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Fala, presidente
Deodoro, o arrependido
O proclamador da República diz que não deveria ter saído de casa na manhã de 15 de novembro de 1889, mas hoje quer "fazer algo pelo Brasil"
Por Marco Villa
Sou um soldado, um
velho soldado. Aprendi em casa com os
meus pais que os interesses do Brasil estão
sempre em primeiro lugar.
Perdi três irmãos na guerra do
Paraguai: Hipólito e Afonso,
que morreram na batalha de
Curupaiti, e Eduardo, que tombou em Itororó, todos no mesmo ano.
Minha querida mãe, dona
Rosa, ao receber a notícia da
morte dos filhos, só quis saber
se tinham morrido com honra.
Fiquei cinco anos na guerra. E
voltei com mais dois irmãos
que lá lutaram. Gosto de brincar dizendo que devo a minha
carreira ao [ditador paraguaio]
Solano López.
Quando vejo o que acontece
no Brasil, dá um desânimo...
Uma vez disse que gostaria de
pegar os ministros e levá-los à
praça pública para que o povo
os julgasse. E em seguida iria ao
Parlamento e exporia as razões
do meu gesto. Vejam que não
há nada mais antipolítico do
que isso. Mas sou assim.
Sou militar e não compartilho a forma como os políticos
tratam o governo. Não gosto da
forma como os partidos agem.
Já fui presidente e não entendo
nada de confabulações ou acordos políticos. Na verdade, não é
que não entendo, é que os acordos geralmente envolvem transações que meu espírito de militar repugna.
Vocês sabem que até cheguei
a fechar o Congresso Nacional
-a bem da verdade, não fui o
único, e muita gente pensa nisso até hoje. Queriam votar uma
lei sobre crimes de responsabilidade para me atingir. Logo eu,
que moro na mesma casa há
anos, não tenho filhos e nunca
fui acusado de nenhum delito
no trato da coisa pública.
Lembro até de um quadro
que me foi ofertado. Dias depois vieram cobrar um favor e
recordaram do presente. Imediatamente paguei o quadro,
porém fiz questão que o finório
assinasse um recibo. Mas estava falando do Congresso. Foi
reaberto duas semanas depois
pelo Floriano [Peixoto]. Antes,
renunciei à Presidência. Deixei
claras minhas razões: "Assino a
carta de alforria do derradeiro
escravo do Brasil".
Certamente, alguém deve estar perguntando por que quero
novamente ser presidente.
Bem, peço desculpas por ficar
lembrando a toda hora o que
fiz, mas há muito tempo disse
que República, no Brasil, é desgraça completa.
E que não tinha a pretensão
de querer me aproximar de Jó
nem de Jesus Cristo. Mas quero fazer alguma coisa pelo meu
país. Sou um soldado, não sou
um literato, nem sei dizer belas
palavras.
Falta coragem
Admiro os intelectuais e tenho em Rui Barbosa a minha
referência. Quando entrei para
o Exército, não fiz muitos estudos. Aprendi na prática, no
campo de batalha. E por isso é
que acho que falta coragem para os políticos enfrentarem os
graves problemas brasileiros.
Já que estamos no terreno
das revelações, nunca gostei
dos "casacas". Falam, falam,
contudo, na hora da luta, somem, mandam nós, os militares, para cumprir suas ordens.
Lembram quando pediram
para que perseguíssemos os escravos fugitivos? O Exército
não tem essa função. Agora
querem que a gente vá atrás dos
traficantes. O Exército, como
disse naquela época, não é capitão-do-mato nem polícia.
Quando renunciei, escrevi
uma breve carta dizendo que
deixava o poder nas mãos do
funcionário a quem incumbia
me substituir. Meus inimigos
fizeram troça. Presidente não é
funcionário, ironizavam. Não
sei do que riram. Para mim,
presidente é funcionário, sim.
É o primeiro funcionário público do país. Por isso, acho que
devo dar sempre o exemplo.
Não gosto de receber presentes, e a minha vida pessoal é
muito simples. Vivo modestamente dos meus proventos como marechal da reserva. Não
quero e não preciso de mais nada. Quando ouço falar em corrupção, fico com muito ódio.
Na hora, lembro dos meus manos e dos milhares que morreram no Paraguai defendendo a
nossa pátria.
Sem conversa fiada
Muitos não gostam de mim
porque sou rude. Não gosto
mesmo de conversa fiada. Entrei para o Exército quando tinha 16 anos. Sou nordestino,
andei pelo Centro-Oeste, conheço o Sul do país, estive no
Uruguai e no Paraguai.
Passei boa parte da vida no
Rio de Janeiro. Comandei tropas em muitos lugares mas
também exerci funções de governo. Pretendo reunir um grupo de colaboradores escolhidos
entre os mais sinceros republicanos para poder administrar o
Brasil, assim como fiz da primeira vez.
Apesar da minha postulação
à Presidência, sendo sincero,
acho que a nossa República não
tem jeito. Tem noites em que
não consigo dormir. Numa delas acordei e falei para dona
Mariana, minha mulher: "Você
tinha razão, não devia ter saído
de casa naquela manhã do dia
15 de novembro" [de 1889,
quando proclamou a República]. Eu estava seriamente enfermo e os meninos vieram me
buscar para ir aonde se encontrava o gabinete imperial. Ela
disse: "Manoel, volta para a cama". Como sou teimoso, segui
os meninos, e deu no que deu.
MARCO ANTONIO VILLA é professor de história no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de
"Jango, um Perfil" (Globo), entre outros livros.
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