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PONTO DE FUGA
A uva e o vinho
JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York
Com 80 anos, Eric Rohmer
conclui o ciclo dos "Contos das
Quatro Estações", iniciado em
1989. É a vez do outono. Neste
baixo mundo, um lugar lembra o paraíso, primordial e
cristalino: o outono de Rohmer se passa na Provença do
norte, onde a luz é a mais fina e
a arquitetura românica a mais
delicada. A Provença não compete com a Borgonha ou com
Bordeaux em vinhos, mas alguns deles são inspirados: de lá
vem o "Châteauneuf du Pape".
Outono é o tempo das uvas
maduras. Amor é coisa de maduros: citação, a propósito, de
Carlos Drummond de Andrade. Sem melancolias inúteis,
quarentões e jovens cruzam-se
entre parreiras. Os diálogos
são comedidos e elegantes como sempre e, como sempre, a
referência a um espírito do século 18 é inevitável. Se "Les Genoux de Claire" traziam Choderlos de Laclos para os tempos de hoje, "Conte d'Automne" lembra as manipulações
casamenteiras de Jane Austen.
Os atores de Rohmer nunca
parecem profissionais: eles
têm uma imprecisão "natural"; atitudes banais que, imediatamente, fazem ecoar sentidos adivinhados. Econômico
nas imagens, abundante nas
falas, é sempre espantoso como Rohmer sabe filmar aquilo
que é interior e invisível. O sorriso do espectador, ou o seu incômodo, vem de situações onde não cabe apontar. Nesse filme, possível é a palavra-chave:
o possível dos afetos futuros. O
possível que transforma a uva
madura em vinho.
Naked City - Em NY, a taxa
de crime baixou hoje para os
níveis de 1961, e a cidade é muito segura. Mas, em 1977, parecia um inferno descontrolado.
Gangues se esfaqueavam pelo
tráfico de drogas. No verão escaldante, centenas de pessoas
pilharam lojas durante o tempo de um blecaute. Um serial-killer causava pânico no
Bronx. Punks começavam a
transitar e, embora inofensivos, assustavam pelo aspecto.
O medo tomava conta. Esse
caldeirão em fervura é o objeto
do filme "Summer of Sam", de
Spike Lee. O título deriva de
"Son of Sam", apelido que os
tablóides sensacionalistas deram ao assassino. Há um claro
parentesco com "Faça a Coisa
Certa", mas o tom antropológico é ainda mais agudo. O estilo mostra-se falsamente desleixado para esposar, sem falhas, as variações dos ambientes diversos. Os atores são formidáveis, sobretudo os protagonistas John Leiguzano, Mira
Sorvino e Adrien Brody, e Lee é
um mestre ao dirigi-los. Como
em "M", de Fritz Lang, do qual
"Summer of Sam" sem dúvida
descende, os crimes não são
tão importantes quanto as reações coletivas que provocam e,
como em "Fury", do mesmo
Lang, o eixo encontra-se na
violência estúpida das histerias
desencadeadas.
Clima - Os filmes de Rohmer
não atraem multidões, está claro, mas "Conto de Outono", na
sua pequena escala, faz muito
sucesso em NY. Entre o humor
sutil e os sentimentos imprevistos, o público que lota as salas fica dependurado no suspense da trama, feito com tão
poucos meios e de custo tão
baixo. O cinema de Rohmer é a
antítese do maravilhoso espetáculo americano, de "Titanic"
ou "Star Wars". É também a
negação plena de um certo
sentimentalismo "de arte", como "Cinema Paradiso" ou
"Central do Brasil".
Palavras - "Eyes Wide
Shut" é o título original do
último filme de Kubrick, impossível de ser traduzido e
querendo dizer algo como
"olhos arregaladamente fechados". "De Olhos Bem Fechados", o título brasileiro é
sugestivo, mas não contém o
ponto contraditório que evoca a contemplação de imagens internas, sonho e vigília
a um tempo e, a um tempo,
presença e ausência do mundo. Olhar voltado para dentro como o de certas estátuas
clássicas sem as pupilas desenhadas.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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