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Dicionários e enciclopédias eram o orgulho do autor, que faria cem anos neste mês
A biblioteca de Borges
ALBERTO MANGUEL
especial para a Folha
Por muitos anos, até sua morte,
em 1986, Borges viveu no sexto
andar de um discreto prédio de
apartamentos no centro de Buenos Aires, perto da praça San
Martín. A porta sempre era aberta
por Fani, a empregada, que nos
levava para o pequeno hall de entrada, onde, na semi-escuridão, o
aguardavam, pacientes, as várias
bengalas de Borges. Depois passava-se por uma porta cortinada e
entrava-se na sala de estar, onde
Borges recebia seus visitantes
com um aperto de mão tímido. À
direita, uma mesa coberta por
uma toalha de renda e quatro cadeiras de encosto reto constituíam a sala de jantar; à esquerda,
sob a janela, havia um sofá gasto e
duas ou três poltronas.
Borges se sentava no sofá e você
escolhia uma das poltronas, de
frente para ele. Enquanto falava,
os olhos cegos do escritor fixavam
um ponto no espaço, e o convidado ficava livre para passear com
os olhos por toda a sala, tomando
nota dos objetos familiares que
constituíam o cotidiano de Borges: uma mesinha na qual guardava uma caneca de prata que pertencera a seu avô, uma escrivaninha em miniatura que datava da
primeira comunhão de sua mãe,
duas estantes brancas contendo
enciclopédias e duas outras estantes de livros, baixas, feitas de madeira escura.
Na parede havia um quadro
pintado por sua irmã, Norah Borges, retratando a Anunciação, e
uma gravura de Piranesi mostrando misteriosas ruínas circulares. Um corredor curto, que saía à
esquerda, levava aos quartos: o de
sua mãe, repleto de fotografias
antigas, e o seu, simples como a
cela de um monge, com uma cama de ferro, duas estantes de livros e uma única cadeira. Na parede de seu quarto havia um prato
de madeira com os brasões dos
diversos cantões da Suíça e a gravura "O Cavaleiro, a Morte e o
Diabo", de Dürer, que Borges celebrou em dois sonetos de grande
beleza.
Para um homem que descreveu
o universo de uma biblioteca e
disse que imaginava o paraíso sob
a forma de uma biblioteca, sua
própria biblioteca era uma surpresa decepcionante. Os visitantes esperavam encontrar uma casa literalmente forrada de livros
-estantes sobrecarregadas, pilhas de livros bloqueando as portas e saindo de cada canto, uma
selva de papel e tinta. Em lugar
disso, defrontavam-se com um
modesto apartamento de três
quartos, mobiliado com discrição, no qual os livros ocupavam
um lugar ordenado, discreto, reservado.
Quando o jovem Mário Vargas
Llosa visitou Borges em meados
dos anos 50, fez algum comentário sobre o apartamento espartano e indagou por que o mestre
não vivia numa casa mais luxuosa, mais livresca. Borges se ofendeu profundamente com a observação. "Talvez seja assim que façam em Lima", respondeu ao indiscreto peruano, "mas nós, aqui
em Buenos Aires, não gostamos
de nos mostrar".
Entretanto as poucas estantes
de livros continham a essência
das leituras de Borges, a começar
por aquelas que abrigavam as enciclopédias e os dicionários e
eram o orgulho de Borges. "Vou
lhe contar um segredo", costumava dizer aos visitantes, "gosto de
fazer de conta que não sou cego e
cobiço livros como um homem
que enxerga. Chego a ponto de
cobiçar enciclopédias novas. Posso visualizar o percurso dos rios
em seus mapas e encontrar coisas
fantásticas nos diferentes verbetes".
Ele gostava de contar como, ainda criança, acompanhava seu pai
à Biblioteca Nacional (da qual,
muito mais tarde, iria se tornar diretor) e, sem coragem de pedir
um livro, simplesmente tirava um
dos volumes da "Britannica" das
estantes abertas e lia qualquer artigo que se apresentasse ao abrir o
livro. Às vezes tinha sorte, como
quando, segundo contou, escolheu o volume De-Dr e aprendeu
sobre os druidas, os drusos e o
poeta Dryden.
Borges nunca abandonou esse
hábito de confiar no acaso ordenado de uma enciclopédia e passava muitas horas folheando os
volumes da "Garzanti", "Brockhaus", "Britannica" ou "Espasa-Calpe" (e pedindo que alguém lhe
fizesse a leitura). Depois, pedia
que alguma informação especialmente atraente fosse registrada,
juntamente com o número da página em que aparecia, no final do
volume revelador.
As duas estantes baixas na sala
continham livros de Stevenson,
Chesterton, Henry James, Kipling. Delas, Borges tirou uma pequena edição encadernada em
vermelho de "Stalky and Co." que
comprara quando adolescente e
me deu como um presente de despedida quando deixei a Argentina, em 1968. Delas, também, me
fez buscar os volumes de contos
de Kipling e ensaios de Stevenson
que lemos ao longo de muitas
noites e que ele comentava com
tanta inteligência e espirituosidade.
Era nelas, também, que guardava "An Experiment with Time",
de J.W. Dunne; vários livros de
Wells; "The Moonstone", de Wilkie Collins; vários romances de
Eça de Queiroz, cujas capas já estavam amareladas; livros de Lugones, Guiraldes e Groussac;
"Ulisses" e "Finnegans Wake", de
Joyce; "Vidas Imaginárias", de
Marcel Schwob; policiais de John
Dickson Carr, Milward Kennedy
e Richard Hull; "A Vida no Mississipi", de Mark Twain; "Buried
Alive", de Enoch Bennett; uma
pequena edição em capa mole de
"Lady into Fox" e "The Man in the
Zoo", de David Garnett, com delicadas ilustrações a nanquim; as
obras completas de Oscar Wilde e
as obras completas de Lewis Carroll; "Der Untergang des Abendlandes" (O Ocaso do Ocidente),
de Spengler; os diversos volumes
de "Declínio e Queda do Império
Romano", de Gibbon, e vários livros de matemática e filosofia, incluindo volumes de Swedenborg,
Schopenhauer e o "Worterbuch
der Philosophie", de Fritz Mauthner, de que Borges tanto gostava.
Vários desses livros acompanhavam Borges desde sua adolescência; outros, os que estavam em
inglês e alemão, ostentavam as
etiquetas das livrarias de Buenos
Aires nas quais tinham sido comprados, todas desaparecidas hoje:
Mitchell's, Rodriguez, Pygmalion.
As estantes no quarto continham livros de poesia e uma das
maiores coleções de literatura anglo-saxã e islandesa que se poderia encontrar na América Latina.
Era lá que Borges guardava os livros que usava para estudar o que
chamou de "las ásperas y laboriosas palabras/ Que, con una boca
hecha polvo,/ Usé en los días de
Nortumbria y de Mercia/ Antes
de ser Haslam o Borges". Eu mesmo lhe vendera vários deles, na livraria Pygmalion: o dicionário de
Skeat, uma versão comentada de
"The Battle of Maldon", "Altgermanische Religions Geschichte",
de Richard Meyer.
A outra estante continha os
poemas de Enrique Banchs, de
Heine, de San Juan de la Cruz, e
muitos livros de comentários sobre Dante: de Benedetto Croce,
Francesco Torraca, Luigi Pietrobono, Guido Vitali. Ausências
misteriosas em suas estantes
eram Proust, Racine, "Fausto", de
Goethe, Milton e as tragédias gregas (todos os quais, é claro, ele tinha lido, tendo feito referências a
eles em seus escritos).
Também ausentes de suas estantes eram seus próprios livros.
Ao visitante que pedia para ver
uma primeira edição de algum de
seus livros, Borges respondia,
com orgulho, que não possuía um
único volume que levasse seu nome, "eminentemente esquecível".
(Não precisava; embora simulasse não se recordar, era capaz de
recitar de cor poemas aprendidos
muitas décadas antes e de corrigir
e modificar em sua memória seus
próprios escritos, normalmente
para o espanto e deleite de seus
ouvintes.)
Certa vez, enquanto eu estava
em sua casa, o carteiro trouxe um
pacote grande contendo uma edição de luxo de seu conto "The
Congress", publicado na Itália
por Franco Maria Ricci. Era um livro enorme, encadernado em seda negra com títulos folheados a
ouro e impresso em papel azul Fabriano, feito à mão, com cada
ilustração (o conto tinha sido ilustrado com pinturas tântricas) acabada manualmente, e cada exemplar numerado. Borges pediu que
eu descrevesse o livro. Ouviu com
cuidado e então exclamou: "Mas
isso não é um livro, é uma caixa de
bombons!", e imediatamente o
deu de presente ao constrangido
carteiro.
Borges acreditava que nosso dever moral é sermos felizes e pensava que a felicidade podia ser encontrada nos livros, embora não
conseguisse explicar o porquê
disso. "Não sei exatamente por
que acredito que um livro nos traz
a possibilidade da felicidade", dizia. "Mas sou profundamente
grato por esse modesto milagre."
Alberto Manguel é escritor e ensaísta argentino naturalizado canadense, autor, entre outros, de "Uma História da Leitura"
(Companhia das Letras). Foi, durante a juventude, secretário de Jorge Luis Borges.
Tradução de Clara Allain.
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