São Paulo, domingo, 01 de novembro de 2009

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O perverso do rock

Pai do punk, Malcolm McLaren fala sobre os Sex Pistols -"sem mim, estariam lavando pratos"- e de sua mostra no Reino Unido

ANDREW BILLEN

Para entender a teoria de Malcolm McLaren sobre a cultura pop e o lugar fundamental que ele próprio ocupa nela, você provavelmente teria que ser mais esperto que o próprio McLaren. Ele é o eterno estudante de arte que, numa febre de conceptualismo, atirou os Sex Pistols contra a parede do ano de 1977 e, para seu próprio espanto, descobriu que eles ficaram grudados ali.
Três décadas mais tarde, a banda ainda não escorregou pela parede do banheiro da história, e McLaren parece ter dedicado boa parte de sua vida a tentar entender a razão disso. Estamos aqui para falar de seu trabalho mais recente, "Shallow" ["raso" ou "superficial"], uma videoinstalação sedutora que junta trechos não censuráveis de filmes de sexo dos anos 1960 com canções pop melosas.
O trabalho vem percorrendo o mundo há um ano, sendo aclamado, e está prestes a fazer uma escala no Baltic Centre, em Gateshead, no Reino Unido [www.balticmill.com].
Resumindo: McLaren identifica a origem das qualidades de autoexpressão, "faça você mesmo" e anticomercialismo do punk nos românticos do século 18 e no movimento vitoriano de artes e ofícios.
Desde então, porém, o capitalismo consumista teria roubado seu espírito romântico, aproveitando cinicamente do punk apenas a ideia de que qualquer pessoa pode ser famosa e rejeitando sua celebração do fracasso.
O punk, prevê McLaren, vai voltar, porque as pessoas estão novamente sedentas de integridade. "Elas não veem nada de nobre na cultura do karaokê", diz em seu sotaque "cockney", melodioso e afetado. Mas o que falta a seu argumento em coerência é compensado em ousadia, piadas e indiscrições, muitas delas relativas ao vocalista dos Pistols, Johnny Rotten, à estilista Vivienne Westwood e ao filho dela e de McLaren, Joseph Corre, fundador da cadeia de lojas Agent Provocateur.

De cachecol e gravata
O vigor malicioso de McLaren surpreende: menos de uma hora antes de seu monólogo vigoroso, eu o observei, em seus 63 anos, arrumadinho, trajando suéter de lã, cachecol xadrez e gravata, almoçando tranquilamente com sua namorada, Young Kim.
Será que ele virou um senhor comportado adentrando a terceira idade e que está curtindo a vida ao lado dessa mulher mais jovem? Nada disso.
Quando consigo falar, conto que Jon Savage, autor de "England's Dreaming" [Sonho da Inglaterra, ed. St. Martin's Griffin, 656 págs., US$ 22,95, R$ 40], me disse certa vez que a única coisa com que McLaren não contara era que os Sex Pistols pudessem de fato ser bons.
"Não mesmo, nunca. Jamais imaginei que isso pudesse ser remotamente possível. Isso nunca passou por minha cabeça. O que passou por minha cabeça foi que não importaria se eles fossem ruins."

Conexão com o banal
Era uma teoria de sua gangue de "conspiradores" da escola de artes. A capa do álbum "Never Mind the Bollocks, Here's The Sex Pistol", dos Sex Pistols, foi feita com letras tiradas de jornais, como se fosse um bilhete com um pedido de resgate.
Parecia ameaçadora, mas a intenção era ser banal. "Era uma coisa fundamental", diz. "Fazer uma conexão com o banal. Lembro-me de estar sentado com Jamie Reid [outro ex-aluno da Croydon Art School] e perguntar: "Mas será que está suficientemente banal?"."
Em vez disso, "Never Mind the Bollocks, Here's the Sex Pistols" [EMI, US$ 11,98, R$ 21] foi uma sensação que acertou um torpedo contra a mesmice da cultura pop. Foi transformador, embora a um custo altíssimo para algumas das pessoas envolvidas.
Dentro de dois anos, o baixista Sid Vicious e sua namorada Nancy Spungen estavam mortos, Sid de overdose de heroína e Nancy de uma faca enfiada em seu coração, aparentemente por Sid.
Posso entender por que Johnny "Rotten" Lydon se sentiu usado. "Ele foi! Foi terrivelmente explorado. Não há como negar. Aceito isso sem questionamento. Mas digo apenas que esses caras estavam querendo ser usados, porque, se isso não tivesse acontecido, ele (Johnny Rotten) não teria passado de um lavador de pratos. Foi assim que ele começou a vida."
McLaren já admitiu que, para suscitar controvérsia na turnê que os Pistols fizeram nos EUA em 1978, ele propositalmente organizou apresentações deles em bares frequentados por interioranos conservadores. Ele tem algum sentimento de culpa por isso? Fica claro que McLaren acha mais fácil chegar a conclusões culturais do que a pessoais.
Quando fala de sua infância traumática na Londres do pós-guerra, de como sua avó materna, que o criou, odiava sua mãe e sua mãe a odiava, e de como ele próprio ficava no meio desse fogo cruzado, chama a atenção a ausência de empatia dele com qualquer uma das duas.
Ele não tentou conhecer seu pai, desertor do Exército, até estar na meia-idade (seu pai era "um sujeito com uma espingarda e um pastor alemão"). McLaren "não teve outra escolha" senão amar sua vovó excêntrica.

Vivienne Westwood
McLaren fala dos anos que passou com Vivienne Westwood, com quem dirigiu a loja de moda fetichista Sex, em King's Road, com distância emocional quase igual: ele a conheceu numa invasão de prédio abandonado, a engravidou, suplicou para que ela fizesse um aborto, mas Westwood gastou o dinheiro que a avó de McLaren lhe dera para esse fim comprando "um twin-set de caxemira".
Ele estava apaixonado? "Realmente não sei dizer. Eu estava intelectualmente curioso, com certeza, e me sentia emocionalmente ligado a ela." "Ela era professora primária, estava fugindo do marido e trazia seu filho junto. Eu a via nua na maioria dos dias da semana, correndo de um lado a outro, pondo a chaleira no fogo. De alguma maneira eu iria para a cama com ela e perderia minha virgindade. Coisa que fiz. Três, quatro ou cinco semanas depois, ela estava grávida."
Ele amou o bebê, Joseph Corre (o sobrenome é o da avó de McLaren)? "Eu não o entendia. Não sabia o que fazer." Ele acha estranho que Westwood, que tinha uma carreira a administrar, tivesse matriculado Joseph num colégio interno, mas não que ele próprio tivesse optado por ausentar-se da vida deles. Só via seu filho ocasionalmente.
"Às vezes eu achava que ele tinha algum complexo maluco de Édipo, que quisesse me matar e transar com sua mãe. Mas ele estava determinado a sobreviver, o que fez de maneira espetacular e brilhante -embora não tenha conseguido conservar sua mulher."
Vivienne Westwood foi condecorada pela rainha Elizabeth e passou, diz McLaren, por uma fase durante a qual investiu na alfaiataria, "tentando fazer todo o mundo se parecer com a rainha".
Ele próprio se vendeu a Hollywood e a Steven Spielberg, com quem, improvavelmente, trabalhou no segundo "Indiana Jones" e em "A Cor Púrpura".
Sua namorada era a modelo Lauren Hutton. Ele chegou a descrevê-la como o segundo amor de sua vida, mas hoje fala: "Ela era parte de toda a tessitura de Hollywood. Você conhece essas pessoas, simplesmente."

Água-furtada em Paris
Após uma tentativa frustrada de tornar-se prefeito de Londres, em 1999, McLaren se mudou para Paris, onde ainda vive numa água-furtada que, no passado, foi ocupada pelo pintor realista Gustave Courbet e o fauvista Kees van Dongen.
No último ano, vem trabalhando em um filme que será sucessor de "Shallow", uma montagem de campanhas publicitárias de Paris. É possível ver a conexão com "Shallow". Pornografia "soft" é como publicidade: fica apenas na promessa, sendo intrinsecamente superficial. Pergunto sobre Young Kim, sua namorada/assistente coreano-americana que vive com ele desde 2002.
"Eu a conheci numa festa em Paris. É ótimo viver com alguém como Young, porque ela fala e escreve francês fluentemente. Ela é formada em história em Yale e estudou direito na Universidade de Nova York. Fala alemão, fala coreano, e fala americano, que, é claro, não é o mesmo que falar inglês. É uma grande parceira. Acho que eu não poderia existir sem ela. Com certeza não em Paris."

O homem que não ama
Você deve ter percebido o que ficou faltando nesse elogio. Algumas pessoas dizem que McLaren não sabe amar. "Acho que elas têm razão, sob alguns aspectos. Existe nisso uma verdade oculta, algo que talvez remeta à minha infância e como fui criado. Mas muitíssima água já passou sob a ponte desde então. E a gente aprende."
Lembro que Lydon o descreveu como o homem mais perverso do mundo. "Isso é maravilhoso, de certa forma. É como minha mãe descrevia minha avó. Não sei o que é perversidade. O que ele quer dizer? Eu o torturei? O que foi que eu fiz a esse garoto? Polvilhei pó de estrela sobre ele. Mas é bom lembrar: ninguém quer saber que foi manufaturado."
Ninguém manufaturou Malcolm McLaren, digo. "Bem, prestei muita atenção aos professores da faculdade de artes. Se alguém foi responsável pelo punk, foram eles, indiretamente. O que aqueles professores fizeram foi permitir que eu criasse algo que poderia ser um magnífico fracasso, embora não o tenha criado sozinho nem a partir do nada: Duchamp escolheu um urinol."
E ele escolheu Johnny Rotten? "Sim", diz, "escolhi Johnny Rotten em lugar disso."


A íntegra deste texto saiu no jornal britânico "The Times". Tradução de Clara Allain .


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