São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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Ponto de fuga

Um ar triste

Jorge Coli
especial para a Folha

Frei Filippo Lippi era um pintor renomado. O hábito de carmelita não lhe tolhera a atração imperiosa pelas mulheres. Capelão do convento de Santa Margherita, na cidade toscana de Prato, pede à madre superiora que lhe autorize tomar uma noviça como modelo para a Virgem Maria. Dessas sessões de pose nasceu um filho, Filippino, que não se fez frade, mas se tornou também artista.
Filippo, o pai, introduzira uma elegância suave na heróica pintura florentina do século 15, por meio do traço caligráfico e flexível, das transparências aéreas, das cores luminosas. Seu discípulo, Sandro Botticelli, conduziria esses princípios a um apogeu de linearidade elegíaca que, grácil ou vigorosa, vem habitada pela nostalgia de alguma perda secreta e irremediável. O pequeno Filippino tinha 12 anos quando seu pai morreu, em 1469. Entrou, então, como aprendiz no ateliê de Botticelli e se embebeu tanto dessa arte que suas primeiras obras se confundiam com as do mestre.
Nos últimos 150 anos, Botticelli adquiriu imensa celebridade; a imagem de sua Vênus banalizou-se em reproduções de todos os tipos, que vão da caixa de chocolates à estátua de jardim. Filippino Lippi é muito menos conhecido. No tempo dos dois pintores, porém, chegou a ser celebrado acima do grande Sandro e teve fama que se prolongou por mais tempo, antes que eles fossem esquecidos. O gosto "pré-rafaelita" do século 19, as sensibilidades requintadas e decadentistas os redescobriram, elevando Botticelli às alturas, como o fez Proust. A Filippino Lippi concedeu-se uma posição subalterna.

Par - Uma exposição se encerrou no mês de julho, em Florença, que reuniu obras de Botticelli e Filippino Lippi. O nome do primeiro aparece grande no catálogo, o do segundo, bem menor, embora em 2005 transcorra o quinto centenário de sua morte. Apesar dessa estratégia que põe Botticelli na frente para atrair público, a mostra equilibrou os dois artistas, acrescentando alguns outros (entre eles Leonardo da Vinci) que iluminam a compreensão de ambos. Foi instalada no Palazzo Strozzi, obra-prima da arquitetura florentina no Renascimento, mansão que Sandro e Filippino freqüentaram.
As trajetórias se enlaçam. Ambos conheceram o apogeu de um humanismo voltado para a Antigüidade, mas ameaçado por um sentimento de culpa religioso, que irrompeu na crise espiritual e política, provocada por Savonarola nos anos de 1490. "A melancolia neoplatônica que se tornou moda com Marsilio Ficino se transformaria em inquietação cristã", escreveu Daniel Arasse no catálogo. Nas salas da exposição, Filippino sobressai e se revela um pintor espantoso, à altura do mestre, como queriam os contemporâneos. Com meios diferentes, porém.

Hopper - Filippino Lippi sempre foi notado por seus ornamentos bizarros, pelos ambientes fantásticos que soube criar, pelo "delírio decorativo", como assinalou um crítico, cujo exemplo mais extraordinário se encontra nos afrescos de Santa Maria Novella.
O que de hábito se percebe menos, e a exposição revela, é a atmosfera suave, a claridade pálida recobrindo as paredes, a presença do ar. Se Botticelli fez personagens sonhadores e nostálgicos, com Filippino é o mundo que se torna cúmplice da melancolia. O pequeno quadro da rainha Vasti, repudiada pelo marido que encontrou nova mulher, é incomparável retrato da solidão e do abandono. Ela está só, diante das muralhas, cujas paredes lisas formam um suporte para a luz difusa. No fundo, algumas montanhas, algumas brumas e duas árvores que unem suas copas, criadas por um grafismo rápido e transparente.

Injusto - A mostra do Palazzo Strozzi teve uma primeira realização em Paris, mas ampliou-se e transformou-se por completo em Florença. É exemplar. Associa quadros por temas, provocando interrogações, sugerindo perspectivas renovadas de conhecimento. Mas isso surge depois que a beleza irresistível das obras, tão harmoniosamente dispostas, invade a alma. Foi concebida pelo francês Daniel Arasse, notável historiador da arte, que morreu no final de 2003 aos 59 anos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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