São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997.



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LIVROS
As molecagens de um narrador

O escritor Sérgio Sant'Anna comenta o lançamento de seus dois novos livros


JOSÉ GERALDO COUTO
enviado especial ao Rio

Aos 55 anos, com mais de uma dúzia de livros publicados, o escritor Sérgio Sant'Anna chega à maturidade sem abrir mão de dois atributos que considera essenciais à sua obra: o experimentalismo e a molecagem.
Sant'Anna está lançando dois livros: o romance "Um Crime Delicado" e a coletânea "Contos e Novelas Reunidos", que inclui quatro relatos inéditos.
A inquietação que caracteriza sua literatura é, em parte, fruto de sua singular trajetória de vida. Nasceu no Rio, mas viveu em Belo Horizonte dos 17 aos 34 anos, com dois interregnos: em 1968-69 morou em Paris, onde supostamente deveria estudar direito financeiro; em 1970-71 participou do International Writing Program da Universidade de Iowa (EUA).
Entre suas principais obras, destacam-se os livros de contos "Notas de Manfredo Rangel, Repórter" (1973) e "O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro" (1982), além dos romances "Confissões de Ralfo" (1975) e "A Tragédia Brasileira" (1987).
Nesta entrevista, em seu modesto apartamento no bairro carioca de Laranjeiras, Sant'Anna falou à Folha sobre literatura, sexo, religião e vanguarda.

Folha - Nos quatro contos inéditos e no romance "Um Crime Delicado" há um tema comum, o da perversão sexual, levando eventualmente ao crime. Essa recorrência é intencional?
Sérgio Sant'Anna -
Não. Eu começo a fazer espontaneamente. Quando vejo, pô, caí nisso de novo. Eu mesmo fico assustado. Mas não quero me reprimir.
E esse negócio do crime, da perversão da sexualidade, cria um conflito dramático maior. Naturalmente, você chega a isso. Uma vez, até já me acusaram de ninfeteiro em público. Era uma professora universitária, num debate. Isso porque o personagem da "Tragédia Brasileira", um diretor de teatro, era apaixonado por uma garotinha e tratava muito mal uma vizinha que era coroa. Mas era o diretor de teatro, não era eu. Eu não trato ninguém mal e nem saio pegando garotinhas por aí.
Mas eu até já descobri por que existe essa recorrência da sexualidade infantil no meu trabalho. Isso é fruto da educação que tive, que foi extremamente repressora e religiosa. Minha família é nelsonrodriguiana (risos). Eu só descobri isso aos 35 anos. Minha mãe tinha sido mãe solteira, na base da sedução, isso na década de 30. Então, esse filho foi criado fora, foi uma confusão. Só descobri isso adulto. Meu irmão me contou, eu fiquei pasmo -mas aí entendi tudo. Esse clima de mistério e repressão tinha criado, desde a infância, um fascínio pela sexualidade.
Folha - Você se sente mais à vontade no conto ou no romance?
Sant'Anna -
Tenho uma tendência muito grande a concentrar as coisas. O romancista, no sentido tradicional da palavra, tem tendência a puxar os fios todos da história. Eu tenho a tendência contrária, que vem muito do contista. Vou no osso, ao que me interessa.
Muitas vezes o tamanho de um texto se define logo no início, muitas vezes se define no desenvolvimento da idéia. Por exemplo, a princípio eu faria de "Um Crime Delicado" um romance bastante mais longo. Tive um grande trabalho em reduzir.
Folha - Você chegou a escrever mais páginas?
Sant'Anna -
Cheguei a escrever e, principalmente, cheguei a planejar mais páginas. Mas percebi o seguinte: como esse livro tratava de muitas discussões sobre arte (teatro, artes plásticas, literatura), se eu deixasse, aqueles personagens fatalmente me levariam a mais quadros, mais peças de teatro, mais discussões sobre arte... Acho que ficaria chato.
Folha - Você percebe fases definidas na sua obra?
Sant'Anna -
Percebo claramente. Minha formação foi em Belo Horizonte, com a revista "Estória", em que a gente sofria muito a influência do Affonso Ávila, poeta ligado ao grupo concretista.
Então, ali a gente escrevia uns contos herméticos, experimentais. Mesmo assim, meu primeiro livro ("Os Sobreviventes", 1969) é muito intimista. Eu ainda estava em Minas e estava ainda tumultuado por problemas psicológicos.
Mas, logo a partir do "Manfredo Rangel" (1973), que escrevi depois de morar na França e nos EUA, minha literatura se torna muito influenciada pelas inquietações da época, e minha escrita, marcadamente experimental. Mas eu não gosto de me repetir. Minha idéia é, a cada livro, partir para uma outra coisa. Depois, há a evolução normal do tempo, da idade. Penso que eu continuo a experimentar, mas de um modo não tão visível.
Várias pessoas dizem, inclusive em teses universitárias, que o meu trabalho é pós-moderno. Eu nunca me debrucei sobre isso para saber se é ou não é. Mas suponho que ele passou de um tipo de vanguarda que era explícita, que era desejada, para uma coisa que continua a experimentar, mas dentro de um formato que eu diria mais rigoroso, mais trabalhado.
Eu reivindico para este último livro um espírito duchampiano. O Duchamp tem aquela sua "Noiva Despida por Seus Celibatários, Mesmo", que é um jogo erótico cheio de mecanismos, né? Para mim, este livro tem esse jogo. Só que os mecanismos do Duchamp são bem mais abstratos.
Folha - Em "Um Crime Delicado", há uma operação metalinguística mais complexa que em seus livros anteriores. O texto do crítico incorpora os quadros, as peças de teatro etc.; mas o mesmo crítico se considera parte de uma espécie de obra total concebida pelo artista plástico. Você pensa o livro como uma guerra de linguagens, uma tentando assimilar a outra?
Sant'Anna -
Sim. Eu assinaria embaixo o que você disse, mas acrescentaria que isso surgiu naturalmente. A metalinguagem, comigo, nasceu sempre naturalmente. Como sou incapaz, talvez, de escrever um romance realista, acabei criando uma ficção que é sempre sobre a representação. É como se o mundo, para mim, já surgisse filtrado pela representação.
Quanto a esse jogo entre o crítico e o artista, há um elemento de molecagem do qual eu gosto muito. Um está jogando armadilhas para o outro. Eles estão, de certa forma, numa luta estética, e no meio está a paixão pela mulher manca.
Mas há coisas que não se explicam. Essa relação entre um crítico de teatro e uma mulher manca, para mim é uma relação que surgiu espontaneamente, como um dado bruto. Inclusive esse lance do fetiche: tem algo de atraente numa pessoa que manca.
Folha - A mistura de ensaio e ficção aparece em vários momentos da sua obra. De onde vem isso?
Sant'Anna -
É uma coisa muito natural. Digamos que eu tenha uma certa dificuldade com a realidade bruta.
Mas o que há de ensaístico nos meus livros está cheio de armadilhas. Há um lance de paródia ao ensaio. Uma coisa que me interessou muito foi a Patafísica, do Alfred Jarry, que é você usar uma linguagem muito séria, mas, subrepticiamente, conduzir a uma molecagem. Meu personagem está consciente disso também.
Folha - Na ficção brasileira contemporânea, com que autores você percebe afinidades?
Sant'Anna -
Eu leio de tudo, mas, no momento, acredito que o que estou escrevendo é absolutamente meu. Gosto muito do trabalho do João Gilberto Noll. Invejo, para ser mais claro. Mas o que estou buscando não está com ninguém. No princípio, algumas pessoas viram Clarice Lispector; outras, Rubem Fonseca. Agora, eu acho que não há nada de ninguém.
Folha - Com o Rubem Fonseca há talvez uma proximidade temática: o crime, as perversões...
Sant'Anna -
Quando eu estava escrevendo "Um Crime Delicado", como o livro envolvia assuntos criminais e jurídicos, consultei duas pessoas que são feras no assunto e que foram gentilíssimas: o Nilo Batista e o Rubem Fonseca. O Rubem ficou muito interessado no tema, ligou várias vezes, me emprestou um livro. Mas percebi que, se ele fosse escrever essa história, iria desenvolver mesmo, iria até o fim no aspecto criminal.
Eu, não. Queria saber para desrespeitar. Aprendi tudo o que precisaria sobre o processo penal no caso, mas queria que o julgamento virasse um processo estético, uma briga entre o pintor e o crítico.
Folha - Outro autor que é um ponto de referência quando se fala em conto é Dalton Trevisan. Qual é sua relação com a obra dele?
Sant'Anna -
Quando comecei a escrever, eu lia Dalton Trevisan, achava bom, mas não era a linha que eu gostava. Aquele negócio de ele estar preso a Curitiba não me tocava muito, naquela época tão louca dos anos 60.
Ultimamente, eu leio todos os livros do Dalton Trevisan com uma admiração profunda. Acho que é um dos contistas mais importantes do mundo. Aquele aparente anacronismo dele é, na verdade, um charme. E, em termos de linguagem, não conheço ninguém no mundo que faça esse tipo de conto. Mas é um caminho fechado, é impossível tentar fazer igual. O problema dos grandes mestres é que a gente tem que ler e esquecer na hora de escrever.
Uma influência que percebo nitidamente e admito é a do teatro, da encenação teatral, que me fascina, e das artes plásticas. Tudo o que vejo representado plasticamente, ou cenicamente, é uma influência que posso assimilar sem cair na do outro. Se leio um livro do Rubem Fonseca, já fica problemático escrever um diálogo depois.
Folha - E o cinema? Influenciou seu modo de narrar?
Sant'Anna -
Sofri uma influência muito forte do Godard, pois ele é o tipo do cara que ensina a você liberdade. O Godard se permite, no cinema, misturar ensaio, personagens reais, discussões de todo tipo. Eu também faço isso, quando quero, no meu trabalho.
Folha - Como foi sua passagem pelo International Writing Program da Universidade de Iowa?
Sant'Anna -
Basicamente, a gente bebia. Chamávamos o programa de International Drinking Program. Bebia-se, queimava-se fumo adoidadamente. Era uma época de liberdade, mesmo.
Mas me lembro que Bob Wilson estava na cidade. Vendo as peças dele, aconteceu como quando vi os filmes do Godard. Ele me mostrou coisas que, de alguma forma, eu incorporei na minha literatura. Nas "Confissões de Ralfo" tem um capítulo que chama "Au Théâtre" e é totalmente inspirado em Bob Wilson.
Depois, eu morei num hotel em que estavam o Kenneth Brown, autor de um dos maiores sucessos do Living Theatre, e o Seymour Krim, que era um ensaísta da "beat generation".
Esse tipo de vivência, somado com minha passagem em 68 pela França, me estimulou a pensar: "Vou fazer a arte do meu tempo".
Folha - Seus últimos relatos têm tido como protagonistas escritores, artistas, jornalistas. Mas houve épocas em que você tratou também de personagens de outra extração: pedreiros, futebolistas. Por que ocorreu esse afunilamento?
Sant'Anna -
Para ser honesto, considero isso uma limitação. Mas o escritor só pode falar mais ou menos do que ele conhece, né? Futebol é uma coisa que eu conheço muito. Fui criado nesse meio, tive um tio goleiro do Fluminense.
No conto "No Último Minuto", do "Manfredo Rangel", eu fui, que eu saiba, o primeiro cara a descobrir que o futebol já era uma coisa diferente, que era um fenômeno midiático. O protagonista, um goleiro, se vê pela televisão.
Folha - Num dos contos novos, "Estranhos", o protagonista se apresenta como "subeditor de um segundo caderno, fazendo entrevistas por telefone e escrevendo frescuras sobre artistas egocêntricos". Você gosta desse tipo de piada quase particular?
Sant'Anna -
Não sou uma pessoa maldosa, no sentido de gozar para causar mal. Eu gozo muito a mim mesmo, também. A gozação é generalizada. Em "Um Crime Delicado", uma coisa que me divertiu muito foi bolar uma pessoa que faria uma adaptação de Proust para o teatro, e depois eu mesmo fazer a crítica dessa suposta adaptação. Foi uma coisa muito trabalhosa porque tive que reler "A Prisioneira" e "Albertine Desaparecida", depois li uma biografia do Proust -tudo isso para aproveitar num pequeno espaço. Mas é uma coisa divertidíssima você criticar uma coisa que você mesmo inventou.

AS OBRAS

Contos e Novelas Reunidos - Sérgio Sant'Anna. Ed. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 720 págs. R$ 48,00.

Um Crime Delicado - Sérgio Sant'Anna. Ed. Companhia das Letras. 132 págs. R$ 17,00.



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