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+(h)istória
Sangue na praça da Sé
Há 75 anos, batalha entre antifascistas e integralistas
em SP deixou
seis mortos
e mais de 30
feridos graves
MÁRIO MAGALHÃES
EM SÃO PAULO
A batalha durou mais
de meia hora", datilografou o escritor
Plínio Salgado. "O
conflito durou seguramente uma hora", cronometrou o jornal "A Offensiva",
que o próprio Plínio, chefe da
AIB (Ação Integralista Brasileira), dirigia no Rio. O jornalista Mário Pedrosa ouviu de um
camarada húngaro: "Foram
quatro horas de ditadura do
proletariado".
Aos 95 anos de idade, Sara de
Mello não se lembra do tempo
por que a refrega se arrastou,
mas recorda a frase do amigo
Miguelzinho ao vê-la remexendo o bolso do casaco pouco antes do confronto: "Passa essa
arma para cá".
"Que arma nada", ela conta
ter respondido. "É a minha
mão que está aí dentro." Ao
contrário de companheiras como a atriz Lélia Abramo, Sara
não ganhou revólver e recebeu
ordem para se plantar na confluência da praça da Sé com a
rua Direita, no centro de SP.
"Anauê"
Naquela "tarde funesta e luminosa" de 7 de outubro de
1934, como a descreveu o escritor Paulo Emílio Sales Gomes,
logo se deflagraria o que se conheceria como batalha da praça
da Sé: seis mortos e ao menos
três dezenas de feridos graves
no embate entre antifascistas e
integralistas.
Os integralistas representavam a extrema direita, defensora de nacionalismo renhido, família, igreja e propriedade privada. Mimetizando fascistas
italianos e nazistas alemães,
formavam milícias, vestiam
uniforme (verde) e proclamavam saudações ("Anauê").
No porvir, negariam identidade com os europeus.
Os antifascistas agregavam
uma miríade de organizações
de esquerda que viviam às turras entre si: stalinistas do Partido Comunista, trotsquistas da
Liga Comunista Internacionalista, socialistas, anarquistas,
sindicatos e adeptos de Miguel
Costa, líder de rebeliões da década de 1920 -e pai de Miguelzinho, o amigo de Sara.
Para aquele domingo de 75
anos atrás, a AIB marcou uma
celebração pelo segundo aniversário do Manifesto Integralista. Levou 10 mil seguidores,
conforme cálculos de fontes diversas, à Sé ou aos arredores.
Seus inimigos interpretaram
a iniciativa como demonstração de força inspirada na marcha sobre Roma, ofensiva fascista de 1922 que impulsionou
Mussolini ao poder. Mobilizaram-se para barrá-la.
O vínculo com a Itália fazia
sentido também para um liberal, o magnata do jornalismo
Assis Chateaubriand.
Polícia rachada
Testemunha acidental -ele
se escondeu em prédios da Sé
para se proteger do fogo-, Chatô disse ter assistido em 1920,
em Milão, a cena "absolutamente idêntica": luta de rua entre fascistas e comunistas.
Abaladas pela crise econômica, as democracias liberais pareciam naufragar nos anos
1930. Demorariam a recuperar
o leme da história. Os extremos
alargavam influência.
Em julho de 1934, Getulio
Vargas, de bom convívio com os
camisas verdes, se transformara em presidente constitucional eleito pelo Congresso.
Na praça da Sé, como reflexo
da polarização política, tomaram partido até os membros do
aparato de segurança escalados
para garantir a lei.
Os agentes das delegacias de
ordem política e social combateram a tiros os antifascistas.
Soldados da Força Pública dispararam contra integralistas.
A ação militar da esquerda foi
coordenada por João Cabanas,
antigo tenente da Força Pública. Ele dispôs atiradores em
prédios da praça, notadamente
o Santa Helena. Demolido em
1971, o palacete deu nome ao
grupo de artistas que ali pintavam, como Alfredo Volpi.
Outros militantes armados
fincaram posição nas esquinas,
aguardando as milícias que se
concentravam na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Um deles
era Joaquim Câmara Ferreira,
que em 1970 seria morto pela
ditadura militar.
Por volta das 15h15, ecoou a
primeira saraivada de tiros sobre os integralistas. Sobreveio
outra. Não chegavam a mil os
partidários de Plínio já na Sé.
Os milicianos da AIB reagiram e descarregaram armas
contra os antifascistas. Enquanto balas zuniam, o comunista Hermínio Sacchetta e o
trotsquista Fúlvio Abramo, jornalistas, discursavam.
Filiados à AIB fugiam e deixavam as camisas pelo caminho, temendo serem reconhecidos e agredidos. Sara assistia
à debandada. "Pensei que eles
teriam coragem de resistir."
O humorista Barão de Itararé
gracejou com o apelido galinhas verdes, pelo qual detratores maldiziam direitistas: "Um
integralista não corre; voa".
Somando quem perdeu a vida na praça e nos dias seguintes, noticiaram-se seis mortes
-dois agentes da polícia política, um guarda civil, dois integralistas e um comunista.
Foi ferido o trotsquista Mário Pedrosa, no futuro um prestigioso crítico de artes plásticas
e o filiado número 1 do PT.
Espírita e comunista
Nos três quartos de século
seguintes, a batalha da praça da
Sé foi objeto de outra contenda,
a de balanço histórico.
Integralistas, como o jurista
Miguel Reale, rejeitaram a qualificação de "batalha", preferindo "tocaia" esquerdista.
"Tocaia é o que foi feito", defende o editor Gumercindo Rocha Dórea, 85. "Os integralistas
saíram desbaratados. Não fizeram o desfile." Integralista desde a infância, ele mantém as
convicções. Ocorre que Plínio
Salgado empregou três vezes a
palavra "batalha" em artigo
acerca do episódio.
Alguns integralistas sustentaram que a AIB não carregava
armas. Por exemplo, Goffredo
Teles Junior, que viria a migrar
para a esquerda.
Mas o médico Ruy Escorel
Ferreira-Santos, àquela altura
camisa verde, testemunhou em
suas memórias: "Muitos tínhamos armas e quero crer que,
com mais razão, portassem-nas
a chamada tropa de choque".
Certa historiografia identifica Plínio avesso ao antissemitismo de outro prócer da AIB,
Gustavo Barroso, presidente da
Academia Brasileira de Letras
em 1932, 33 e 50.
Sobrinho de Plínio, o advogado Genésio Pereira Filho, 89,
afirma: "O pensamento integralista era antinazista. Os nazistas eram materialistas, ateus
e racistas. O pensamento de
Plínio Salgado era exatamente
o contrário disso".
"Eles estão contra nós"
No texto a respeito da batalha, Plínio revelou-se: "Declarei
solenemente a guerra contra o
judaísmo organizado. É o judeu
o autor de tudo. (...) Fomos agora atacados, dentro de São Paulo, por uma horda de assassinos, manobrados por intelectuais covardes e judeus. Lituanos, polacos, russos, todos semitas, estão contra nós".
A judia Sara de Mello -seu
sobrenome de solteira é Becker, do pai lituano- lembra-se
de companheiros de jornada
como Noé Gertel, então acadêmico de direito, e Eduardo
Maffei, à época formando de
medicina.
Em seu livro "A Batalha da
Praça da Sé", Maffei assinalou:
"Barramos o caminho ao fascismo no seu aspecto mais sanguinário". Os integralistas reencontraram os antifascistas em
novas manifestações, até serem
postos -como os oponentes
haviam sido- na ilegalidade,
em 1937.
Nenhum remanescente da
AIB soube indicar, vivo, correligionário veterano do entrevero
de 34.
Sara diz que seus companheiros se foram -com exceção dela, Dórea e Pereira Filho,
os citados nesta reportagem já
morreram.
A caminho da praça da Sé, ela
conversava com o estudante
Décio Pinto de Oliveira, que
morreria baleado. Ambos integravam a Juventude Comunista -Sara pensa hoje como antes. Seu amigo era também espírita. Ele disse a Sara que, se o
matassem, reencarnaria para
enfrentar os integralistas.
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