|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Reescritura
JULIO PIMENTEL PINTO
especial para a Folha
Reescrever, reescrever continuamente. Falamos isso e imediatamente lembramos de Borges. Já
houve quem dissesse que era impossível falar de Borges sem falar
de reescritura, e vice-versa. Talvez
seja verdade. O fato é que a idéia
de reescritura, para ele, tem vários
sentidos: Borges reescreve os próprios textos, reescreve textos
alheios. Reescrevendo, define o
ofício literário, justifica a importância da tradição, da crítica e da
leitura.
Em 1953, por exemplo, quando
seu editor propôs que se lançassem suas obras completas, Borges
aceitou e justificou a aceitação
afirmando que isso lhe facilitaria
suprimir "alguns volumes disparatados" e corrigir outros tantos.
Em outras palavras, aceitou a organização de suas obras completas para alterá-las ou para reduzi-las e contraí-las. E de fato o fez,
não só na primeira edição dessas
obras, mas também nas posteriores: baniu livros inteiros, eliminou textos (que eventualmente
ressurgiram, alterados, em edição
posterior), mudou palavras, frases inteiras. Reescreveu sua obra.
E faria isso, ininterruptamente,
até o fim da vida, reconhecendo
que não só ele mudava, mas também mudavam os leitores que receberiam seus escritos. Notava, e
fazia com que notassem, que um
texto se reconstrói no ato de leitura e que um mesmo texto, lido em
momentos diferentes, produz significados distintos. Daí a necessidade de reescrevê-lo.
E não fazia isso só com o que ele
próprio escrevia. Numa entrevista, definiu o escritor como um
"compilador do engenho alheio".
Praticava o que falava: cortava e
colava textos de outros; repetia
histórias, situando-as em outros
cenários. É assim que, em "A Trama", a morte de César, o romano,
reaparece no assassinato de um
gaúcho pelo próprio filho e em
suas palavras de espanto: "Pero,
che!", expressas por quem não sabe que morre, diz Borges, "só para
que se repita uma cena". É o que
acontece, também, quando acrescenta mais uma história às das
"Mil e uma Noites" ou quando
continua a saga de Martín Fierro.
O leitor Borges assume as tradições literária e histórica, repete-as
e renova-as. Reescreve, porque
reescritura é, simultaneamente,
repetição e diferença.
E reescreve porque cortar e colar é, também, recriar. O ofício do
compilador é tão ou mais importante do que o engenho em que se
baseou, mas depende deste. Daí o
escritor ser, prioritariamente, um
leitor. Das leituras que compõem
o imenso repertório -a memória- de Borges nascem os textos.
É a tradição traduzida num novo
contexto. É a crítica realizada pela
interpretação contida em cada
leitura. É o ofício literário teorizado como trabalho de reescritura.
Talvez seja mesmo impossível falar de reescritura sem falar de
Borges, e vice-versa.
Julio Pimentel Pinto é professor no departamento de história da USP e autor, entre outros, de "Uma Memória do Mundo - Ficção, Memória e História em Jorge Luis Borges" (Estação Liberdade).
Texto Anterior: João Alexandre Barbosa: Quixotismo Próximo Texto: Juremir Machado da Silva: Sul Índice
|