São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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A REDE CONCRETA

EM ENTREVISTA EXCLUSIVA, MICHAEL HARDT SE DEFENDE DAS ACUSAÇÕES FEITAS POR FUKUYAMA CONTRA "MULTIDÃO", RECÉM-LANÇADO NOS EUA, DEFENDE A "CONTRAGLOBALIZAÇÃO" E PROPÕE UM NOVO CONCEITO DE DEMOCRACIA

Márcio Senne de Moraes
da Redação

O pensador e professor de literatura da Universidade Duke (EUA) Michael Hardt, autor -em parceria com o filósofo italiano Antonio Negri- do recém-lançado nos EUA "Multitude" [Multidão, previsto para sair no Brasil no segundo semestre de 2005, pela ed. Record], defende a adaptação de conceitos da esquerda tradicional, como classe trabalhadora e proletariado, à realidade atual do mercado de trabalho e do mundo corporativo globalizado, criando um novo termo, chamado "multidão". "É necessário fazer uma análise do trabalho e das relações socioeconômicas atuais para que a multidão possa ser concebida. Assim, perceberemos como o trabalho e as relações sociais podem tornar possível um projeto político como a multidão", diz o autor de, entre outros, "Império" (também com Negri) e "Vozes no Milênio". Leia a seguir a entrevista, dada por telefone.

Francis Fukuyama afirma que a idéia de enfraquecer os Estados para protegê-los dos efeitos nefastos da globalização, que o sr. e Negri defendem em "Multidão", é errada. Como o sr. responde a essa afirmação?
Fukuyama é um convicto pensador de direita, o que torna sua análise enviesada. E essa discussão é própria da esquerda. Há um debate importante na esquerda que estuda respostas para os problemas criados pela globalização neoliberal. Uma das resposta possíveis privilegia a soberania nacional, visto que ela pode ser um muro de proteção contra os poderes do capital global e contra sua capacidade de distorcer a organização e a sociedade nacionais.
Sem dúvida, trata-se de uma posição defensável. Todavia nossa posição não é essa. Para nós, a solução para o problema não passa pelo fortalecimento da soberania nacional e pela construção de barreiras de proteção contra o controle neoliberal exercido pelos EUA. Cremos que seja necessário o advento de uma contraglobalização. Esta não daria tanta ênfase às fronteiras e à soberania nacionais, mas privilegiaria as conexões globalizadas, o intercâmbio. Não acredito que as duas posições sejam antagônicas.
Sim, mas como o sr. explica o enorme sucesso econômico da China e da Índia, países que têm um governo central forte, no mundo globalizado?
É claro que o sucesso econômico desses países veio acompanhado de outros fenômenos importantes. Para responder a essa questão, devemos analisar as hierarquias que são criadas dentro de um país durante seu processo de inserção no mercado global.
Ou seja, parte do recente crescimento econômico chinês tem relação com uma crescente polarização de sua sociedade. Houve a criação de uma enorme população de pobres e excluídos e de uma pequena população de ricos. A entrada da China no mercado global e o crescimento de seu Produto Interno Bruto têm muito a ver com a crescente divisão de classes dentro do país, com a crescente disparidade entre os ricos e os pobres.
Assim, devemos ter em mente que o crescimento econômico não é necessariamente positivo para os chineses em geral, pois beneficia uma elite. Ademais, o governo chinês e muitos intelectuais do país procuram um modo de adaptar a globalização a seus interesses maiores, buscando uma noção alternativa. A China é um exemplo dos efeitos da globalização tão forte quanto a Argentina, que ainda sofre o impacto da crise.
Há outro modo de responder a essa pergunta. Em nossa estrutura global atual, há um tipo de movimento entre as nações que não altera a estrutura, mas apenas muda o lugar de cada uma na hierarquia mundial. A Índia pode crescer bastante e tornar-se mais forte que o Brasil no sistema global, porém isso não altera o sistema como um todo.
Ou seja, continua a existir uma enorme disparidade entre as partes mais ricas do planeta e as mais pobres. Numa perspectiva global, parece-me pouco interessante ou pouco relevante que um país ganhe força em relação a outras nações. Afinal, o sistema global continua a ser baseado em hierarquias radicais e na grande pobreza da maioria de seus atores.
O que temos de fazer, em minha opinião, é tentar imaginar um sistema global que possa proporcionar um tipo de democracia ou uma maior igualdade econômica a todas as populações do mundo. Em termos genéricos, a esquerda precisa começar a pensar no modo como o "mundo ideal" deveria ser.
A direita já faz isso há muito tempo e imagina diferentes ordens globais o tempo todo. No passado recente, a esquerda esteve numa posição defensiva e deixou de propor modelos mais democráticos.
Mas isso não é utópico?
Há duas formas de utopia. Primeiro, uma inútil, que privilegia situações que nunca se tornarão realidade. Segundo, há o uso saudável do pensamento utópico, que consiste em pensar que o mundo pode ser melhor e que esse objetivo pode ser atingido por meio do exercício da imaginação. A segunda forma de utopia permite que os seres humanos avancem em direção a soluções mais democráticas e razoáveis para a maioria das pessoas e é, portanto, positiva. Não devemos simplesmente pensar que não podemos mudar o mundo porque, se ninguém imaginar que pode fazê-lo, o sistema global continuará tal qual o conhecemos hoje, repleto de desigualdades e de injustiças.
Fukuyama diz que Negri e o sr. argumentam que termos como proletariado e classe trabalhadora estão ultrapassados e que a esquerda deveria adotar outro, definido como multidão, que capta a singularidade daqueles que se levantam contra os ricos e poderosos e o que há de comum entre eles. O sr. poderia explicar esse novo modo de análise?
Talvez não devêssemos pôr as coisas dessa forma. Não argumentamos realmente que a esquerda deve abandonar os conceitos de classe trabalhadora ou de proletariado. Contudo dizemos que eles devem ser mudados para acompanhar as transformações existentes nas próprias classes trabalhadoras. Muitas vezes, quando usamos o termo classe trabalhadora, acabamos nos referindo apenas ao proletariado industrial. Isso não captura a dimensão de todos os que trabalham hoje e cria certas exclusões. Por exemplo, os camponeses e outros grupos de trabalhadores são excluídos dessa definição.
Assim, em vez de opor-se a esses conceitos, a multidão é uma tentativa de atualizá-los e completá-los. Para tanto, é necessário perguntar quem são os trabalhadores hoje em dia, o que fazem e como se organizam. Creio que é desse modo que, às vezes, um novo conceito ou um novo termo podem nos ajudar a entender o fenômeno que temos pela frente em sua totalidade.
Sim, mas como essa multidão seria constituída e ganharia consciência de sua existência?
Há um pré-requisito com o qual começamos nossos estudos, que é a constatação de que sua composição teria de envolver uma espécie de trabalho preparatório, já que, para defini-la, devemos concluir uma análise socioeconômica sobre quais são as formas de trabalho atualmente. Essa análise preparatória pode ser a base de um projeto político como a multidão. Em outras palavras, a multidão não é um sujeito que já existe. Ela não é o todo dos trabalhadores conforme já o são atualmente. Em nossa visão, a multidão é um projeto político por si só. Ou seja, poderemos nos tornar a multidão se conseguirmos encontrar um modo de organização que permita que isso ocorra.
Eis um modo de explicar o conceito, mas não é o único. Essa via nos mostra que é necessário fazer uma análise do trabalho e das relações socioeconômicas atuais para que a multidão possa ser concebida. Assim, perceberemos como o trabalho e as relações sociais podem tornar possível um projeto político como a multidão.
Fukuyama argumenta que, em "Multidão", a globalização (ou o império) é descrita como algo sem benefícios redentores. Como o sr. vê essa afirmação?
Na primeira página do livro dizemos algo que contradiz essa afirmação. Afirmamos que a globalização tem duas faces. Uma delas é uma forma de dominação e constitui a face mais conhecida do fenômeno hoje. Mas a outra face é justamente a relação de cooperação e de comunicação que o fenômeno proporciona. Ambas coexistem. E, enquanto combatemos uma delas, que, para nós, representa uma nova forma de dominação, de controle corporativo e de hegemonia americana, temos de reconhecer a força positiva da outra face da globalização, que permite um maior intercâmbio.
Para mim, a afirmação de Fukuyama advém de sua idéia de que fizemos um trabalho antiglobalização. Mas isso simplesmente não é verdade. Nem Negri nem eu nem a grande maioria das pessoas que protestam contra as ações do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional ou da Organização Mundial do Comércio somos essencialmente antiglobalização. Somos favoráveis a outro tipo de globalização. Isso me parece claro, mas algumas pessoas não conseguem admiti-lo porque têm uma agenda política.
Nesse contexto de dominação, já que o lado negativo do fenômeno é o mais visível, como o sr. explica o fato de alguns países do leste asiático, como a Coréia do Sul, terem se tornado mais ricos e fortes após se abrirem à globalização?
Volto a dizer que a globalização não é apenas algo negativo. Argumento que há aspectos da globalização que criam uma maior disparidade entre os ricos e os pobres e formas mais extremas de exploração. No mesmo círculo econômico da globalização, porém, há maiores possibilidades de cooperação entre grupos e países e de trabalho conjunto. Não digo, portanto, que na Ásia ou na América do Sul a globalização é um fenômeno uniforme, que pode ser considerado bom ou ruim. Na verdade, precisamos perceber as diferenças existentes nos aspectos distintos da globalização para, então, podermos trabalhar para fortalecer o que é positivo e para abrandar o que é negativo.
Tomemos a crise recente ocorrida na Argentina como exemplo. É possível ser contrário à globalização neoliberal e argumentar que a solução é fortalecer a soberania nacional e buscar separar o país do mercado global e do controle das empresas multinacionais. Todavia esse não é nosso argumento. Para nós, a única solução para problemas do gênero não privilegia a soberania nacional e não passa pelo fechamento das fronteiras. Para nós, é preciso que haja mais colaboração entre as nações e as populações, criando uma globalização alternativa. Ou seja, defendemos um modelo que privilegia o trabalho em direção a uma forma de democracia que pode funcionar na esfera global.
No entanto Negri e o sr. sustentam que a democracia não é encarnada pelas leis ou pelas instituições tradicionais, que, em sua opinião, só servem para beneficiar as elites. O que seria a verdadeira democracia, que poderia se opor ao lado negativo da globalização, de acordo com seu livro?
No que tange à democracia, certamente não somos os primeiros a criticar a natureza pouco democrática das estruturas nacionais existentes hoje. Há vários exemplos possíveis, como a eleição presidencial americana de 2000. Não estamos sós nessa discussão, outros analistas também criticam a ausência de democracia nas estruturas e instituições nacionais. Mas isso não é o mais importante. O que realmente conta é que, quando observamos além da escala nacional e analisamos o horizonte global, reconhecemos que as formas nacionais de democracia não são adequadas para levar uma espécie de relação democrática à cena internacional.
Mesmo que o presidente dos EUA seja eleito democraticamente pela população, isso não significa que sua eleição seja globalmente democrática, pois seu poder tem efeitos muito fortes sobre o restante do planeta, que não vota nos EUA. Em vez de falar em democracia verdadeira ou falsa, devemos reconhecer que, em escala mundial, a democracia tem de ser algo diferente do que existe dentro dos Estados-nação. Na cena global, não podemos utilizar o conceito de democracia local e suas instituições desenvolvidas em escala nacional.
Para tanto, o sr. afirma que as hierarquias nacionais e internacionais têm de ser substituídas por redes, que refletiriam a diversidade da multidão. Como esse processo de formação de uma democracia global poderá ocorrer?
Certamente, isso poderia ser a base do início da constituição da multidão. Em termos concretos, a formação da democracia global passa pelas redes. Estas já existem de várias formas diferentes. Logicamente, algumas são benéficas, outras são nocivas. Todavia a razão pela qual devemos falar dessas redes ou das relações de comunicação e de colaboração que caracterizam cada vez mais o trabalho é o fato de que algo novo só poderá ser imaginado tendo isso como base. É por conta disso que não estamos fabricando uma utopia. Trata-se da base sobre a qual algo novo poderá ser construído.
Há dois modos de tornar o planeta mais democrático. Um deles requer considerarmos os vários tipos de reforma do sistema global que têm sido propostos, e não há penúria no que concerne às propostas de democratização do sistema global, da ONU, OMC, do FMI.
A outra via requer certo trabalho filosófico. Afinal, devemos imaginar um novo conceito de democracia e novas instituições, não apenas instituições reformadas que poderiam ser a base da democratização do sistema. Creio que ambas as vias sejam parciais e insuficientes, mas elas se completam e permitem o advento de um projeto para responder à aspiração de tornar o sistema global mais democrático. Não dizemos, no livro, que conhecemos a solução para os problemas mundiais, mas mostramos que é preciso buscar alternativas.
Que tipos de reforma institucional são necessários e quais novas instituições deveriam ser criadas para ajudar na democratização do sistema internacional?
Há uma longa lista de propostas feitas por inúmeros grupos e pessoas que consideramos positivas em nosso livro. Muitas são obviamente justas, mas não são factíveis. Por exemplo, é extremamente não-democrático o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU, o fato de haver membros permanentes com poder de veto etc. Assim, há propostas para expandi-lo, permitindo que líderes regionais, como a Índia e o Brasil, se tornem membros permanentes ou para tornar sua composição rotativa. Trata-se de propostas de reforma democráticas. Mas devemos ter em mente que, para reformar as agências da ONU ou seus órgãos principais, dois terços do próprio Conselho de Segurança têm de aprovar as mudanças, o que as torna muito difíceis.
É útil falar sobre esse tipo de mudança, já que isso cria um ambiente positivo, contudo devemos ter em mente as razões pelas quais essas reformas não são possíveis. Afinal, isso pode permitir que outras pessoas pensem em modos de reformar a ONU para tornar o sistema global mais democrático. Como não somos os únicos que queremos tornar o sistema mais democrático, o livro serve para que as pessoas e as instituições estudem outras mudanças possíveis.


Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em São Paulo, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/3170-4033).



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