São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Uqbar

IRLEMAR CHIAMPI
especial para a Folha

É o falso país (ou região) da Ásia Menor que Borges descobre graças à conjunção de um espelho e uma enciclopédia. O encontro desses dois objetos falazes dá-se no conto-ensaio "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" (1940), na frase de um heresiarca uqbarino, que declara serem os espelhos e a cópula abomináveis, "porque multiplicam o número dos homens". O conto arma uma trama ardilosa de conexões entre os termos cópula, espelho e enciclopédia (na Idade Média, chamada de "speculum mundi"), que se projetam por sua vez nos desdobramentos de Uqbar (o país-verbete) em Tlön (o planeta compendiado numa Enciclopédia de cem tomos);este/esta, por sua vez, desdobra-se em Orbis Tertius, na verdade a Terra, como era chamada na cosmografia do Renascimento, cuja enciclopédia vastíssima é a obra "in fieri" de uma equipe de pensadores. Com essa série de mundos fantásticos, que são universos-textos utópicos, urdidos pela imaginação dos homens, que se refletem e multiplicam, Borges parodia as filosofias da modernidade e nos adverte, com o cenário apocalíptico da materialização de objetos ideais na Terra, dos perigos que a incessante produção de signos provoca ao separar as palavras das coisas.
Como primeiro avatar da série, Uqbar é introduzido como verbete para tornar verossímil a sua existência: a notícia desse lugar consta das quatro páginas finais (918-921) do volume 46 da "Anglo-American Cyclopaedia" (Nova York, 1917), que é uma reimpressão literal da décima edição da "Encyclopaedia Britannica" de 1902. Ali se informa vagamente sobre sua geografia e história e sua literatura, que é de caráter fantástico, com epopéias e lendas que transcorrem em Mlejnas e Tlön. Foi objeto de estudo de Silas Haslam -o mesmo autor de "A General History of Labyrinths"- em "History of the Land Called Uqbar" (1874), obra que figura nos catálogos do livreiro Bernard Quarich; e também de Johannes Valentinus Andreä -em "Lesbare und lesenswerthe Bemerkungen über das Land Ukkbar in Klein-Asien", de 1641. A estratégia de falsas atribuições, de citações de textos apócrifos, a mescla de dados reais com fictícios tornam improvável a existência de Uqbar: nunca houve o autor Haslam (por sinal, sobrenome da querida Frances, a avó materna de Borges), nem a obra, mas sim o livreiro. Andreä, o teólogo alemão que descreveu, no começo do 17, a comunidade que Rosenkreutz fundaria depois como uma utopia iluminista, nunca escreveu sobre Uqbar. Tampouco existem aquelas páginas, ou melhor, nem existe a tal "Enciclopedia Anglo-Americana", e menos ainda o volume 46 da "Britannica", que naquele ano parou no volume 25.
Quanto ao vocábulo, Uqbar sugere logo utopia (o não-lugar), com o prefixo "ouk" (não, em grego). Pode também ser um anagrama, talvez de Burak (ou Alburak): a égua mítica resplandecente, que na tradição islâmica do ciclo do "miraj" transporta o Profeta ao sétimo céu (Borges a cita em "Historia da Eternidade"); ou de Baruc ou Baruch, o sábio de Israel, que escreveu em 581 o livro que leva seu nome, conhecido como o "Apocalipse" não canônico.
Como versão prévia de Tlön e Orbis Tertius, Uqbar é apenas a primeira máscara do vasto enigma que envolve a contingência do conhecimento. A ficção borgiana elabora rigorosamente as conjunções/cópulas de signos e saberes que situam a Uqbar no reflexo (isto é, a Enciclopédia como reflexo do mundo) do reflexo (outra Enciclopédia) de um reflexo (a mente de seus demiurgos).


Irlemar Chiampi é professora titular de literatura hispano-americana da USP e autora de "Barroco e Modernidade" (Perspectiva), entre outros.


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