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LIVROS
As molecagens de um narrador
O escritor Sérgio Sant'Anna
comenta o lançamento de
seus dois novos livros
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JOSÉ GERALDO COUTO
enviado especial ao Rio
Aos 55 anos, com mais de uma
dúzia de livros publicados, o escritor Sérgio Sant'Anna chega à maturidade sem abrir mão de dois
atributos que considera essenciais
à sua obra: o experimentalismo e a
molecagem.
Sant'Anna está lançando dois livros: o romance "Um Crime Delicado" e a coletânea "Contos e Novelas Reunidos", que inclui quatro
relatos inéditos.
A inquietação que caracteriza
sua literatura é, em parte, fruto de
sua singular trajetória de vida.
Nasceu no Rio, mas viveu em Belo
Horizonte dos 17 aos 34 anos, com
dois interregnos: em 1968-69 morou em Paris, onde supostamente
deveria estudar direito financeiro;
em 1970-71 participou do International Writing Program da Universidade de Iowa (EUA).
Entre suas principais obras, destacam-se os livros de contos "Notas de Manfredo Rangel, Repórter" (1973) e "O Concerto de João
Gilberto no Rio de Janeiro" (1982),
além dos romances "Confissões
de Ralfo" (1975) e "A Tragédia
Brasileira" (1987).
Nesta entrevista, em seu modesto apartamento no bairro carioca
de Laranjeiras, Sant'Anna falou à
Folha sobre literatura, sexo, religião e vanguarda.
Folha - Nos quatro contos inéditos e no romance "Um Crime Delicado" há um tema comum, o da
perversão sexual, levando eventualmente ao crime. Essa recorrência é intencional?
Sérgio Sant'Anna - Não. Eu começo a fazer espontaneamente.
Quando vejo, pô, caí nisso de novo. Eu mesmo fico assustado. Mas
não quero me reprimir.
E esse negócio do crime, da perversão da sexualidade, cria um
conflito dramático maior. Naturalmente, você chega a isso. Uma
vez, até já me acusaram de ninfeteiro em público. Era uma professora universitária, num debate. Isso porque o personagem da "Tragédia Brasileira", um diretor de
teatro, era apaixonado por uma
garotinha e tratava muito mal uma
vizinha que era coroa. Mas era o
diretor de teatro, não era eu. Eu
não trato ninguém mal e nem saio
pegando garotinhas por aí.
Mas eu até já descobri por que
existe essa recorrência da sexualidade infantil no meu trabalho. Isso
é fruto da educação que tive, que
foi extremamente repressora e religiosa. Minha família é nelsonrodriguiana (risos). Eu só descobri
isso aos 35 anos. Minha mãe tinha
sido mãe solteira, na base da sedução, isso na década de 30. Então,
esse filho foi criado fora, foi uma
confusão. Só descobri isso adulto.
Meu irmão me contou, eu fiquei
pasmo -mas aí entendi tudo. Esse
clima de mistério e repressão tinha
criado, desde a infância, um fascínio pela sexualidade.
Folha - Você se sente mais à vontade no conto ou no romance?
Sant'Anna - Tenho uma tendência muito grande a concentrar
as coisas. O romancista, no sentido tradicional da palavra, tem tendência a puxar os fios todos da história. Eu tenho a tendência contrária, que vem muito do contista.
Vou no osso, ao que me interessa.
Muitas vezes o tamanho de um
texto se define logo no início, muitas vezes se define no desenvolvimento da idéia. Por exemplo, a
princípio eu faria de "Um Crime
Delicado" um romance bastante
mais longo. Tive um grande trabalho em reduzir.
Folha - Você chegou a escrever
mais páginas?
Sant'Anna - Cheguei a escrever
e, principalmente, cheguei a planejar mais páginas. Mas percebi o
seguinte: como esse livro tratava
de muitas discussões sobre arte
(teatro, artes plásticas, literatura),
se eu deixasse, aqueles personagens fatalmente me levariam a
mais quadros, mais peças de teatro, mais discussões sobre arte...
Acho que ficaria chato.
Folha - Você percebe fases definidas na sua obra?
Sant'Anna - Percebo claramente. Minha formação foi em Belo
Horizonte, com a revista "Estória", em que a gente sofria muito a
influência do Affonso Ávila, poeta
ligado ao grupo concretista.
Então, ali a gente escrevia uns
contos herméticos, experimentais.
Mesmo assim, meu primeiro livro
("Os Sobreviventes", 1969) é muito intimista. Eu ainda estava em
Minas e estava ainda tumultuado
por problemas psicológicos.
Mas, logo a partir do "Manfredo
Rangel" (1973), que escrevi depois
de morar na França e nos EUA,
minha literatura se torna muito influenciada pelas inquietações da
época, e minha escrita, marcadamente experimental. Mas eu não
gosto de me repetir. Minha idéia é,
a cada livro, partir para uma outra
coisa. Depois, há a evolução normal do tempo, da idade. Penso que
eu continuo a experimentar, mas
de um modo não tão visível.
Várias pessoas dizem, inclusive
em teses universitárias, que o meu
trabalho é pós-moderno. Eu nunca me debrucei sobre isso para saber se é ou não é. Mas suponho que
ele passou de um tipo de vanguarda que era explícita, que era desejada, para uma coisa que continua
a experimentar, mas dentro de um
formato que eu diria mais rigoroso, mais trabalhado.
Eu reivindico para este último livro um espírito duchampiano. O
Duchamp tem aquela sua "Noiva
Despida por Seus Celibatários,
Mesmo", que é um jogo erótico
cheio de mecanismos, né? Para
mim, este livro tem esse jogo. Só
que os mecanismos do Duchamp
são bem mais abstratos.
Folha - Em "Um Crime Delicado",
há uma operação metalinguística
mais complexa que em seus livros
anteriores. O texto do crítico incorpora os quadros, as peças de teatro etc.; mas o mesmo crítico se
considera parte de uma espécie de
obra total concebida pelo artista
plástico. Você pensa o livro como
uma guerra de linguagens, uma
tentando assimilar a outra?
Sant'Anna - Sim. Eu assinaria
embaixo o que você disse, mas
acrescentaria que isso surgiu naturalmente. A metalinguagem, comigo, nasceu sempre naturalmente. Como sou incapaz, talvez, de
escrever um romance realista, acabei criando uma ficção que é sempre sobre a representação. É como
se o mundo, para mim, já surgisse
filtrado pela representação.
Quanto a esse jogo entre o crítico
e o artista, há um elemento de molecagem do qual eu gosto muito.
Um está jogando armadilhas para
o outro. Eles estão, de certa forma,
numa luta estética, e no meio está a
paixão pela mulher manca.
Mas há coisas que não se explicam. Essa relação entre um crítico
de teatro e uma mulher manca, para mim é uma relação que surgiu
espontaneamente, como um dado
bruto. Inclusive esse lance do fetiche: tem algo de atraente numa
pessoa que manca.
Folha - A mistura de ensaio e ficção aparece em vários momentos
da sua obra. De onde vem isso?
Sant'Anna - É uma coisa muito
natural. Digamos que eu tenha
uma certa dificuldade com a realidade bruta.
Mas o que há de ensaístico nos
meus livros está cheio de armadilhas. Há um lance de paródia ao
ensaio. Uma coisa que me interessou muito foi a Patafísica, do Alfred Jarry, que é você usar uma linguagem muito séria, mas, subrepticiamente, conduzir a uma molecagem. Meu personagem está
consciente disso também.
Folha - Na ficção brasileira contemporânea, com que autores você percebe afinidades?
Sant'Anna - Eu leio de tudo,
mas, no momento, acredito que o
que estou escrevendo é absolutamente meu. Gosto muito do trabalho do João Gilberto Noll. Invejo,
para ser mais claro. Mas o que estou buscando não está com ninguém. No princípio, algumas pessoas viram Clarice Lispector; outras, Rubem Fonseca. Agora, eu
acho que não há nada de ninguém.
Folha - Com o Rubem Fonseca há
talvez uma proximidade temática:
o crime, as perversões...
Sant'Anna - Quando eu estava
escrevendo "Um Crime Delicado", como o livro envolvia assuntos criminais e jurídicos, consultei
duas pessoas que são feras no assunto e que foram gentilíssimas: o
Nilo Batista e o Rubem Fonseca. O
Rubem ficou muito interessado no
tema, ligou várias vezes, me emprestou um livro. Mas percebi que,
se ele fosse escrever essa história,
iria desenvolver mesmo, iria até o
fim no aspecto criminal.
Eu, não. Queria saber para desrespeitar. Aprendi tudo o que precisaria sobre o processo penal no
caso, mas queria que o julgamento
virasse um processo estético, uma
briga entre o pintor e o crítico.
Folha - Outro autor que é um
ponto de referência quando se fala
em conto é Dalton Trevisan. Qual é
sua relação com a obra dele?
Sant'Anna - Quando comecei a
escrever, eu lia Dalton Trevisan,
achava bom, mas não era a linha
que eu gostava. Aquele negócio de
ele estar preso a Curitiba não me
tocava muito, naquela época tão
louca dos anos 60.
Ultimamente, eu leio todos os livros do Dalton Trevisan com uma
admiração profunda. Acho que é
um dos contistas mais importantes do mundo. Aquele aparente
anacronismo dele é, na verdade,
um charme. E, em termos de linguagem, não conheço ninguém no
mundo que faça esse tipo de conto.
Mas é um caminho fechado, é impossível tentar fazer igual. O problema dos grandes mestres é que a
gente tem que ler e esquecer na hora de escrever.
Uma influência que percebo nitidamente e admito é a do teatro, da
encenação teatral, que me fascina,
e das artes plásticas. Tudo o que
vejo representado plasticamente,
ou cenicamente, é uma influência
que posso assimilar sem cair na do
outro. Se leio um livro do Rubem
Fonseca, já fica problemático escrever um diálogo depois.
Folha - E o cinema? Influenciou
seu modo de narrar?
Sant'Anna - Sofri uma influência muito forte do Godard, pois ele
é o tipo do cara que ensina a você
liberdade. O Godard se permite,
no cinema, misturar ensaio, personagens reais, discussões de todo
tipo. Eu também faço isso, quando
quero, no meu trabalho.
Folha - Como foi sua passagem
pelo International Writing Program da Universidade de Iowa?
Sant'Anna - Basicamente, a
gente bebia. Chamávamos o programa de International Drinking
Program. Bebia-se, queimava-se
fumo adoidadamente. Era uma
época de liberdade, mesmo.
Mas me lembro que Bob Wilson
estava na cidade. Vendo as peças
dele, aconteceu como quando vi os
filmes do Godard. Ele me mostrou
coisas que, de alguma forma, eu
incorporei na minha literatura.
Nas "Confissões de Ralfo" tem
um capítulo que chama "Au
Théâtre" e é totalmente inspirado
em Bob Wilson.
Depois, eu morei num hotel em
que estavam o Kenneth Brown,
autor de um dos maiores sucessos
do Living Theatre, e o Seymour
Krim, que era um ensaísta da
"beat generation".
Esse tipo de vivência, somado
com minha passagem em 68 pela
França, me estimulou a pensar:
"Vou fazer a arte do meu tempo".
Folha - Seus últimos relatos têm
tido como protagonistas escritores, artistas, jornalistas. Mas houve
épocas em que você tratou também de personagens de outra extração: pedreiros, futebolistas. Por
que ocorreu esse afunilamento?
Sant'Anna - Para ser honesto,
considero isso uma limitação. Mas
o escritor só pode falar mais ou
menos do que ele conhece, né? Futebol é uma coisa que eu conheço
muito. Fui criado nesse meio, tive
um tio goleiro do Fluminense.
No conto "No Último Minuto",
do "Manfredo Rangel", eu fui,
que eu saiba, o primeiro cara a descobrir que o futebol já era uma coisa diferente, que era um fenômeno
midiático. O protagonista, um goleiro, se vê pela televisão.
Folha - Num dos contos novos,
"Estranhos", o protagonista se
apresenta como "subeditor de um
segundo caderno, fazendo entrevistas por telefone e escrevendo
frescuras sobre artistas egocêntricos". Você gosta desse tipo de piada quase particular?
Sant'Anna - Não sou uma pessoa maldosa, no sentido de gozar
para causar mal. Eu gozo muito a
mim mesmo, também. A gozação
é generalizada. Em "Um Crime
Delicado", uma coisa que me divertiu muito foi bolar uma pessoa
que faria uma adaptação de Proust
para o teatro, e depois eu mesmo
fazer a crítica dessa suposta adaptação. Foi uma coisa muito trabalhosa porque tive que reler "A Prisioneira" e "Albertine Desaparecida", depois li uma biografia do
Proust -tudo isso para aproveitar
num pequeno espaço. Mas é uma
coisa divertidíssima você criticar
uma coisa que você mesmo inventou.
AS OBRAS
Contos e Novelas Reunidos
- Sérgio Sant'Anna. Ed. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP
04532-002, SP, tel.
011/866-0801). 720 págs. R$
48,00.
Um Crime Delicado - Sérgio
Sant'Anna. Ed. Companhia das
Letras. 132 págs. R$ 17,00.
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