São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997.



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A bomba-relógio

O confronto entre a perfídia de "Dom Casmurro" e a inocência de Helena Morley


especial para a Folha

Schwarz aprofunda a análise do narrador de "Dom Casmurro", em que a qualidade alta da prosa, como diz, abafa ou disfarça o caráter pouco estimável e até monstruoso de Bentinho. A seguir, confronta o romance de Machado e as anotações de Helena Morley.
Folha - Fale um pouco sobre "Dom Casmurro".
Schwarz -
A invenção mais complexa e desconcertante de Machado é o narrador de seus romances, que, na minha opinião, se deve entender como uma personagem entre as demais, com interesses particulares, além de pouco estimáveis, no pólo oposto da compreensão imparcial e confiável que costumamos buscar em literatura.
Folha - O sr. tem certeza? Na escola, os professores de moral e cívica diziam que "Dom Casmurro" era o refinamento sentimental supremo e que todos os brasileiros deveriam se mirar nele.
Schwarz -
A tese do narrador pouco estimável é inesperada porque a qualidade muito alta da prosa, parecendo estranha ao mundo acanhado das outras figuras, serve de disfarce, de garantia moral. Tem cabimento desconfiar do cavalheiro cético e requintado -a superioridade em pessoa- que está por detrás da escrita? Como duvidar da sua isenção e de seus juízos? À primeira vista, Brás Cubas, Dom Casmurro e o Conselheiro Aires são modelos culturais a imitar. A mesma coisa para o estilista perfeito que tem a palavra no "Quincas Borba". Entretanto, se entendermos que, além de protótipos de classe dominante, eles são objeto da denúncia deliberada, ferina e meticulosa, a ficção machadiana dá o salto para o genial.
A ousadia do procedimento é grande e, por isso mesmo, de assimilação difícil. O escritor cultiva as qualidades intelectuais mais ambicionadas pela elite, trata de as aperfeiçoar a um grau inédito na literatura brasileira, mas com o propósito de lhes expor o funcionamento de classe na sua crueldade completa. A viravolta transforma o manual de elegância para gente fina -que é como a ficção machadiana foi lida- numa prosa de extraordinário teor de crítica social. Aperfeiçoar, mas para derrubar de mais alto.
Folha - Explique mais um pouco o tamanho dessa queda.
Schwarz -
O exemplo acabado desta estratégia encontra-se em "Dom Casmurro", com a sua utilização sarcástica do ultraconformismo. Trata-se da recordação dos amores juvenis de Bentinho e Capitu, seguida pela crônica da felicidade conjugal dos dois e do adultério cometido pela mulher, que deu à luz um filho parecido com o melhor amigo do marido.
Nada mais indiscutível do que a pureza do primeiro amor de um menino e a maldade das filhas de Eva, que pecam por instinto e, por isso mesmo, são sedutoras e deixam desolados os moços bons. Estes chavões, entrelaçados a uma coleção de cenas caras ao convencionalismo saudosista, logo se tornaram a unanimidade nacional.
Demorou 60 anos até que uma professora norte-americana, estranhando a leitura bárbara que Bentinho faz do "'Otelo" de Shakespeare, descobrisse que Machado não queria celebrar, mas criticar aqueles clichês do patriarcalismo. Estava desfeita a cilada que o romancista havia armado, certamente com propósito crítico. O que diria ele se soubesse que a sua bomba-relógio iria levar mais de meio século para estourar?
Folha - Uma bomba tão póstuma não deixa de ser um problema. Dá para imaginar um fabricante de bombas que não cuide da eficácia?
Schwarz -
De fato, a técnica de Machado é fantasticamente agressiva, ao mesmo tempo que disfarçada, para não dizer abafada. Cem anos depois, a questão da eficácia é matéria vencida. Mas a denúncia violenta embrulhada em roupagem ostensivamente conformista forma uma combinação especial, que não é fácil de interpretar. A absoluta vitalidade que Machado conservou, ou que ele vem adquirindo, tem a ver com esta construção. É questão para pensar.
Folha - O sr. deu continuidade a uma linha de leituras anteriores?
Schwarz -
É o que eu ia contar. O livro de Helen Cauldwell, "The Brazilian Othello of Machado de Assis", tem dois focos: o uso que o escritor faz de Shakespeare e os estragos produzidos pelo ciúme, entre os quais a condenação e ulterior difamação de Capitu pelo seu marido. A viravolta produzida na leitura de "Dom Casmurro" não podia ser mais radical, mas o âmbito da reconsideração inicialmente se limitava às relações entre marido e mulher. O passo seguinte foi dado por um machadiano inglês, John Gledson, que observou que a caracterização de classe de Bentinho e Capitu é muito rica e fiel às peculiaridades da estrutura social brasileira, o que imprimia um caráter historicamente específico ao conflito. Machado, como bem lembra Gledson, trabalhava na invenção de intrigas que fossem significativas de um ponto de vista nacional. A propósito, não deixa também de ser historicamente sugestivo que a virada na interpretação deste romance tão preso aos aspectos mais idealizados da dominação de classe no Brasil tenha sido obra de críticos estrangeiros. Dito isso, meu trabalho retoma estas conclusões e trata de vê-las em termos da dinâmica interna do romance, a qual procuro caracterizar como problema a um só tempo histórico e estético, que trato de interpretar em seu rendimento.
Folha - O de Helena Morley parece um livro cândido, nada a ver com o cipoal de perfídias que o sr. explora em "Dom Casmurro". Não será forçado aproximá-los?
Schwarz -
Se a linha de contato não for arbitrária, a diferença aumenta o interesse da comparação. Mas, antes de comentar os pontos em comum, devo dizer que "Minha Vida de Menina" não precisa da vizinhança de "Dom Casmurro" para ser um ótimo livro.
Dito isso, postas lado a lado, as duas obras tornam tangível o que se poderia chamar de "matéria brasileira": um conjunto de relações altamente problemático, originário da colônia, solidamente engrenado, incompatível com o padrão da nação moderna, ao mesmo tempo que é um resultado consistente da própria evolução do mundo moderno, a que serve de espelho ora desconfortável, ora grotesco, ora utópico (nos momentos de euforia). A tenacidade desta estrutura é ponto assentado de nossa historiografia. O que procurei indicar no livro é que vários momentos fortes da inteligência brasileira, inclusive as invenções literárias mais originais, lhe respondem de forma também estrutural e lhe devem a relevância.
Folha - Vamos voltar à comparação entre os livros?
Schwarz -
O narrador especioso de Machado de Assis reúne uma fina estampa, aparentando máxima civilidade, às prerrogativas da propriedade em terra de escravos, agregados e gente pobre sem direitos. Os meandros meio inconscientes e meio cínicos desta figura, que, sem exagero, sintetiza e revela um aspecto da incongruência mundial, são uma grande especialidade machadiana. É claro que no livro de Helena Morley, que não tem maiores intenções de arte, não há dispositivos narrativos com essa potência ou grau de deliberação.
Entretanto, as mesmas relações que em "Dom Casmurro" estão condensadas e atritadas no íntimo do narrador, em "Minha Vida de Menina" se encontram em ordem dispersa, mas variada e cheia de correspondências. A intensidade e a vertigem moral não se comparam, mas a complexidade e o interesse dos mesmos conflitos estão lá. Espelhados um no outro, os livros dizem muito sobre a dimensão estética da realidade e sobre a dimensão real de um artifício artístico supremo como é o narrador machadiano.
Folha - O sr. escreve páginas e páginas sobre a qualidade literária de "Minha Vida de Menina". Será que não acabou gostando mais de Helena Morley do que de Machado?
Schwarz -
Não são livros ou autores que compitam. Mas, de fato, a beleza eventual da escrita que não ambição de arte é um tópico interessante, que convida a crítica a sair do espaço um pouco estreito das teorias literárias do momento. Além disso, havia o desafio de persuadir o leitor de que o livro é mais do que engraçadinho.
Folha - Mas os episódios de Helena são singelos. O sr. os aproxima, contrasta, concatena etc., para fazer com que surja a sua complexidade. Não pode haver exagero nisso? E o sr. não corre o risco de estar fazendo a propaganda de um realismo simplório, que aposta no alcance de anedotas triviais?
Schwarz -
A pergunta é boa. A ressonância entre os episódios de "Minha Vida de Menina" é grande e do maior interesse. O leitor vai verificar se exagerei e se as relações que procurei indicar não estão lá. Quanto à propaganda do realismo, garanto que não é isso. Não há dúvida que a graça do livro está na simplicidade das anedotas, que vão multiplicando aspectos, às vezes complementares, às vezes contraditórios, até compor um universo de complexidade surpreendente. E é verdade também que, quando ela é possível, a simplicidade complexa tem algo sem igual. Mas ela é possível só raramente, na dependência de circunstâncias históricas que procurei sugerir.
Folha - A certa altura, o sr. compara a simplicidade de Helena à prosa túrgida de algumas grandes figuras da virada do século. O sr. está mesmo querendo dizer que ela escreve melhor que Euclides da Cunha ou Raul Pompéia? Schwarz - A palavra não seria essa, mas, de fato, me parece monstruosa a salada que junta naturalismo e parnasianismo, "écriture artistique" e racismo científico, eloquência épica e terminologia técnica. Por momentos, a mistura chega a ter um rendimento estético à revelia, pela enormidade da alienação. O lado nocivo surge quando se trata dos pobres, que, em lugar de serem percebidos na posição de classe complementar à de quem fala, são colocados na escala evolutiva das raças, das religiões, dos estratos geológicos, a uma distância de milênios, quase que fazendo parte de outra espécie.
O contraste com a prosa franca e espirituosa de Helena, inimiga de afetações de superioridade, é grande. Por ser criança e não ser escritora, ela passa ao largo das alienações ideológicas e artísticas em que se enroscou parte dos intelectuais da época. Escolada na informalidade familiar, íntima de toda sorte de trabalhos, bem como da pobreza e dos ridículos do mando, a menina não erra na escrita e, muitas vezes, acerta de forma arrebatadora. Seja pelas causas, seja pelos efeitos, a diferença intriga.
Folha - É verdade que o sr. pensou em comparar Machado de Assis e Henry James?
Schwarz -
Alguém devia aproximá-los, porque vale a pena. A entrada podia estar no uso crítico que os dois fazem do ponto de vista. Já se escreveu muito sobre a técnica dos refletores, em que as personagens são vistas umas por intermédio das outras, desaparecendo o prisma onisciente, que era superstição. A técnica é essa, mas o seu peso cresce muito quando ela é atravessada por diferenças que não sejam apenas individuais, noutras palavras, quando o espelhamento recíproco diz respeito à própria estrutura do processo.
Em James, por exemplo, o comercialismo meio puritano ou o puritanismo meio comercial da cultura norte-americana vê seu reflexo lamentável nos olhos tão prezados da civilizada Europa, cujo amálgama burguês-feudal, entretanto, lhe causa sagrado horror. A integração e ocasional oposição dos ângulos bárbaro e civilizado nos cavalheiros machadianos já foi comentada. James e Machado foram leitores atentos de seus predecessores nacionais e trataram de tirar proveito do trabalho destes, de modo a tornar mais representativo o seu próprio. Os dois conseguiram desprovincianizar a experiência de seus países mal ou bem periféricos, de modo a vê-la como um problema contemporâneo etc.



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