidelidade à Rússia asiática de Stálin; depois, cada vez mais longe, à China futurista de Mao... Parece que agora voltaram a se reconhecer no Mediterrâneo; mas com tal e excessivo amor que a amada Europa os rechaça. Por que não se dirigem a outro lugar? Por que não ao Brasil de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, certamente mais apresentável do que os velhos amigos asiáticos e, talvez, por tradição secular, menos cheio de luxo do que os arrogantes europeus na integração de populações diferentes?
Mas, agora, desligada a TV e dobrados os jornais, voltemos a nós, perguntando-nos mais uma vez: por que esses albaneses se comportam deste modo? Quem são afinal? Tentemos responder com simplicidade. À primeira vista são pessoas relegadas ao "banlieue" (subúrbio) da Europa e que pressionam rumo ao centro da Europa. Quantas vezes, circulando entre as imensas favelas do Cairo ou de Istambul, percebemos a mesma pressão, o mesmo desejo de fugir e o anseio de encontrar, em alguma outra parte, uma vida melhor... Por que motivo aqueles proletários, que haviam sido arrancados dos campos egípcios ou turcos, deveriam ter aceito o atoleiro das margens do Império?
Por que razão a sua busca de trabalho e bem-estar deveria -santo Deus!- ter parado ali, naquela margem horrorosa, naquele monstruoso gueto? Mas tanto o Cairo quanto Istambul fazem parte de nações bem ordenadas: entre os miseráveis, a polícia circula, onipresente, e mantém na calma até os mais indóceis. E ademais, além da fronteira do gueto, existe a dos Estados: como é difícil atravessá-la. Mas todos pensam em fazê-lo; muitos tentam, poucos conseguem. Frustrações e dor acumulam-se em torno das raias da Europa, destes muros horríveis em comparação aos quais o Muro de Berlim era uma bagatela.
Ora, o proletariado albanês deparou-se com uma situação nova, em muitos aspectos excepcional. Com efeito, naquela ilha, orgulhosa e solitária, a queda do socialismo não sucedeu a instauração de um regime capitalista. Na ausência de uma verdadeira iniciativa da comunidade internacional, impôs-se na Albânia uma espécie de caricatura carnavalesca do poder capitalista, um bando de "banqueiros", meio dirigentes lotéricos, meio ladrões, simplesmente.
Este sistema não tardou a se dissolver. Desse modo, por acaso, os albaneses pouparam-se da "transição ao capitalismo", ou seja, daquele banho no "fim da história" que não é menos feroz e inútil do que era a "transição ao socialismo". O isolamento cultural, portanto, salvou a Albânia do destino dos outros países socialistas, convertidos ao capitalismo selvagem; ao mesmo tempo, porém, com a continuidade do Estado também destruiu o isolamento geográfico daquele país, e permitiu que o proletariado albanês se reconhecesse, de imediato, na comunidade internacional, sem polícias e fronteiras que o refreassem.
Eis o escândalo! Aquele povo asiático tornou-se, de uma só vez, uma multidão pós-moderna. Num mercado global, esta considera óbvio o fato de poder oferecer a si própria como mercadoria; por conseguinte, exercita, com todos os meios à disposição, aquele direito ao êxodo e à busca nômade de trabalho que a propaganda capitalista lhe prometeu no cenário da mundialização.
Mas se trata, precisamente, de um escândalo. O capitalismo, mesmo o capitalismo liberal e mundializado dos últimos tempos, tem que ser bem ordenado: não pode admitir um povo não disciplinado dentro de um Estado, uma multidão nômade que vai aonde quer, um mar como um faroeste, aberto à fortuna. E então não, assim não dá. O pós-moderno não pode ser interpretado por multidões em busca de salário. Se todos forem liberais, então será a anarquia. A mulher albanesa, fiel no patriarcado atávico, quando se lança ao mar torna-se uma puta; o homem albanês, quando se aparta das ligações feudais, torna-se mafioso; enfim, não estão realmente querendo destinar aquelas lindas crianças, de olhos redondos e negros, ao mercado da pedofilia?
Assim, sob o comando dos "sargentinhos" italianos, enviou-se uma armada à Albânia para acalmar os furores pós-modernos daquele povo, para reconstruir ali um Estado, para recuperar a continuidade de uma classe dirigente entre o despotismo asiático e o neoliberalismo pós-moderno. E, principalmente, para bloquear aquele novo desejo de liberdade... Que espetáculo barroco, seiscentista, hobbesiano, feroz!
Por outro lado, observem o que acontecia apenas um século depois, na época das Luzes. Então, em vez de cuidar da segurança, os filósofos pensavam a democracia. E, numa outra ilha do Mediterrâneo, a Córsega (um país tão orgulhoso e feroz quanto a Albânia), imaginavam construir uma ordem constitucional perfeita. De Rousseau a Bonarroti provém, portanto, o conselho de não enviar à Albânia militares e padres ("id est" jornalistas) para reorganizar ali o stalinismo de Estado -mas, ao contrário, o de tentar abrir, a este proletariado pós-moderno os caminhos que do "banlieue" levam ao centro do Império. Utopia? Talvez. Mas, como no século 18, quem poderá deter estas multidões em revolta?

Antonio Negri é cientista social italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34)entre outros; ele escreve mensalmente na Folha na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã