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Uqbar
IRLEMAR CHIAMPI
especial para a Folha
É o falso país (ou região) da Ásia
Menor que Borges descobre graças à conjunção de um espelho e
uma enciclopédia. O encontro
desses dois objetos falazes dá-se
no conto-ensaio "Tlön, Uqbar,
Orbis Tertius" (1940), na frase de
um heresiarca uqbarino, que declara serem os espelhos e a cópula
abomináveis, "porque multiplicam o número dos homens". O
conto arma uma trama ardilosa
de conexões entre os termos cópula, espelho e enciclopédia (na
Idade Média, chamada de "speculum mundi"), que se projetam
por sua vez nos desdobramentos
de Uqbar (o país-verbete) em
Tlön (o planeta compendiado numa Enciclopédia de cem tomos);este/esta, por sua vez, desdobra-se em Orbis Tertius, na verdade a Terra, como era chamada na
cosmografia do Renascimento,
cuja enciclopédia vastíssima é a
obra "in fieri" de uma equipe de
pensadores. Com essa série de
mundos fantásticos, que são universos-textos utópicos, urdidos
pela imaginação dos homens, que
se refletem e multiplicam, Borges
parodia as filosofias da modernidade e nos adverte, com o cenário
apocalíptico da materialização de
objetos ideais na Terra, dos perigos que a incessante produção de
signos provoca ao separar as palavras das coisas.
Como primeiro avatar da série,
Uqbar é introduzido como verbete para tornar verossímil a sua
existência: a notícia desse lugar
consta das quatro páginas finais
(918-921) do volume 46 da "Anglo-American Cyclopaedia" (Nova York, 1917), que é uma reimpressão literal da décima edição
da "Encyclopaedia Britannica" de
1902. Ali se informa vagamente
sobre sua geografia e história e
sua literatura, que é de caráter
fantástico, com epopéias e lendas
que transcorrem em Mlejnas e
Tlön. Foi objeto de estudo de Silas
Haslam -o mesmo autor de "A
General History of Labyrinths"-
em "History of the Land Called
Uqbar" (1874), obra que figura
nos catálogos do livreiro Bernard
Quarich; e também de Johannes
Valentinus Andreä -em "Lesbare und lesenswerthe Bemerkungen über das Land Ukkbar in
Klein-Asien", de 1641. A estratégia
de falsas atribuições, de citações
de textos apócrifos, a mescla de
dados reais com fictícios tornam
improvável a existência de Uqbar:
nunca houve o autor Haslam (por
sinal, sobrenome da querida
Frances, a avó materna de Borges), nem a obra, mas sim o livreiro. Andreä, o teólogo alemão que
descreveu, no começo do 17, a comunidade que Rosenkreutz fundaria depois como uma utopia
iluminista, nunca escreveu sobre
Uqbar. Tampouco existem aquelas páginas, ou melhor, nem existe
a tal "Enciclopedia Anglo-Americana", e menos ainda o volume 46
da "Britannica", que naquele ano
parou no volume 25.
Quanto ao vocábulo, Uqbar sugere logo utopia (o não-lugar),
com o prefixo "ouk" (não, em
grego). Pode também ser um anagrama, talvez de Burak (ou Alburak): a égua mítica resplandecente, que na tradição islâmica do ciclo do "miraj" transporta o Profeta ao sétimo céu (Borges a cita em
"Historia da Eternidade"); ou de
Baruc ou Baruch, o sábio de Israel, que escreveu em 581 o livro
que leva seu nome, conhecido como o "Apocalipse" não canônico.
Como versão prévia de Tlön e
Orbis Tertius, Uqbar é apenas a
primeira máscara do vasto enigma que envolve a contingência do
conhecimento. A ficção borgiana
elabora rigorosamente as conjunções/cópulas de signos e saberes
que situam a Uqbar no reflexo (isto é, a Enciclopédia como reflexo
do mundo) do reflexo (outra Enciclopédia) de um reflexo (a mente de seus demiurgos).
Irlemar Chiampi é professora titular de literatura hispano-americana da USP e autora
de "Barroco e Modernidade" (Perspectiva),
entre outros.
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