São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Reescritura

JULIO PIMENTEL PINTO
especial para a Folha

Reescrever, reescrever continuamente. Falamos isso e imediatamente lembramos de Borges. Já houve quem dissesse que era impossível falar de Borges sem falar de reescritura, e vice-versa. Talvez seja verdade. O fato é que a idéia de reescritura, para ele, tem vários sentidos: Borges reescreve os próprios textos, reescreve textos alheios. Reescrevendo, define o ofício literário, justifica a importância da tradição, da crítica e da leitura.
Em 1953, por exemplo, quando seu editor propôs que se lançassem suas obras completas, Borges aceitou e justificou a aceitação afirmando que isso lhe facilitaria suprimir "alguns volumes disparatados" e corrigir outros tantos. Em outras palavras, aceitou a organização de suas obras completas para alterá-las ou para reduzi-las e contraí-las. E de fato o fez, não só na primeira edição dessas obras, mas também nas posteriores: baniu livros inteiros, eliminou textos (que eventualmente ressurgiram, alterados, em edição posterior), mudou palavras, frases inteiras. Reescreveu sua obra. E faria isso, ininterruptamente, até o fim da vida, reconhecendo que não só ele mudava, mas também mudavam os leitores que receberiam seus escritos. Notava, e fazia com que notassem, que um texto se reconstrói no ato de leitura e que um mesmo texto, lido em momentos diferentes, produz significados distintos. Daí a necessidade de reescrevê-lo.
E não fazia isso só com o que ele próprio escrevia. Numa entrevista, definiu o escritor como um "compilador do engenho alheio". Praticava o que falava: cortava e colava textos de outros; repetia histórias, situando-as em outros cenários. É assim que, em "A Trama", a morte de César, o romano, reaparece no assassinato de um gaúcho pelo próprio filho e em suas palavras de espanto: "Pero, che!", expressas por quem não sabe que morre, diz Borges, "só para que se repita uma cena". É o que acontece, também, quando acrescenta mais uma história às das "Mil e uma Noites" ou quando continua a saga de Martín Fierro. O leitor Borges assume as tradições literária e histórica, repete-as e renova-as. Reescreve, porque reescritura é, simultaneamente, repetição e diferença.
E reescreve porque cortar e colar é, também, recriar. O ofício do compilador é tão ou mais importante do que o engenho em que se baseou, mas depende deste. Daí o escritor ser, prioritariamente, um leitor. Das leituras que compõem o imenso repertório -a memória- de Borges nascem os textos. É a tradição traduzida num novo contexto. É a crítica realizada pela interpretação contida em cada leitura. É o ofício literário teorizado como trabalho de reescritura. Talvez seja mesmo impossível falar de reescritura sem falar de Borges, e vice-versa.


Julio Pimentel Pinto é professor no departamento de história da USP e autor, entre outros, de "Uma Memória do Mundo - Ficção, Memória e História em Jorge Luis Borges" (Estação Liberdade).


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