São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Dicionários e enciclopédias eram o orgulho do autor, que faria cem anos neste mês
A biblioteca de Borges

ALBERTO MANGUEL
especial para a Folha

Por muitos anos, até sua morte, em 1986, Borges viveu no sexto andar de um discreto prédio de apartamentos no centro de Buenos Aires, perto da praça San Martín. A porta sempre era aberta por Fani, a empregada, que nos levava para o pequeno hall de entrada, onde, na semi-escuridão, o aguardavam, pacientes, as várias bengalas de Borges. Depois passava-se por uma porta cortinada e entrava-se na sala de estar, onde Borges recebia seus visitantes com um aperto de mão tímido. À direita, uma mesa coberta por uma toalha de renda e quatro cadeiras de encosto reto constituíam a sala de jantar; à esquerda, sob a janela, havia um sofá gasto e duas ou três poltronas.
Borges se sentava no sofá e você escolhia uma das poltronas, de frente para ele. Enquanto falava, os olhos cegos do escritor fixavam um ponto no espaço, e o convidado ficava livre para passear com os olhos por toda a sala, tomando nota dos objetos familiares que constituíam o cotidiano de Borges: uma mesinha na qual guardava uma caneca de prata que pertencera a seu avô, uma escrivaninha em miniatura que datava da primeira comunhão de sua mãe, duas estantes brancas contendo enciclopédias e duas outras estantes de livros, baixas, feitas de madeira escura.
Na parede havia um quadro pintado por sua irmã, Norah Borges, retratando a Anunciação, e uma gravura de Piranesi mostrando misteriosas ruínas circulares. Um corredor curto, que saía à esquerda, levava aos quartos: o de sua mãe, repleto de fotografias antigas, e o seu, simples como a cela de um monge, com uma cama de ferro, duas estantes de livros e uma única cadeira. Na parede de seu quarto havia um prato de madeira com os brasões dos diversos cantões da Suíça e a gravura "O Cavaleiro, a Morte e o Diabo", de Dürer, que Borges celebrou em dois sonetos de grande beleza.
Para um homem que descreveu o universo de uma biblioteca e disse que imaginava o paraíso sob a forma de uma biblioteca, sua própria biblioteca era uma surpresa decepcionante. Os visitantes esperavam encontrar uma casa literalmente forrada de livros -estantes sobrecarregadas, pilhas de livros bloqueando as portas e saindo de cada canto, uma selva de papel e tinta. Em lugar disso, defrontavam-se com um modesto apartamento de três quartos, mobiliado com discrição, no qual os livros ocupavam um lugar ordenado, discreto, reservado.
Quando o jovem Mário Vargas Llosa visitou Borges em meados dos anos 50, fez algum comentário sobre o apartamento espartano e indagou por que o mestre não vivia numa casa mais luxuosa, mais livresca. Borges se ofendeu profundamente com a observação. "Talvez seja assim que façam em Lima", respondeu ao indiscreto peruano, "mas nós, aqui em Buenos Aires, não gostamos de nos mostrar".
Entretanto as poucas estantes de livros continham a essência das leituras de Borges, a começar por aquelas que abrigavam as enciclopédias e os dicionários e eram o orgulho de Borges. "Vou lhe contar um segredo", costumava dizer aos visitantes, "gosto de fazer de conta que não sou cego e cobiço livros como um homem que enxerga. Chego a ponto de cobiçar enciclopédias novas. Posso visualizar o percurso dos rios em seus mapas e encontrar coisas fantásticas nos diferentes verbetes".
Ele gostava de contar como, ainda criança, acompanhava seu pai à Biblioteca Nacional (da qual, muito mais tarde, iria se tornar diretor) e, sem coragem de pedir um livro, simplesmente tirava um dos volumes da "Britannica" das estantes abertas e lia qualquer artigo que se apresentasse ao abrir o livro. Às vezes tinha sorte, como quando, segundo contou, escolheu o volume De-Dr e aprendeu sobre os druidas, os drusos e o poeta Dryden.
Borges nunca abandonou esse hábito de confiar no acaso ordenado de uma enciclopédia e passava muitas horas folheando os volumes da "Garzanti", "Brockhaus", "Britannica" ou "Espasa-Calpe" (e pedindo que alguém lhe fizesse a leitura). Depois, pedia que alguma informação especialmente atraente fosse registrada, juntamente com o número da página em que aparecia, no final do volume revelador.
As duas estantes baixas na sala continham livros de Stevenson, Chesterton, Henry James, Kipling. Delas, Borges tirou uma pequena edição encadernada em vermelho de "Stalky and Co." que comprara quando adolescente e me deu como um presente de despedida quando deixei a Argentina, em 1968. Delas, também, me fez buscar os volumes de contos de Kipling e ensaios de Stevenson que lemos ao longo de muitas noites e que ele comentava com tanta inteligência e espirituosidade.
Era nelas, também, que guardava "An Experiment with Time", de J.W. Dunne; vários livros de Wells; "The Moonstone", de Wilkie Collins; vários romances de Eça de Queiroz, cujas capas já estavam amareladas; livros de Lugones, Guiraldes e Groussac; "Ulisses" e "Finnegans Wake", de Joyce; "Vidas Imaginárias", de Marcel Schwob; policiais de John Dickson Carr, Milward Kennedy e Richard Hull; "A Vida no Mississipi", de Mark Twain; "Buried Alive", de Enoch Bennett; uma pequena edição em capa mole de "Lady into Fox" e "The Man in the Zoo", de David Garnett, com delicadas ilustrações a nanquim; as obras completas de Oscar Wilde e as obras completas de Lewis Carroll; "Der Untergang des Abendlandes" (O Ocaso do Ocidente), de Spengler; os diversos volumes de "Declínio e Queda do Império Romano", de Gibbon, e vários livros de matemática e filosofia, incluindo volumes de Swedenborg, Schopenhauer e o "Worterbuch der Philosophie", de Fritz Mauthner, de que Borges tanto gostava.
Vários desses livros acompanhavam Borges desde sua adolescência; outros, os que estavam em inglês e alemão, ostentavam as etiquetas das livrarias de Buenos Aires nas quais tinham sido comprados, todas desaparecidas hoje: Mitchell's, Rodriguez, Pygmalion.
As estantes no quarto continham livros de poesia e uma das maiores coleções de literatura anglo-saxã e islandesa que se poderia encontrar na América Latina. Era lá que Borges guardava os livros que usava para estudar o que chamou de "las ásperas y laboriosas palabras/ Que, con una boca hecha polvo,/ Usé en los días de Nortumbria y de Mercia/ Antes de ser Haslam o Borges". Eu mesmo lhe vendera vários deles, na livraria Pygmalion: o dicionário de Skeat, uma versão comentada de "The Battle of Maldon", "Altgermanische Religions Geschichte", de Richard Meyer.
A outra estante continha os poemas de Enrique Banchs, de Heine, de San Juan de la Cruz, e muitos livros de comentários sobre Dante: de Benedetto Croce, Francesco Torraca, Luigi Pietrobono, Guido Vitali. Ausências misteriosas em suas estantes eram Proust, Racine, "Fausto", de Goethe, Milton e as tragédias gregas (todos os quais, é claro, ele tinha lido, tendo feito referências a eles em seus escritos).
Também ausentes de suas estantes eram seus próprios livros. Ao visitante que pedia para ver uma primeira edição de algum de seus livros, Borges respondia, com orgulho, que não possuía um único volume que levasse seu nome, "eminentemente esquecível". (Não precisava; embora simulasse não se recordar, era capaz de recitar de cor poemas aprendidos muitas décadas antes e de corrigir e modificar em sua memória seus próprios escritos, normalmente para o espanto e deleite de seus ouvintes.)
Certa vez, enquanto eu estava em sua casa, o carteiro trouxe um pacote grande contendo uma edição de luxo de seu conto "The Congress", publicado na Itália por Franco Maria Ricci. Era um livro enorme, encadernado em seda negra com títulos folheados a ouro e impresso em papel azul Fabriano, feito à mão, com cada ilustração (o conto tinha sido ilustrado com pinturas tântricas) acabada manualmente, e cada exemplar numerado. Borges pediu que eu descrevesse o livro. Ouviu com cuidado e então exclamou: "Mas isso não é um livro, é uma caixa de bombons!", e imediatamente o deu de presente ao constrangido carteiro.
Borges acreditava que nosso dever moral é sermos felizes e pensava que a felicidade podia ser encontrada nos livros, embora não conseguisse explicar o porquê disso. "Não sei exatamente por que acredito que um livro nos traz a possibilidade da felicidade", dizia. "Mas sou profundamente grato por esse modesto milagre."


Alberto Manguel é escritor e ensaísta argentino naturalizado canadense, autor, entre outros, de "Uma História da Leitura" (Companhia das Letras). Foi, durante a juventude, secretário de Jorge Luis Borges.
Tradução de Clara Allain.


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