São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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A razão polifônica

EDGAR DE ASSIS CARVALHO
especial para a Folha

A proposta de Edgar Morin de uma nova cientificidade exige a superação do paradigma clássico, disjuntor, que marca o pensamento ocidental, pelo menos desde que a ciência instalou sua hegemonia no planeta, a partir do século 17. Seu investimento cognitivo no objeto complexo aplica-se na construção da transdisciplinaridade, um meta ponto de vista sobre a natureza, a cultura, o cosmos. Para isso, a razão fechada, cartesiana, deve ser substituída pela razão aberta, polifônica, em que ordem, desordem, reorganização coexistem por meio de relações de antagonismo, concorrência e complementaridade.
Esse é o pano de fundo que se dissemina por toda sua obra, mas que transparece de modo sistemático em "O Método", uma antropologia do conhecimento, ou uma viagem pelos saberes, como o próprio autor prefere designá-la, em que se esquartejam a natureza, a vida, o conhecimento e as idéias, estas últimas constitutivas desse quarto volume, agora traduzido. Mesmo que o leitor possa se ressentir da lacuna dos três anteriores, infelizmente ainda não publicados no Brasil, a leitura dessa tetralogia, que ainda incluirá um quinto volume sobre a ética, não precisa necessariamente ser feita em ordem sequencial, uma vez que os princípios gerais da complexidade estão vivos e atuantes em todos eles, como pontos de um holograma, onde todo e parte se encontram mutuamente relacionados.
A ecologia, a vida e a organização das idéias constituem os três blocos desse "Método 4". O primeiro centra sua atenção na cultura, um macro conceito que pretende abarcar o capital cognitivo coletivo da humanidade, permeado por saberes, fazeres, experiências, memórias e mitos. Essa hipercomplexa maquinaria sociocultural sempre se movimenta de modo indeterminado, ora gerando idades de ouro, ora buracos negros, resultantes da dialógica entre os devires sócio-históricos e as construções cognitivas que cerca sujeitos pensantes e objetos pensados.
Os dois últimos injetam energia nos desencontros da história do conhecimento, que, embora produtora de uma acumulação de saberes sem precedentes, acabou por fragmentá-los nas subculturas humanista, científica, étnica, nacional, popular, gerando uma constelação de especialistas dotados de uma fobia territorial que não admite contestações.
O pensamento complexo exige uma outra forma de organização do mundo que solidarize esses circuitos e que invista na civilização das idéias, uma espécie de antimétodo que generaliza a incerteza e a indeterminação a todos os domínios da cultura. Essa nova humanização sepultará a arrogância de tecnoburocratas que ainda se dizem portadores de verdades para, em seu lugar, colocar pensadores múltiplos cósmicos, universalistas, esses contrabandistas do saber que, a cada dia, se ampliam no planeta, certamente animados pela multidimensionalidade das reflexões de Edgar Morin.


Edgar de Assis Carvalho é professor de antropologia na Universidade do Estado de São Paulo (Unesp/Araraquara).



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