São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997.



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POLÊMICA
A política do fio da meada

Ruy Fausto critica a redução que Paulo Arantes faz da filosofia na atualidade


RUY FAUSTO
especial para a Folha

Eis-me transfigurado em defensor da "filosofia de vovô" (1)! Diante do pensamento "up-to-date" de meu amigo Paulo Arantes -não cito, gloso-, eu quebraria lanças em nome de Martial Géroult, Victor Goldschmidt (filósofos universitários) e, mais longe, em nome de Hegel, de Leibniz e, por que não, de Malebranche. Infelizmente, o problema não é esse. Ninguém defendeu o retorno aos sistemas de filosofia, nem desfraldou a bandeira da filosofia universitária. O meu argumento parte de Adorno, e vincula explicitamente a questão do estatuto atual da filosofia à discussão sobre o marxismo. Quando dizem que a atitude dos frankfurtianos em relação à filosofia era "ambígua" (eles se situavam dentro e fora dela) e que Arantes escaparia dessa ambiguidade, já há um progresso na formulação do problema: deixando de lado o termo "ambiguidade", que é... ambíguo, é isso mesmo; o que para mim significa: enquanto os frankfurtianos recusavam tanto a filosofia enquanto filosofia (sistemática ou pós-sistemática), como a negação abstrata da filosofia, Arantes assume um dos dois pólos dogmáticos da alternativa, o pólo negativo (ele se inscreve explicitamente contra a reabilitação frankfurtiana da filosofia, ver "Fio da Meada", págs. 29 e 51), o que é um retrocesso.
Mas, no fundo, se para mim a posição de Arantes diante da filosofia é indefensável porque negativa (e suas intervenções no Colóquio sobre a "Ideologia Alemã" em setembro de 96 o confirmam à saciedade), esse erro é apenas um corolário de um defeito mais importante (por isso o título que eu dera ao artigo não falava em filosofia). Mais do que filosófico, o defeito do "Fio da Meada" é político, e é também um defeito de tom.
Digamos, para começar, que esse livro que trata de tudo, fala pouco da história política do século 20. A respeito das duas guerras mundiais, do stalinismo, do nazismo, da crise do sistema burocrático etc. etc., ele diz sem dúvida alguma coisa, mas não muito, e quase sempre de forma indireta ou mediada. A acrescentar -explico melhor logo mais- que isso tudo só aparece no quadro da história das vicissitudes do capitalismo. Quando Arantes trata do século 20, o objeto é quase sempre a história da filosofia, embora o desenvolvimento capitalista esteja "lá".
No fundo, me pergunto se, para ele, a história política interessante não teria terminado em 1848. Ora, sem ter bem presente a história política do século 20, sem analisá-la como um objeto próprio, não dá para pensar nem a situação atual do marxismo, nem a da filosofia.
E aqui entra Adorno, que era a minha referência. Porque a posição de Adorno em relação à filosofia não é mais do que um corolário da constatação do descompasso entre o universo do marxismo e uma parte da história do século 20. É porque o marxismo evidentemente não dá conta de momentos essenciais dessa história (embora ele continue representando a melhor crítica do conjunto do sistema capitalista), que o problema da filosofia se recoloca. Nesse sentido, a sobrevivência da filosofia não nos remete a "jardins", mas, pelo contrário, à "devastação do mundo" (e à ausência de um ponto fixo no mundo -classe, partido, Estado, acontecimento histórico- a partir do qual se possa criticá-lo. Mesmo o apelo à luta de classes é incerto: a luta de classes existe, mas além do fato de que as classes não são hoje as do século 19, em boa parte do tempo e do espaço, ela é apenas potencial).
Para além do capitalismo ("além" no espaço, algo cuja possibilidade Marx não viu), para quem se põe a refletir sobre a sociedade burocrática ou Auschwitz (nesse último caso, digamos, estamos além das democracias capitalistas), Marx é útil, mas Kant é pelo menos tão útil quando Marx. Por outro lado, a teoria das sociedades burocráticas deve alguma coisa à tradição da filosofia política. Os que acreditam que vale a pena refletir sobre a democracia sabem que essa tradição não pode ser descartada sem mais. Mas, para Arantes, o que se pode dizer sobre liberdade e democracia é o que está escrito na crítica da economia política. O resto -não creio estar exagerando- é algo assim como uma "invenção dos franceses", como dizia recentemente uma aluna influenciada pelas novas idéias.
Aliás, mesmo se nos situarmos no plano da política nacional, a exigência aparece. Para dar um exemplo: se se buscar um fundamento teórico para as experiências pluriclassistas de gestão municipal participativa -uma das coisas importantes que a esquerda fez no Brasil nos últimos tempos- encontrar-se-á muito mais Rousseau e a tradição democrática do que Marx. Essa reflexão merecerá talvez um comentário irônico ou uma censura, no quadro do novo discurso sobre a nossa formação filosófica (dir-se-á mais ou menos assim: "Raciocínio uspiano herdado dos nossos mestres franceses, aplicado à província (...) falta o golpe de vista da totalidade e a armação local etc etc". Porém, é mesmo como eu disse: quem pensar estritamente como marxista não verá o interesse de tais experiências; o resto não vem ao caso). Mas é bem verdade que, para os nossos radicais, coisas como gestão participativa talvez sejam puro reformismo social-democrata.
De um modo geral, para um pensador de esquerda, é no intervalo entre a herança do marxismo e a história política do século 20 que aparece o verdadeiro campo e espaço da reflexão, que é uma reflexão tanto política como filosófica. Por isso, nem a superação da filosofia, estilo 1846, nem a superação estilo 1859 -elas são diferentes- são satisfatórias. O problema da filosofia (não o da filosofia sistemática nem o da que a sucede imediatamente) se recoloca. Em outras palavras, tudo se passa como se a política tivesse reconduzido a filosofia (bem entendido, não só a filosofia). É como se estivéssemos diante de uma situação um pouco paradoxal: quem só pensa a filosofia sem pensar realmente a política (mesmo se se ocupar também de literatura e até, diria, da sociologia de uma e de outra) não vê o interesse que a filosofia pode ter hoje. Inversamente, quem pensa a política (do século 20) sabe por que a filosofia interessa (embora, evidentemente, interessem também outras coisas). Ora, Arantes reflete pouco sobre a história política do século 20 e não vê o descompasso entre essa história e a herança marxista. Resultado, o caminho que o pensamento crítico percorreu da "Ideologia Alemã" (1846) e da "Crítica da Economia Política" (1859) até a "Dialética Negativa" (1966) -é claro que o mais decisivo não são as datas-, ele quer percorrê-lo de volta. Sua referência é a crítica marxista da economia política (1859 e 1867) e, aquém dela, a "Ideologia Alemã" (só que -aqui entra um outro problema- uma "Ideologia Alemã" sem práxis). Daí a sua fixação em 1848. A crítica que Arantes faz à filosofia, apesar, ou por causa, do seu toque moderno, é, na realidade, regressiva. Por isso, em vez de se apresentar como um movimento descontínuo, porque marcado pelos impasses -no sentido mais radical- da teoria crítica elaborada no século 19, a história da filosofia aparece, em Arantes, ("mutatis mutandis", porque sem "materialismo dialético") à maneira lukacsiana clássica: um longo processo de dissolução, em que o vampiro se desfaz em cinza diante da luz (ou do crucifixo?) da crítica marxiana da economia política. É, aliás, curioso que o gesto que aponta para a morte da filosofia seja um gesto lukacsiano (o Sartre da "Crítica da Razão Dialética" também não está muito longe: filosofia ou não, o marxismo em Sartre e em Arantes é o Saber do nosso tempo). Ao mesmo tempo em que se anuncia a morte do gênero, se privilegia um filósofo, ou se privilegiam dois que, apesar de terem escrito coisas muito importantes sobre a história, se caracterizaram por uma particular inépcia em matéria política (digo, especificamente política). A história do "posicionamento" político de Lukács e de Sartre é a de uma sucessão de erros, de desastres e de semi-erros. Nesse sentido, o pior conselho que se poderia dar à esquerda atual seria o de tomar como modelo um ou outro.
Se se quiser levar a sério a política do século 20, passando pelas dificuldades da política da esquerda no mesmo século (omitidas pelo livro de Arantes), seria preciso, antes de mais nada, incorporar um certo número de dissidentes, alguns dos quais são referidos no "Fio da Meada", mas para serem criticados, outros apenas evocados, outros simplesmente omitidos. Digamos: Rosa Luxemburgo, o jovem Trótski antibolchevique (o de "Nossas Tarefas Políticas"), Castoriadis, Lefort, o Merleau-Ponty de "As Aventuras da Dialética", os frankfurtianos, em particular Adorno (há outros mais, André Gorz, por exemplo, um sartriano). Sem levar a sério essa gente, não dá.
Falta tratar do "estilo" de Arantes (não da sua escrita, muito bonita, mas da sua postura irônica) e de como ele enfrenta os problemas brasileiros. Os discípulos manifestam um verdadeiro entusiasmo diante de uma nova atitude, capaz de romper o gelo universitário (e que, além disso, junta filosofia com literatura e história), retomando, entre outras coisas, certo tom do modernismo brasileiro.
No que me concerne, já que alguns estranham que eu tenha dificuldade em assimilar isso tudo, e também para evitar que venham a dizer mais tarde que aderi a tal ou qual moda, advirto que não sou infenso nem à ironia, nem à literatura, nem ao modernismo brasileiro ou internacional. Pelas razões indicadas, peço também licença para dizer que tenho até, inédito, um livro de historietas e poemas (em parte, epigramas), em que, com os meus parcos recursos, tiro o que posso da tradição poética, em particular do modernismo brasileiro.
Mas daí a supor (como alguns parecem insinuar) que é eficaz enfrentar os nossos problemas atuais, que são, em primeiro lugar, políticos -não me refiro aos literários ou artísticos- com o gesto de Oswald, de Mário de Andrade ou com o da prosa de alguma outra figura literária desse século, vai uma distância. Arantes mistura gêneros. A mistura de gêneros pode ser uma boa coisa, mas ela não é sempre boa. A do "Fio da Meada" não me convence. Por um lado, talvez se possa dizer que o seu defeito não está num excesso de ingredientes, mas, pelo contrário, como indiquei, na falta de alguns, essenciais. Mais precisamente, no "Fio da Meada", o tom "descarrilha". O melhor está no miolo do livro. A partir de um certo momento, sem falar no começo, tem-se a impressão de um redemoinho que devora tudo, numa cornucópia de referências críticas que dá vertigem ao leitor. Oswald? Joyce? Se não me engano, o procedimento tem algo a ver, por exemplo, com o ritmo progressivamente acelerado do "Ulisses". Só que em Joyce funciona, e em Arantes não; e isso não por falta de talento.
É que a ironia se autodevora e, para usar um topos lógico bem conhecido, ela se interverte de certo modo no seu contrário: num discurso inócuo e conformista. Nenhuma crítica pode subsistir sem um mínimo de positividade. É o seu oxigênio. Como negação contínua, ela se asfixia. Isso ocorre, creio eu, n' "O Fio da Meada". O autor não se permite, e nem ao leitor, um respiro auto-reflexivo. Omissão grave, num tempo em que as certezas não são tantas. A observar que essa "negatividade absoluta" vai junto com a positividade de pedra de um marxismo em que não se toca. A ironia de Paulo Arantes corre o risco de ser não um verdadeiro oposto, mas o contrário inseparável do pensamento bem-comportado, assim como o nombrilismo (egocentrismo narcisista) municipal que ele pratica, pelo menos em parte, no "Fio da Meada" é o oposto complementar do parisianismo de outrora. Não é a primeira vez que se tem essa coincidência de opostos, e, aliás, esse bom livro que é o "Ressentimento da Dialética" mostra como ela funciona em certos casos.
Diante do desafio atual feito à esquerda por um governo com gente que vem de dentro dela e que, entre outras coisas, banaliza a idéia de que se pode fazer aliança com qualquer um, certo tipo de ironia hipercrítica tem pouco peso. (Excetuo o útil "sottisier" -coleção de besteiras- de recortes de jornais, que Arantes publicou recentemente). De resto, quando ele ou seus discípulos falam do Brasil, aparece a fragilidade desse radicalismo meio niilista. Falar na nação que se dissolve, no país que já perdeu a oportunidade, em eleição farsa, na alternativa entre a pista inexistente da política e a crítica do fetichismo da mercadoria etc. etc. -quando o problema é o de buscar novos caminhos para a política- não leva a nada, e, no fundo serve ao sistema. O gesto radical, complemento da ironia, revela aí toda a sua impotência. Não é isso o que nos falta, mas outra coisa. Um pensamento sóbrio, rigoroso, capaz de dar respostas precisas ao neoliberalismo dominante. A primeira condição é evitar os tiques: os do "in-group", que os do "out-group" nunca oferecem perigo. De fato, do jeito que as coisas vão, corre-se o risco de cair numa nova ortodoxia de sinal negativo, com seus cacoetes -o cacoete-mór talvez seja o "golpe de vista" (sem dúvida, tradução municipal do "Einsicht" alemão) ou "a totalidade que passou para o campo oposto" (quando chegar o momento tentarei desmontar essas aproximações) -com os seus heróis e os seus inimigos patentados.
Uma palavra -no capítulo dos heróis- sobre o grupo "Clima", referência justificadamente obrigatória: até aqui, ou se fez o culto do grupo "Clima" ou, quando se o criticou, atacou-se o que ele teve provavelmente de melhor -ver a crítica que Iná Camargo Costa, uma das participantes de "Fio da Meada", fez a Décio de Almeida Prado-; ao mesmo tempo em que se assumiu sem discussão o que o grupo teve de mais problemático. Lembremos: não foi dos menores méritos do grupo "Clima" o ter recusado, para além do stalinismo, todas as formas de ortodoxia ou de integrismo marxistas. Para concluir -pensando menos no que Arantes efetivamente fez (afinal, há coisas interessantes no "Fio da Meada") do que no tipo de discurso e atitude que o livro corre o risco de induzir-, diria que precisamos menos do jargão neolukacsês temperado com modernidade literária, em que se reconhecem as marcas de fábrica de tal ou qual ajuntamento, do que de pensamento avulso e dissidente, daquele que fica "fora do sistema" e, por isso, não entra em certos registros.

Nota: 1. Publiquei no nš 25 do Jornal de Resenhas da Folha (11/4/97) um texto sobre "Ressentimento da Dialética" e "O Fio da Meada", de Paulo Arantes. O texto era uma versão reduzida de um trabalho maior que sairá, com alguns acréscimos, na revista "Praga", e foi publicado sob o título -que não é meu nem me foi submetido- "Da Filosofia à antifilosofia". Um artigo de Cristina Diniz Mendonça, "Como era calmo nosso jardim", publicado no Mais! do dia 20/4/97, toma a defesa d' "O Fio da Meada", polemizando comigo. Quando tive conhecimento dele, escrevi o que seria, em princípio, um posfácio ao texto de "Praga", mas que publico aqui em forma independente.


Ruy Fausto é professor de filosofia na Universidade de Paris 12. Escreveu, entre outros, "Marx - Lógica e Política" e "A Produção Capitalista como Circulação Simples".





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