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Discurso no limbo
"A Fome dos Outros", de Rodrigo Labriola, estuda a crônica espanhola da conquista da América
LUIZ COSTA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Internacionalmente, o auge da reflexão teórica dos
estudos literários teve um
curto apogeu: concentrou-se entre 1960 e 1980.
Baste-me aqui a constatação.
O mesmo faço com seu complemento: do ponto de vista
brasileiro, aquele apogeu teve
uma repercussão mínima, sendo antes freqüente a incompreensão e hostilidade que
causou.
Mesmo por essa razão, ressalta a singularidade do ensaio
"A Fome dos Outros - Literatura, Comida e Alteridade no Século 16".
De autoria do argentino radicado no Rio Rodrigo Labriola, o
livro tem por tema a crônica espanhola da conquista, concentrando-se na "Historia General
de las Cosas de la Nueva España", do frade franciscano Bernardino de Sahagún.
A riqueza de sua análise permitiria vários modos de abordagem. Entre eles, privilegiarei
a abordagem do ponto de vista
discursivo, porque, embora referido com freqüência, no sentido técnico, o termo "discurso" está longe de um entendimento suficiente.
Será preciso, portanto, esclarecer que "discurso" significa o
modo peculiar como o mundo
dos eventos é disposto e trabalhado em certo tipo de texto.
Tal modo peculiar se diferencia como um certo protocolo ou, se se preferir, como um
certo ritual, a ser cumprido, para que o objeto textual seja reconhecido como literário, filosófico, historiográfico etc.
Embora rudimentar, o esclarecimento deve ser bastante
para que se acrescente: a abordagem empreendida por Labriola mostra que, do ponto de
vista historiográfico, a crônica
espanhola, composta durante o
século 16, hoje habita uma espécie de limbo discursivo.
Isto é, nem se confunde com
a crônica medieval, nem muito
menos poderia ser tomada como similar ao discurso historiográfico, legitimado a partir
do século 18.
A afirmação tem por esteio
principal a diferença epistemológica que Michel Foucault estabeleceu em "As Palavras e as
Coisas" [ed. Martins Fontes]: à
diferença da concepção medieval, os tempos modernos partem do suposto que entre as
palavras e as coisas por elas nomeadas não há nenhum vínculo natural.
Daí decorre não somente que
o signo seja concebido como
arbitrário, isto é, não motivado
por traços ou propriedades daquilo a que aponta, como se
cria o problema do referente. É
este que particularmente aqui
importa.
Enquanto se considerava a
palavra motivada pela coisa a
que remetia, seu referente era
basicamente justificado pelo
contexto bíblico. A Bíblia era o
termo ausente que estabelecia
o enlace entre o fato e sua presumida veracidade. Criava-se
assim um círculo vicioso, especialmente prejudicial para o
discurso da história: um evento
histórico qualquer era considerado verdadeiro à medida que
estava de acordo com o ponto
de vista cristão -em princípio,
biblicamente justificado.
É daí que resulta a crônica
espanhola da conquista encontrar-se hoje em uma terra de
ninguém: seu referente era retoricamente concebido, e não
efetivamente atestado.
Mas a afirmação não vale para a crônica da conquista em
peso. Labriola mostra que, no
interior das muitas crônicas espanholas, há de se distinguir
entre aquelas nas quais domina
uma visão retórico-religiosa,
como a de Motolinía, "Sacrificios y Idolatrías", e a "Historia
General", de Sahagún, em que,
ao reconhecimento de que os
mexicas são, no sentido pleno
da palavra, um "outro", corresponde a busca de aprender sua
língua, o náuatle, convertê-la
em linguagem escrita, conhecer sua religião e costumes -é
verdade que com o propósito
de assim melhor conseguir sua
conversão.
Em suma, do ponto de vista
discursivo, a análise das crônicas referidas tem a propriedade de permitir que se observem
duas concepções opostas sobre
a relação entre linguagem e
realidade e as conseqüências
que, de imediato, daí decorrem.
Entre essas, uma é de interesse geral: enquanto a crônica
de orientação retórico-religiosa tinha um caráter monológico -isto é, a visão cristã está
previamente pronta para explicar o que se fazia no Novo
Mundo-, a crônica de Sahagún
assumia um caráter dialógico.
A busca do ouro
Monologia e dialogia são termos naturalmente extraídos da
teorização de Mikhail Bakhtin
sobre o romance.
Na impossibilidade de desenvolver-se a questão, a relacionemos com outro ângulo
seu: a relação entre e a busca do
ouro e a fome do outro, dela
oriunda. As duas trilhas, bem
acentua Labriola, são paralelas.
A trilha do ouro começava
com os conquistadores famintos, "continuava com a ruminante Espanha e acabava nos
estomacais países do norte".
Pois o ouro, recolhido no México e no Peru, era enviado para
a Espanha -assim como, no século 18, o colonizador português o enviaria para Lisboa-,
onde, em virtude dos obstáculos que impediam a implantação de um parque industrial,
era rapidamente trocado pelos
produtos industrializados de
que a própria Espanha e sua
imensa colônia careciam.
Assim o ouro e a prata vindos
da América desempenharão
um papel fundamental na acumulação primitiva do capital.
Isso talvez cause a alguns ainda
tanta surpresa como para outros a verificação de que, pela
análise discursiva, literatura e
historiografia, sem se confundirem, demostram sua intensa
inter-relação.
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
A FOME DOS OUTROS
- LITERATURA, COMIDA E
ALTERIDADE NO SÉCULO 16
Autor: Rodrigo Labriola
Editora: Universidade Federal Fluminense (tel. 0/xx/21/ 2629-5287)
Quanto: R$ 25 (254 págs.)
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