São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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O HISTORIADOR GLOBALIZADO

Araujo Netto/Agência "Jornal do Brasil"
O historiador italiano Carlo Ginzburg


Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

O nome do historiador italiano Carlo Ginzburg quase dispensa apresentações no Brasil. Desde o inovador "O Queijo e os Vermes", publicado aqui em 1987, seus livros têm recebido uma excelente acolhida dos historiadores nacionais. Depois de uma década e meia de "convivência" com seus trabalhos -sete dos quais traduzidos para o português, incluindo "Relações de Força", que sai nesta semana pela Cia. das Letras- , mesmo os mais reticentes em relação ao empreendimento micro-histórico ou a "inovações" do gênero aprenderam a reconhecer a seriedade das suas pesquisas, o rigor dos procedimentos metodológicos que utiliza, a peculiaridade dos temas que escolhe e, o que não é de somenos, as virtudes da sua escrita clara e cativante.
Aprenderam, igualmente, a reconhecer que sua obra tem, em linhas gerais, duas vertentes articuladas, mas distintas: uma, formada por pesquisas extensas e detalhadas, nas quais a documentação primária é abundante, a história comparativa ocupa um papel de destaque e a busca de "princípios gerais" não está de todo ausente -o exemplo mais acabado de tal faceta é, sem dúvida, o ambicioso "História Noturna"; outra, caracterizada pelos ensaios, ensaios que abordam temas variados (da teoria da história ao anti-semitismo) e que permitem ao historiador melhor explorar as potencialidades e detectar os limites daquilo que denomina "paradigma indiciário". "Olhos de Madeira", seu penúltimo livro publicado no Brasil, caminha por essa trilha.
Na entrevista que segue, concedida ao Mais! por e-mail, Ginzburg (1939) -que a partir de amanhã estará no Brasil para dar uma série de palestras e lançar "Relações de Força" [tradução de Jônatas Batista Neto]- aborda, de maneira sucinta, mas bastante esclarecedora, um variado conjunto de temas relacionados a sua obra e a sua atividade de historiador: predileções teóricas, relação entre história e teoria, pesquisa em arquivos, pontes possíveis entre história e literatura, potencialidades do gênero "ensaio histórico", anti-semitismo, globalização e, ainda, o sucesso bastante expressivo de seu trabalho no Brasil.

Em "Mitos, Emblemas, Sinais", o sr. comenta que, no início de sua carreira, julgava que as obras dos críticos Leo Spitzer e Auerbach, do historiador Marc Bloch e de Freud tinham ocupado um papel de destaque na sua formação intelectual. Hoje, olhando para trás, que pensadores considera terem sido decisivos para as suas opções teóricas? E que papel atribuiria à reflexão teórica na atividade do historiador?
Logo que li a sua questão, vieram à minha mente alguns poucos nomes: [os historiadores da arte] Ernst Gombrich e Aby Warburg, [o antropólogo] Claude Lévi-Strauss. Entretanto me dei conta de que meu contato com tais autores se dera quando eu tinha vinte e poucos anos. Perguntei-me, então, se a minha relação com as teorias ainda era a mesma que cultivara na juventude, possivelmente na minha primeira juventude. Em certo sentido, concluí que sim, com uma única, mas importante, exceção, que destacarei mais adiante. O impulso de estar a par da última novidade teórica sempre foi estranho para mim. Passei décadas digerindo o alimento teórico que devorara na mocidade. Todavia um outro impulso, o impulso de me ocupar com tópicos que me eram bem pouco familiares, se tornou cada vez mais forte com a idade e levou-me a pôr constantemente à prova os instrumentos analíticos que utilizava em meus trabalhos. Esse teste, sempre amparado na pesquisa empírica, gerou em minha mente um contínuo diálogo crítico entre os estudiosos e pensadores que me tinham influenciado e me permitiu, ao fim e ao cabo, tomar uma certa distância crítica em relação a eles. Distância: nem identificação nem ecletismo. Em tal processo, um papel crucial, ainda que não planejado, desempenhou a obra de Aristóteles e a apreensão que dela fui tendo ao longo do tempo. Foi sem dúvida um encontro com a teoria no sentido mais pleno da palavra, a ponto de eu ser ainda incapaz de avaliar os seus impactos a longo prazo sobre o meu trabalho. Mas uma mudança teórica pode também ocorrer subitamente e vir dos lugares mais inesperados: de maus livros, de idéias equivocadas, de pessoas e acontecimentos desagradáveis. Aprendi, há muito tempo, que devemos sempre traçar uma distinção entre perguntas e respostas. Podemos não gostar da resposta, mas a pergunta, por vezes uma pergunta importante, continua lá e temos de enfrentá-la. Antes de tudo, porém, é preciso "vê-la", o que geralmente é difícil e, como nos ensinou Freud, não raro doloroso.
Aí a teoria -uma palavra derivada de um verbo grego que significa "observar, contemplar"- torna-se crucial. A meu ver, muitas teorias contemporâneas nos cegam; de qualquer modo, creio ainda ser possível aprender algo com elas.
Obras como "O Queijo e os Vermes", "Andarilhos do Bem" e "História Noturna" suscitaram uma exaustiva pesquisa em arquivos. A pesquisa em arquivos é, ainda, prioritária dentro da sua atividade de historiador?
Ao longo da última década ou mais, trabalhei em bibliotecas, não em arquivos. Minha última pesquisa em arquivos produziu, direta ou indiretamente, muitas questões com as quais continuo a me ocupar. A pesquisa em arquivos para o historiador tem, como disse uma vez, um papel semelhante à pesquisa de campo no trabalho do antropólogo. Voltarei uma vez mais aos arquivos? Isso depende dos projetos que virei a desenvolver; o que, agora, não sou capaz de prever. Tenho considerado a possibilidade de desenvolver uns 20 projetos e, por uma obscura razão, frequentemente me vejo envolvido num 21º.
A literatura, ou melhor, os escritos literários são presença constante nos seus livros e, desde de muito cedo, parecem ter merecido a sua atenção. Os escritos literários são "documentos" privilegiados? Que cuidados é preciso ter ao utilizá-los numa pesquisa histórica?
Antes de mais, é preciso ter em mente a distinção entre (a) a literatura como uma evidência histórica e (b) a literatura relacionada com a escrita histórica. No primeiro sentido, a literatura, inclusive a ficção, pode ensinar-nos algo sobre a sociedade em que foi produzida e sobre o público ao qual se dirigia. A evidência literária pode ser extremamente valiosa, sobretudo se não existirem ou se forem poucas as evidências semelhantes, como é obviamente o caso da "Ilíada" e da "Odisséia". Ao lidar com tais poemas ou com qualquer outra obra de ficção, não devemos esquecer que não estamos diante de uma descrição literal de uma sociedade real: são construções que atendem a um propósito determinado, que obedecem a certos códigos e assim por diante. Isso, todavia, pode ser dito sobre qualquer tipo de evidência, incluindo os inventários notariais ou os levantamentos estatísticos. Nenhum desses documentos é objetivo de uma maneira simples, neutra, mas todos podem ser utilizados na construção de uma imagem crítica (objetiva) de uma dada sociedade. Assim, para descrever a complexa e oblíqua relação entre uma evidência e a sociedade da qual emerge (por vezes indicada pela própria evidência), devemos antes aprender o código que norteou a construção da evidência. De outro modo, corremos o risco de ler a evidência -um romance ou um levantamento estatístico- de uma maneira impressionista, superficial. A literatura, no entanto, está também relacionada com a escrita histórica, à medida que os historiadores comunicam os resultados de suas pesquisas em linguagem cotidiana, a mesma utilizada por poetas ou romancistas. O uso ocasional num livro de história de termos técnicos, mapas, estatísticas e outros recursos não suprime de todo a sua contiguidade com a literatura. Atualmente os neocéticos dizem que tal contiguidade demonstra que não se pode estabelecer um corte preciso entre história e ficção ou que ambas são, em última instância, ficcionais. Meu argumento é diferente ou mesmo oposto: a pesquisa histórica em todos os níveis, desde os seus primórdios, tomou a forma narrativa; isso, contudo, não abala a visada histórica sobre a realidade, uma vez que os esquemas narrativos, compartilhados tanto pela história quanto pela ficção, têm implicações cognitivas variadas. Deixe-me dar um exemplo retirado da linguagem do cinema: o close-up. O grande diretor russo Sêrgei Eisenstein, em um conhecido ensaio, argumentou que o close-up é uma invenção inspirada por esquemas literários comumente utilizados pelos romances do Oitocentos, especialmente pelos romances de Dickens. Inversamente, eu diria que as implicações cognitivas do close-up inspiraram algumas abordagens em história, como, por exemplo, a micro-história.
O gosto pelo ensaio, que o sr. parece cultivar, indicaria uma tentativa de encontrar, como sugere Adorno, um espaço menos sujeito aos constrangimentos impostos pelo "rigor do conceito"? O ensaio permitiria levar mais longe o "paradigma indiciário"?
Poderia explicar minha fascinação pelo gênero "ensaio histórico" em termos similares aos apresentados na questão anterior. Tanto os limites do ensaio -sua brevidade- quanto sua falta de limites -a ausência de uma estrutura rígida- abrem uma série de possibilidades cognitivas. Num livro recente, "No Island Is an Island - Four Glances at English Literature in a World Perspective" (Nenhuma Ilha É uma Ilha, Columbia University Press, 2000), retomei a ênfase dada por Adorno às características não-dedutivas do ensaio, estendendo o argumento ao limite: o ensaio poderia ser utilizado como instrumento para a construção de uma pesquisa que começaria pelas suas conclusões. Ler a realidade às avessas, como escreveu Proust. Minha aproximação do ensaio, como você corretamente sugere, está em íntima relação com o desenvolvimento daquilo que denominei "paradigma indiciário".
Discutem-se no Brasil, como de resto por todo lado, os impactos que, a médio e longo prazo, a micro-história terá sobre o ensino da história nas escolas. Corremos, como sugerem alguns críticos, o risco de produzir gerações de estudantes desprovidos de "noções gerais"? A micro-história não dá, por vezes, um excessivo destaque para o "desvio" e pouca atenção para a "norma"?
A micro-história tem sido, frequentemente, interpretada como um procedimento que implica o destaque do fragmento por ele mesmo. Trata-se de uma leitura bastante equivocada do projeto micro-histórico. Uma pesquisa focada em determinada cidade ou em determinado indivíduo seria totalmente gratuita, caso não se justificasse em termos, explícita ou implicitamente, comparativos. O singular e o geral implicam-se necessariamente. A meu ver, a micro-história não deveria levar à rejeição das generalizações históricas; deveria, sim, levar a repensá-las. Essa idéia tem implicações óbvias para pesquisadores e professores. A micro-história deve ensinar os estudantes a não tomar as generalizações históricas como um abrigo seguro. Todavia ela não deve ser vista como uma alternativa à história geral. Ambas devem ser aprendidas, de tal modo que sejamos capazes de identificar os impactos dos processos globais num microcosmo -ver o oceano numa gota de água, se preferir. Esse ponto está em conexão com a alegada ênfase dada pela micro-história aos desvios. Digo "alegada" porque alguns dos mais eminentes nomes da micro-história, como Giovanni Levi ou o último Edoardo Grendi, não priorizam o desvio. Eu priorizo. Como postulei diversas vezes, o estudo do desvio ou dos casos anômalos é, para mim, mais rico, do ponto de vista cognitivo, do que o estudo das normas, pois, por definição, os desvios incluem as normas (estatística, legal etc.) que transgridem. As normas, ao contrário, nunca incluem a imprevisível variedade de suas transgressões, atuais ou potenciais. Observe, porém, que essa assimetria cognitiva não tem nada a ver com um fascínio, que não compartilho, pela transgressão per se.
O sr. é um autor traduzido em diversos países e certamente deve notar "peculiaridades" na recepção de sua obra por públicos tão diversos. Em que medida essa experiência de ser um "historiador globalizado" alterou a perspectiva que o sr. tem sobre a sua obra e sobre a sua atividade de historiador?
Tendo em vista as ambiguidades da noção de globalização, as quais abordarei mais adiante, preferiria utilizar um rótulo diferente. Por certo, estou contente com a resposta que meu trabalho obteve em vários países e estou ciente de que o Brasil é um caso muito especial. Somente o prestígio de uma editora como a Companhia das Letras e a existência de um substantivo número de leitores sofisticados podem explicar o espantoso sucesso, no país, de um livro, em vários sentidos difícil, como "Olhos de Madeira". Sou ainda incapaz de avaliar o impacto de respostas inesperadas como essa sobre o meu trabalho. Talvez não tenham impacto nenhum. Um livro, como toda ação humana, depois de ter sido escrito (ou feito), inicia uma vida própria.
O controverso ensaio que encerra "Olhos de Madeira" trata da persistência de uma tradição anti-semita na cultura ocidental. O processo de globalização, acrescido do "11 de setembro" e do recente desvario que tomou conta das relações entre israelenses e palestinos, tem colaborado para revigorar tal tradição?
Uma nova onda de anti-semitismo tem sido, sem dúvida, alimentada tanto pelos desdobramentos da crise no Oriente Médio quanto pelo processo de globalização. O "11 de setembro" teve, entre tantas outras características, uma conotação claramente anti-semita, como ficaria evidente um pouco mais tarde. O velho dito de [o escritor Isaac] Babel, segundo o qual o "anti-semitismo é um socialismo de idiotas", é mais atual do que nunca. Uma vez mais, o anti-semitismo mescla novos e velhos elementos, fatos e ficções -especialmente ficções-, produzindo uma pseudo-explicação da realidade com um poderoso apelo emocional. O impulso antianalítico é extremamente perigoso, porque é contagiante, irresistível. Estou, como muitos outros, convencido de que a política de Sharon é uma tragédia tanto para os israelenses quanto para os palestinos, de que o "11 de setembro" foi medonho, um ato homicida, e assim por diante. No entanto tais juízos, os quais vivamente subscrevo, devem ser somente o ponto de partida da análise, não um substituto dela. Tomemos, por exemplo, a globalização, um fenômeno que teve início pelo menos há 500 anos. O "11 de setembro" deve retardar o processo, mas a mudança de relações entre o centro e a periferia -e é disso que se trata a globalização- seguirá adiante. A destruição da diversidade cultural criou, como subproduto, a necessidade de melhor conhecer outras culturas. A ecologia, inquietação nascida da crescente destruição do planeta, é um exemplo histórico similar. Tais considerações são realistas, não cínicas: sou partidário tanto da ecologia quanto do conhecimento de outras culturas -estas, a propósito, são o alvo do meu trabalho de historiador. Devemos, contudo, tentar ver o mundo em que vivemos, o qual está longe de ser um lugar agradável.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio). Colaborou na tradução Maria Aparecida de S. Lopes.

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