São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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PONTO DE FUGA

A uva e o vinho

JORGE COLI
especial para a Folha,

em Nova York
Com 80 anos, Eric Rohmer conclui o ciclo dos "Contos das Quatro Estações", iniciado em 1989. É a vez do outono. Neste baixo mundo, um lugar lembra o paraíso, primordial e cristalino: o outono de Rohmer se passa na Provença do norte, onde a luz é a mais fina e a arquitetura românica a mais delicada. A Provença não compete com a Borgonha ou com Bordeaux em vinhos, mas alguns deles são inspirados: de lá vem o "Châteauneuf du Pape". Outono é o tempo das uvas maduras. Amor é coisa de maduros: citação, a propósito, de Carlos Drummond de Andrade. Sem melancolias inúteis, quarentões e jovens cruzam-se entre parreiras. Os diálogos são comedidos e elegantes como sempre e, como sempre, a referência a um espírito do século 18 é inevitável. Se "Les Genoux de Claire" traziam Choderlos de Laclos para os tempos de hoje, "Conte d'Automne" lembra as manipulações casamenteiras de Jane Austen. Os atores de Rohmer nunca parecem profissionais: eles têm uma imprecisão "natural"; atitudes banais que, imediatamente, fazem ecoar sentidos adivinhados. Econômico nas imagens, abundante nas falas, é sempre espantoso como Rohmer sabe filmar aquilo que é interior e invisível. O sorriso do espectador, ou o seu incômodo, vem de situações onde não cabe apontar. Nesse filme, possível é a palavra-chave: o possível dos afetos futuros. O possível que transforma a uva madura em vinho.

Naked City - Em NY, a taxa de crime baixou hoje para os níveis de 1961, e a cidade é muito segura. Mas, em 1977, parecia um inferno descontrolado. Gangues se esfaqueavam pelo tráfico de drogas. No verão escaldante, centenas de pessoas pilharam lojas durante o tempo de um blecaute. Um serial-killer causava pânico no Bronx. Punks começavam a transitar e, embora inofensivos, assustavam pelo aspecto. O medo tomava conta. Esse caldeirão em fervura é o objeto do filme "Summer of Sam", de Spike Lee. O título deriva de "Son of Sam", apelido que os tablóides sensacionalistas deram ao assassino. Há um claro parentesco com "Faça a Coisa Certa", mas o tom antropológico é ainda mais agudo. O estilo mostra-se falsamente desleixado para esposar, sem falhas, as variações dos ambientes diversos. Os atores são formidáveis, sobretudo os protagonistas John Leiguzano, Mira Sorvino e Adrien Brody, e Lee é um mestre ao dirigi-los. Como em "M", de Fritz Lang, do qual "Summer of Sam" sem dúvida descende, os crimes não são tão importantes quanto as reações coletivas que provocam e, como em "Fury", do mesmo Lang, o eixo encontra-se na violência estúpida das histerias desencadeadas.

Clima - Os filmes de Rohmer não atraem multidões, está claro, mas "Conto de Outono", na sua pequena escala, faz muito sucesso em NY. Entre o humor sutil e os sentimentos imprevistos, o público que lota as salas fica dependurado no suspense da trama, feito com tão poucos meios e de custo tão baixo. O cinema de Rohmer é a antítese do maravilhoso espetáculo americano, de "Titanic" ou "Star Wars". É também a negação plena de um certo sentimentalismo "de arte", como "Cinema Paradiso" ou "Central do Brasil".

Palavras - "Eyes Wide Shut" é o título original do último filme de Kubrick, impossível de ser traduzido e querendo dizer algo como "olhos arregaladamente fechados". "De Olhos Bem Fechados", o título brasileiro é sugestivo, mas não contém o ponto contraditório que evoca a contemplação de imagens internas, sonho e vigília a um tempo e, a um tempo, presença e ausência do mundo. Olhar voltado para dentro como o de certas estátuas clássicas sem as pupilas desenhadas.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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