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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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PARA UM DOS PRINCIPAIS ESCRITORES VIVOS, O ROMANCE MAIS FAMOSO DE GEORGE ORWELL SE TORNOU VÍTIMA DO SUCESSO DE "A REVOLUÇÃO DOS BICHOS", QUE ACABOU POR OCULTAR A POSIÇÃO À ESQUERDA DA ESQUERDA DO AUTOR E SEU ATAQUE IMPLACÁVEL AO APAGAMENTO DA MEMÓRIA NAS SOCIEDADES MODERNAS

RUMO A 1984

por Thomas Pynchon

O último livro de George Orwell, "1984", de certo modo se tornou vítima do sucesso de "A Revolução dos Bichos", que a maioria das pessoas preferiu ler como apenas uma alegoria transparente do destino melancólico da Revolução Russa [1917]. Desde o momento em que o bigode do Grande Irmão aparece no segundo parágrafo de "1984", muitos leitores, pensando logo em Stálin, começam a estabelecer uma analogia mecânica, tal como fizeram na obra anterior. Embora o rosto do Grande Irmão seja sem dúvida o de Stálin, e o rosto de Emmanuel Goldstein -o herege que cai em desgraça no partido- seja o de Trótski, os dois personagens não correspondem de modo tão exato a seus modelos como acontecia com Napoleão e Bola de Neve em "A Revolução dos Bichos". Esse fato, porém, não impediu que o livro fosse alardeado nos Estados Unidos como uma espécie de panfleto anticomunista. O romance foi publicado em 1949, em plena era macarthista, em que o "comunismo" era oficialmente condenado como uma ameaça mundial monolítica, e a idéia de traçar uma distinção entre Stálin e Trótski seria considerada tão absurda quanto a de ensinar os carneiros a fazer sutis discriminações entre diferentes tipos de lobo.

Lavagem mental
Pouco depois, a Guerra da Coréia (1950-53) pôs em destaque o suposto método dos comunistas de impor sua ideologia por meio da "lavagem mental", um conjunto de técnicas que seriam baseadas na obra de I.P. Pavlov, o cientista que treinou cães para salivar quando estimulados. Assim, a cena longa e terrível em que Winston Smith, o protagonista de "1984", sofre algo muito semelhante a uma lavagem mental não causou nenhuma surpresa aos leitores que já estavam decididos a ler o romance como uma simples condenação das atrocidades stalinistas. Não era bem essa a intenção de Orwell. Embora "1984" tenha ajudado e estimulado várias gerações de ideólogos anticomunistas munidos de suas próprias teses pavlovianas, politicamente Orwell não só era de esquerda como também pertencia à esquerda da esquerda. Ele tinha ido à Espanha em 1937 para lutar contra Franco e suas forças fascistas, apoiadas pelos nazistas, e lá rapidamente aprendeu a diferenciar o antifascismo verdadeiro do falso. "A Guerra Civil Espanhola e outros acontecimentos do período 1936-7", escreveu ele dez anos depois, "fizeram a balança pender para um lado, e daí em diante eu sempre soube de que lado estava. Tudo de sério que escrevi desde 1936 foi escrito com a intenção direta ou indireta de atacar o totalitarismo e defender o socialismo democrático tal como eu o conheço". Orwell se considerava membro da "esquerda dissidente", que não era a mesma coisa que a "esquerda oficial", ou seja, basicamente, o Partido Trabalhista britânico, a maior parte do qual, bem antes da Segunda Guerra Mundial, ele já considerava fascista, ao menos em potencial. De modo mais ou menos consciente, Orwell fazia uma analogia entre o trabalhismo inglês e o Partido Comunista comandado por Stálin -ambos, na sua opinião, eram movimentos que afirmavam lutar pelas classes trabalhadoras contra o capitalismo, mas que na verdade só estavam interessados em firmar e perpetuar seu próprio poder. Quanto às massas, essas só serviam para ser usadas, com seu idealismo, seus ressentimentos de classe, sempre prontas para servir de mão-de-obra barata e para ser traídas vez após vez. Ora, os que têm tendências fascistas -ou os que estão apenas sempre dispostos a justificar qualquer medida tomada pelo governo, certa ou errada- imediatamente dirão que esse é o tipo do raciocínio pré-guerra e que, no momento em que as bombas do inimigo começam a cair na nossa pátria, alterando a paisagem e causando baixas entre nossos amigos e vizinhos, essa argumentação logo se torna irrelevante, se não subversiva. Quando a pátria está em perigo, uma liderança forte e medidas eficientes passam a ser essenciais e, se você quiser chamar isso de fascismo, tudo bem, é um direito seu, só que ninguém vai lhe dar atenção, pois todos estarão aguardando o toque que assinala o fim dos bombardeios.

Esquizofrenia
Mas o fato de que um argumento -quanto mais uma profecia- pode vir a parecer inadequado numa posterior situação de emergência não implica necessariamente que ele esteja errado. Sem dúvida, seria possível argumentar que o Gabinete de Guerra de Churchill se comportou em certos momentos como um regime fascista, censurando notícias, controlando salários e preços, restringindo o direito de ir e vir, subordinando os direitos civis às necessidades da guerra, tal como eram definidas pelo próprio governo.
O que fica bem claro nas cartas e nos artigos escritos por Orwell no período em que ele estava trabalhando em "1984" é que ele tinha perdido as esperanças com relação ao estado do "socialismo" no pós-guerra. O que no tempo de Keir Hardie [o primeiro líder do Partido Trabalhista britânico] fora uma luta honrada contra o comportamento inquestionavelmente criminoso do capitalismo em relação àqueles que eram explorados para lhe proporcionar lucros havia se tornado, no tempo de Orwell, um movimento vergonhosamente institucional, comprado e vendido, muitas vezes interessado apenas em se conservar no poder.
Ao que parece, uma das coisas que mais incomodavam Orwell era a adesão geral da esquerda ao stalinismo, mesmo existindo provas esmagadoras da natureza malévola do regime soviético. Escreveu ele em março de 1948, quando dava início à revisão do primeiro rascunho de "1984": "Por motivos um tanto complexos, quase toda a esquerda inglesa foi levada a aceitar o regime russo como "socialista", muito embora admita no íntimo que o espírito e a prática desse regime nada têm a ver com o que se entende por "socialismo" em nosso país. Tal situação deu origem a uma maneira de pensar esquizofrênica, em que palavras como "democracia" podem vir a ter dois sentidos incompatíveis, e coisas como campos de concentração e deportações em massa podem ser simultaneamente certas e erradas".
Reconhecemos essa "maneira de pensar esquizofrênica" como uma fonte de um dos pontos mais fortes do romance, que entrou para a linguagem cotidiana do discurso político: a identificação e a análise do duplipensar. Tal como é definido na obra de Emmanuel Goldstein, "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico" -um texto perigosamente subversivo, proibido na Oceania ["país" que, na obra, engloba, entre outros, a América do Norte, a Inglaterra e a Austrália], ao qual todos se referem como simplesmente "o livro"-, o duplipensar é uma forma de disciplina mental cuja meta, desejável e necessária para todos os membros do partido, é a capacidade de acreditar simultaneamente em duas verdades contraditórias. Não há nisso nada de novo, é claro. Todos nós fazemos isso. A psicologia social há muito tempo se refere ao fenômeno como "dissonância cognitiva". Há quem prefira chamá-lo de "compartimentalização". Para Walt Whitman ("Acaso me contradigo? Muito bem, então me contradigo"), isso implicava ser imenso e conter multidões. Para o gato de Schrödinger, era o paradoxo quântico de estar vivo e morto ao mesmo tempo.
Essa idéia, ao que parece, colocava para Orwell um dilema, uma espécie de metaduplipensar: inspirava-lhe repugnância, por seu inesgotável potencial maligno, e ao mesmo tempo o fascinava, por conter a promessa de uma maneira de transcender os opostos -como se uma versão perversa do zen-budismo, cujos koans básicos fossem os três slogans do partido ("guerra é paz", "liberdade é escravidão" e "ignorância é força"), estivesse sendo utilizada para um fim perverso.
A encarnação do duplipensar no romance é O'Brien, funcionário do Partido Interior, o homem que seduz e trai, protege e destrói Winston. Ele acredita com absoluta sinceridade no regime que serve e, no entanto, consegue fingir com perfeição que é um revolucionário dedicado à derrubada do regime. O'Brien se vê como uma mera célula no grande organismo do Estado, mas é sua individualidade, convincente e paradoxal, que fica na nossa memória. Embora seja um porta-voz tranquilo e eloquente do futuro totalitário, O'Brien pouco a pouco nos revela um lado desequilibrado, um desligamento da realidade que vai ficar pavorosamente claro durante o processo de reeducação de Winston Smith, no lugar de dor e desespero denominado Ministério do Amor.
O duplipensar também está por trás dos nomes dos superministérios que administram todas as coisas na Oceania -o Ministério da Paz faz guerra, o Ministério da Verdade conta mentiras, o Ministério do Amor tortura e mata todos que ele considera perigosos. Se isso parece inverossímil, lembremos que nos EUA de hoje as pessoas pouco se incomodam com o fato de que o órgão encarregado de fazer a guerra atende pelo nome de "Departamento da Defesa" e falam no "Departamento da Justiça" com a maior tranquilidade, embora seu braço mais poderoso, o FBI, tenha cometido abusos dos direitos humanos e constitucionais fartamente documentados. A nossa imprensa, que se diz livre, é obrigada a apresentar uma cobertura "equilibrada" em que cada "verdade" é logo neutralizada por uma outra verdade, igual e oposta.


Há um jogo que a crítica gosta de jogar: fazer listas das coisas que Orwell "acertou" e "errou'


Todos os dias a opinião pública é alvo da reescrita da história, da amnésia oficial e da mentira deslavada, práticas vistas como aceitáveis no mundo da política. Sabemos muito bem que a coisa não é o que nos dizem que é e, no entanto, torcemos para que estejamos enganados. Acreditamos e duvidamos ao mesmo tempo -pelo visto, num superestado moderno o pensamento político tem de ter sempre pelo menos duas posições com relação à maioria das questões. Nem é preciso dizer que isso é da maior utilidade para quem está no poder e lá quer permanecer, de preferência para sempre. Além da ambivalência da esquerda em relação às realidades soviéticas, novas oportunidades para o duplipensar se abriram ao final da Segunda Guerra Mundial. No seu momento de euforia, o lado vencedor estava cometendo, na opinião de Orwell, erros tão fatais quanto os que haviam viciado o Tratado de Versalhes após a Primeira Guerra. Apesar das melhores intenções, na prática a divisão do butim entre os ex-aliados continha o potencial de catástrofes fatais. As preocupações de Orwell com relação à "paz" constituem um dos principais subtextos de "1984". "Minha verdadeira intenção", Orwell escreveu para seu editor ao final de 1948 -ou seja, ao que parece, no início do processo de revisão do romance-, "é discutir as implicações da divisão do mundo em zonas de influência (em 1943, eu achava que era um resultado da Conferência de Teerã)...".

A vontade fascista
É bem verdade que não devemos confiar cegamente num romancista quando ele fala a respeito das origens de sua inspiração. Mesmo assim, vale a pena examinar esse processo imaginativo. A Conferência de Teerã, a primeira reunião de cúpula dos aliados na Segunda Guerra Mundial, realizou-se no final de 1943, com a presença de Roosevelt, Churchill e Stálin. Um dos assuntos discutidos foi o modo como os aliados dividiriam a Alemanha em zonas de ocupação após a derrota do nazismo.
Outra questão era quem ficaria com que parte da Polônia. Ao imaginar a Oceania, a Eurásia e a Lestásia, Orwell estaria projetando as conversações de Teerã numa escala maior, transformando a ocupação de um país derrotado na de um mundo derrotado.
Ao agrupar a Grã-Bretanha e os EUA num bloco único, como profeta, Orwell acertou em cheio, prevendo que a Grã-Bretanha resistiria à integração com o continente eurasiano e continuaria subserviente aos interesses ianques -assim, a unidade monetária da Oceania é o dólar. Londres continua sendo reconhecível como a Londres do período austero do pós-guerra.
Desde o início, quando mergulhamos de súbito no melancólico dia de abril em que Winston Smith pratica seu ato decisivo de desobediência, as texturas da vida distópica são apresentadas de modo implacável -os encanamentos defeituosos, os cigarros que se desfazem constantemente, a comida horrível-, mas nada disso talvez exigisse muita imaginação da parte de uma pessoa que tivesse vivenciado a situação de desabastecimento na época da guerra.
Profecia e previsão não são exatamente a mesma coisa e confundi-las, no caso de Orwell, seria um desrespeito tanto com o autor quanto com o leitor. Há um jogo que a crítica gosta de jogar: fazer listas das coisas que Orwell "acertou" e "errou". Quando olhamos à nossa volta, nos EUA de hoje, por exemplo, observamos a popularidade dos helicópteros como recurso policial, algo que todos sabemos graças a tantos "dramas criminais" televisionados, eles próprios formas de controle social -como, aliás, a própria ubiquidade da televisão.
A teletela bidirecional do romance tem uma semelhança razoável com as telas planas de plasma ligadas a sistemas de cabo "interativos" que conhecemos em 2003. A notícia é tudo aquilo que o governo diz que é notícia, o controle vigilante dos cidadãos comuns tornou-se uma atividade policial corriqueira, as operações de revista e detenção já há muito não seguem critérios razoáveis. E por aí vai. "Pô, o governo virou o Grande Irmão, igualzinho ao que o Orwell dizia! Sinistro, hein?", "Orwell explica, cara!". Bem, sim e não. As previsões específicas não passam de detalhes, afinal. O que talvez seja mais importante -mais ainda, necessário- para um profeta é a capacidade de enxergar mais fundo na alma humana do que a maioria dos mortais.
Em 1948, Orwell compreendeu que, apesar da derrota do Eixo, a vontade fascista não havia desaparecido; que, longe de ter sido extinta, ela talvez estivesse apenas começando a se afirmar; que a corrupção do espírito e o irresistível vício do poder já estavam havia muito estabelecidos, constituindo aspectos bem conhecidos do Terceiro Reich e da União Soviética stalinista, até mesmo do Partido Trabalhista britânico -apenas rascunhos iniciais de um futuro terrível. O que poderia impedir que a mesma coisa acontecesse na Grã-Bretanha e nos EUA? A superioridade moral? As boas intenções? Uma vida pura?
O que foi melhorando progressiva e insidiosamente de lá para cá, tornando quase irrelevantes os argumentos humanistas, foi, é claro, a tecnologia. Pouco importa que sejam rudimentares os métodos de vigilância utilizados na era de Winston Smith. No "nosso" 1984, afinal, o circuito integrado ainda não tinha dez anos de idade e era de um primitivismo quase constrangedor se comparado com as maravilhas da tecnologia de informática de 2003, principalmente a internet, uma invenção que promete controle social numa escala que aqueles antiquados tiranos do século 20, com seus bigodes ridículos, nem sequer poderiam imaginar.
Por outro lado, Orwell não previu algumas tendências exóticas, como as guerras religiosas que se tornaram tão comuns, envolvendo diversos tipos de fundamentalismo. Aliás, o fanatismo religioso está curiosamente ausente da Oceania, manifestando-se apenas sob a forma de devoção ao partido. O regime do Grande Irmão exibe todos os elementos do fascismo -o ditador individual carismático, o controle total do comportamento, a subordinação absoluta do indivíduo à coletividade-, menos a hostilidade racial, em particular o anti-semitismo, que era uma característica tão proeminente do fascismo que Orwell conheceu em pessoa.
Isso é um elemento que certamente há de causar perplexidade ao leitor moderno. O único personagem judeu do romance é Emmanuel Goldstein, e talvez apenas porque o original, Leon Trótski, também era judeu. Ele permanece sempre fora da ação do romance, sendo sua função verdadeira servir de voz expositiva, como autor da "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico".
Ultimamente vem sendo muito comentada a atitude de Orwell com relação aos judeus, tendo alguns chegado mesmo a acusá-lo de anti-semitismo. Se procurarmos nos seus escritos dessa época referências explícitas ao assunto, encontraremos relativamente pouco -as questões judaicas, ao que parece, não atraíram muito a sua atenção. Os textos publicados indicam ou uma espécie de entorpecimento diante da enormidade dos campos nazistas ou uma incapacidade, em algum nível, de se dar conta da verdadeira significação do fenômeno. Sente-se uma certa reserva, como se, com tantas outras questões profundas com que era necessário se preocupar, Orwell preferisse que o mundo não tivesse de enfrentar o problema adicional do Holocausto. Talvez se possa dizer que "1984" foi para ele uma maneira de redefinir um mundo em que o Holocausto não aconteceu.
O que há de mais próximo ao anti-semitismo em "1984" é a prática atualizada dos Dois Minutos de Ódio, que ocorre no início do romance, quase como um mecanismo do enredo para apresentar os personagens de Julia e O'Brien. Mas a manifestação de antigoldsteinismo apresentada aqui com toda sua virulência jamais ganha uma generalização de caráter racial. "Não há nenhuma discriminação racial", o próprio Emmanuel Goldstein confirma no livro: "Encontram-se judeus, negros, sul-americanos nos postos mais elevados do Partido".
Orwell, ao que parece, via o anti-semitismo como "uma variante da grande doença moderna do nacionalismo", e o anti-semitismo britânico em particular como mais uma forma de estupidez britânica. Julgava, talvez, que, quando ocorresse a coalescência tripartite do mundo que imaginava para 1984, os nacionalismos europeus que ele conhecia de algum modo já não existiriam, talvez porque as nações, e portanto as nacionalidades, teriam sido abolidas e absorvidas em identidades coletivas mais abrangentes. Em meio ao pessimismo geral do romance, isso pode parecer a nós, que sabemos o que sabemos hoje, uma análise demasiadamente otimista. Os ódios que para Orwell eram apenas ridículos determinaram boa parte da história de 1945 para cá, e não há como menosprezá-los.
Numa resenha de um romance de John Galsworthy, publicada em 1938 na revista "New Statesman", Orwell comenta, quase de passagem: "Galsworthy era um mau escritor, e algum sofrimento interior, ao aguçar sua sensibilidade, quase teve o efeito de transformá-lo num escritor bom; depois seu descontentamento passou, e ele recaiu na mediocridade. Devemos parar para pensar de que modo esse tipo de coisa está acontecendo conosco".
Orwell achava graça dos seus colegas de esquerda que morriam de medo de ser taxados de burgueses. Mas temia, talvez, a possibilidade de que, tal como Galsworthy, ele próprio um dia perdesse sua raiva política e terminasse virando mais um apologista do status quo. Sua raiva, podemos dizer sem sombra de dúvida, era-lhe preciosa. Orwell a adquirira com base nas suas vivências: na Birmânia, em Paris e Londres, no caminho de Wigan Pier e na Espanha, onde foi baleado pelos fascistas, ele conquistara sua raiva ao preço de sangue, dor e trabalho pesado, e era tão apegado a ela quanto o capitalista a seu capital. Talvez seja esse um problema particularmente comum entre escritores, o medo de se acomodar demais, de se vender. Quem ganha a vida com a pena certamente corre esse risco, ainda que nem todo escritor se incomode com isso. A capacidade que tem o poder de cooptar os dissidentes sempre foi um perigo -na verdade, isso ocorre de modo semelhante ao processo por meio do qual o partido em "1984" sempre consegue se renovar de baixo para cima.
Tendo vivido entre os trabalhadores e desempregados durante a depressão da década de 1930 e tendo descoberto desse modo o valor imperecível dos pobres, Orwell atribui a Winston Smith sua crença de que os pobres de "1984", os proles, seriam a única esperança na luta contra o inferno distópico da Oceania. No momento mais belo do romance -beleza tal como definida por Rilke, o despontar de um terror que por um triz não chega a ser insuportável-, Winston e Julia, julgando-se em segurança, contemplam da janela uma mulher que canta no pátio e Winston, olhando para o céu, tem uma visão quase mística das milhões de pessoas que vivem sob este céu, "gente que nunca aprendera a pensar, mas guardava no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo. Se esperança havia, estava nos proles!". É o momento imediatamente anterior à prisão de Winston e Julia, quando tem início o clímax frio e terrível do romance.
Antes da guerra, Orwell manifestou mais de uma vez seu desprezo por cenas de violência explícita em obras de ficção, em particular nas narrativas policiais americanas divulgadas pelas revistas populares. Em 1936, resenhando um romance policial, cita uma passagem que relata um espancamento brutal e metódico, uma antevisão quase surpreendente das experiências de Winston Smith no Ministério do Amor.


Em 2003 já se tornou comum funcionários do governo receberem salários para aniquilar o passado diariamente


O que aconteceu nesse ínterim? A Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, ao que tudo indica. O que Orwell encarava como "lixo repugnante" num tempo mais protegido se torna, no pós-guerra, parte da linguagem da educação política, e em "1984", na Oceania, será institucionalizado. No entanto, ao contrário do típico autor de romances policiais, Orwell não pode se dar ao luxo de insultar a carne e o espírito de um personagem de modo gratuito. Em certas passagens a escrita é difícil de acompanhar, como se Orwell estivesse sentindo na própria carne cada momento do pesadelo de Winston. O que torna interessante o regime da Oceania é o exercício do poder como fim em si, a guerra implacável contra a memória, o desejo e a linguagem como veículo de pensamento. A memória é relativamente fácil de destruir, do ponto de vista totalitário. Sempre há algum órgão semelhante ao Ministério da Verdade para negar as lembranças dos outros e reescrever o passado. Em 2003 já se tornou comum funcionários do governo receberem salários maiores do que a maioria das pessoas para deturpar a história, trivializar a verdade e aniquilar o passado diariamente. Outrora os que não aprendiam com a história eram obrigados a revivê-la, mas isso era no tempo em que os poderosos ainda não haviam descoberto uma maneira de convencer a todos, inclusive a si próprios, de que a história jamais aconteceu ou aconteceu da maneira que mais convém a seus propósitos -ou, melhor ainda, que nada disso tem muita importância, só servindo mesmo para ser transformado num documentário idiota, uma colcha de retalhos de imagens exibida na televisão para proporcionar uma hora de entretenimento. Quando finalmente saem do Ministério do Amor, Winston e Julia já se encontram permanentemente em estado de duplipensar, nas ante-salas da aniquilação -não estão mais apaixonados, porém são capazes de odiar e amar o Grande Irmão ao mesmo tempo. É o fim mais terrível que se pode imaginar. Porém, curiosamente, não é ainda o fim. Viramos a página e encontramos um apêndice que parece uma espécie de ensaio crítico: "Os Princípios da Novilíngua". Lembramos então que no início do livro nos foi dada a opção, numa nota de rodapé, de começar a leitura por esse ensaio. Alguns leitores fazem isso, outros não -podemos encarar essa nota como um exemplo pioneiro de hipertexto. Em 1948, essa seção final por algum motivo incomodou o Book-of-the-Month Club americano, que exigiu que ela fosse suprimida, juntamente com os capítulos do livro de Emmanuel Goldstein, para que a obra fosse publicada pelo clube do livro. Embora tivesse a possibilidade de ganhar pelo menos 40 mil libras em vendas nos EUA, Orwell recusou-se a fazer as mudanças pedidas, escrevendo a seu agente: "Um livro é construído como uma estrutura equilibrada e não se pode simplesmente retirar uma parte grande aqui e outra ali, a menos que se esteja disposto a refazer o todo. [...] Realmente não posso permitir que metam a mão na minha obra além de um certo ponto, e nem sei se vale a pena fazê-lo, a longo prazo". Três semanas depois o Bomc voltou atrás, mas a pergunta permanece: por que terminar um romance tão passional, violento e pessimista como esse com o que parece ser um apêndice acadêmico? A resposta talvez esteja na gramática. Desde a primeira frase, o texto de "Os Princípios da Novilíngua" está no pretérito, como se para dar a entender que foi redigido em algum futuro pós-1984, em que a Novilíngua se tornou literalmente uma coisa do passado -como se de algum modo o autor anônimo desse texto agora tivesse liberdade de discutir, de modo crítico e objetivo, o sistema político cuja essência, em seu tempo, fora a Novilíngua. Além disso, é no nosso idioma atual, pré-Novilíngua, que o ensaio é redigido. Segundo o romance, o uso da Novilíngua se generalizaria por volta do ano 2050, e no entanto tudo indica que, longe de ter triunfado, ela nem sequer durou tanto tempo assim, e as antigas formas de pensar humanistas que são inerentes ao idioma padrão persistiram, sobreviveram e terminaram vencendo, e talvez a ordem social e moral a ela associada tenha sido, de algum modo, restaurada.

Atenuação
Num artigo publicado em 1946 sobre "A Revolução Gerencial", uma análise da crise mundial assinada pelo ex-trotskista americano James Burnham, Orwell escreve: "O imenso, invencível e imorredouro império escravocrata com que Burnham parece sonhar não será estabelecido ou, se o for, não poderá durar, porque a escravidão não é mais uma base estável para a sociedade humana". Com sua sutil promessa de restauração e redenção, "Os Princípios da Novilíngua" talvez tenham o objetivo de atenuar um final terrivelmente pessimista -para que possamos voltar para as ruas da distopia em que vivemos assobiando uma melodia um pouco mais alegre do que a que teria sido inspirada pelo desfecho da narrativa.
Há uma fotografia, tirada por volta de 1946 em Islington, de Orwell com seu filho adotivo, Richard Horatio Blair. O menino, que teria cerca de dois anos na época, sorri da mais pura felicidade. Orwell segura-o carinhosamente com as duas mãos, também sorrindo, contente, mas sem nenhuma autocomplacência. É ainda mais complexo do que isso: é como se Orwell tivesse descoberto alguma coisa que talvez fosse ainda mais valiosa do que a raiva -a cabeça ligeiramente inclinada, nos olhos um olhar cauteloso que pode lembrar a um cinéfilo um personagem interpretado por Robert Duvall, que passou por experiências que a maioria das pessoas preferiria não ter. Winston Smith "acreditava ter nascido em 1944 ou 45...". Richard Blair nasceu em 14 de maio de 1944. Não é difícil adivinhar que Orwell, em "1984", estava imaginando um futuro para a geração de seu filho, não um mundo que desejasse para essa geração, mas sim um perigo para o qual queria alertá-la. Ele se irritava com previsões de situações supostamente inevitáveis e sempre tinha confiança na capacidade das pessoas comuns de mudar qualquer coisa, desde que quisessem mudá-la. Seja como for, é ao sorriso do menino que nosso olhar retorna, um sorriso direto e radiante, de quem acredita sem dúvida nenhuma que o mundo, no final das contas, é bom, e que sempre se pode confiar na decência humana, tal como no amor paterno -uma fé tão honrada que quase podemos imaginar que Orwell e talvez até mesmo nós mesmos, ao menos por um momento, seríamos capazes de fazer tudo o que fosse necessário para impedir que ela fosse traída.

Copyright: Thomas Pynchon (2003). Texto extraído da introdução de Thomas Pynchon à edição de "1984" recém-lançada pela Plume (Penguin). Republicado com permissão da agência Melanie Jackson, L.L.C.
Tradução de Paulo Henriques Britto.


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