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Um dos mais ativos defensores da causa palestina, Edward Said, que está lançando uma coletânea de ensaios no Brasil, discute em entrevista a "terrível experiência" de viver nos EUA atualmente
O isolamento como estratégia
Maurício Santana Dias
da Redação
Isolamento, temor e indignação. Esses são os sentimentos mais fortes de Edward Said, um dos últimos dissidentes do pensamento americano depois
que o 11 de setembro parece ter unificado seus cidadãos em torno de uma causa única. Palestino nascido
em Jerusalém em 1935, naturalizado norte-americano e
morador de Nova York há 40 anos, onde é professor de
literatura comparada na Universidade Columbia, Said
está lançando no Brasil a coletânea de artigos "Cultura e
Política" (ed. Boitempo, org. Emir Sader, 176 págs.).
Autor de pelo menos um clássico sobre o modo como
o Ocidente vê o Oriente e, ao mesmo tempo, cria uma
imagem positiva de si mesmo ("Orientalismo", Cia. das
Letras), Edward Said vem há décadas lutando para desmontar as abstrações e os mitos que se criaram em torno do "mundo árabe".
O irracionalismo, a ignorância e o fundamentalismo
religioso -não só muçulmano, mas de qualquer tipo- são os principais alvos de sua crítica, que não poupa nem a política externa dos EUA nem a Autoridade
Nacional Palestina, encarnada por Iasser Arafat. "Se
conseguirmos envolver os israelenses na causa palestina, assim como os sul-africanos conseguiram envolver
a população branca na luta contra o apartheid, estaremos dando um grande passo à frente", disse Said nesta
entrevista exclusiva concedida ao Mais!, por telefone,
de seu apartamento em Nova York.
Em um artigo recente, o sr. disse que "morar nos EUA neste momento é uma experiência terrível". Por quê?
Há varias razões para isso. Uma delas é que aqui,
agora, há uma atmosfera de guerra. Há uma sensação generalizada na sociedade da presença de um
inimigo metafísico. Por outro lado, quase não existe
mais dissenso, não há opiniões divergentes. Se você
for ler o que sai nos jornais ou ligar a TV ou o que
quer que seja, tudo faz parte desse clima de guerra.
Isso faz com que eu me sinta cada vez mais isolado
dentro da sociedade americana. A segunda razão é
que, se você pertencer de algum modo ao mundo
árabe ou islâmico, logo é visto como "o" inimigo. A
atmosfera que envolve o discurso público é extremamente hostil aos árabes e islâmicos. Uma terceira razão, que faz parte deste clima terrível, depois de 11 de
setembro, é que há um sentimento muito forte de
que a Justiça pode violar vários direitos (com detenções, perseguições, criminalizações etc.), o que se expressa por exemplo no Patriot Act ou na Terrorism
Law. Estamos completamente envolvidos por isso,
arrastados por uma onda de repressão e medo. A
quarta e última razão é que, infelizmente, grande
parte dos últimos intelectuais liberais e progressistas
deste país parece convencida de que o governo tem
que atuar desta forma. Enfim, todos os direitos humanos e civis estão sendo deixados de lado, enquanto o sofrimento dos iraquianos pelo embargo, por
exemplo, é literalmente esquecido.
O sr. frequentemente afirma que o americano médio não
sabe nada sobre a realidade do Oriente Médio. Como isso
poderia mudar?
Bem, em primeiro lugar, não há uma política árabe
que possa reverter esse quadro de ignorância. Ou seja, os Estados árabes estão abatidos, paralisados, desacreditados e não fazem nada em nome de seus países e de sua cultura. Em segundo lugar, as comunidades árabes que vivem aqui são muito pequenas
-e não estão organizadas. Em terceiro lugar, os inimigos -refiro-me aos sionistas, ao establishment
militar ou às organizações civis dos EUA- têm uma
forte influência contra todo conhecimento que diga
respeito ao Oriente Médio. Se você disser qualquer
coisa positiva sobre... Vou lhe dar um exemplo: no
próximo fim de semana, de sexta a domingo (24, 25 e
26/1), a Universidade Columbia (Nova York) terá
um festival de filmes palestinos. Apenas filmes, por
três dias. Pois bem, sofremos fantásticos ataques por
e-mail, investidas da imprensa e de outros meios
tentando cancelar o evento. Ou seja, qualquer iniciativa que tente mostrar outro ponto de vista sobre o
Oriente Médio, mesmo que não tenha um enfoque
político, é imediatamente atacada. O Outro simplesmente não existe e, se existir, será necessariamente
visto como terrorista, fanático ou fundamentalista.
Por que "o sionismo americano é o verdadeiro problema", segundo suas próprias palavras?
Nos EUA, muitos dos patrocinadores do sionismo
são judeus e não-judeus. E todos estão bem distantes
do problema. Eles estão prontos a financiar práticas
cruéis contra um outro povo sobre o qual eles não
sabem nada. Para eles, os palestinos são uma abstração, não se trata de um povo real, com uma sociedade real, constituída de crianças, mães e pais que se
amam e que estão sendo mortos. São simplesmente
uma abstração: terroristas ou subumanos. Portanto
esse apoio às práticas israelenses -refiro-me basicamente à ajuda financeira e ao apoio político-
permite que eles façam mais ou menos o que quiserem. Por isso Sharon disse um mês atrás: "Nós podemos fazer tudo o que quisermos". Isso na verdade
quer dizer que o establishment sionista e o governo
americano o apóiam. Essas pessoas não estão indo
lutar, elas simplesmente estão em Nova York, Miami
ou Los Angeles mandando dinheiro para lá e odiando os palestinos, Hitler, coisas assim. Não há nenhum sentimento de compaixão ou responsabilidade pela miséria de um outro povo, que foi deslocado
e expulso de seu país desde 1948.
Voltando à questão da guerra contra o terrorismo, o sr.
comparou essa campanha à luta entre o capitão Ahab e
Moby Dick. Poderia desenvolver essa idéia?
Claro. A questão é que o alvo dessa guerra contra o
terrorismo é algo a-histórico e metafísico. Não se trata de uma guerra contra um inimigo específico. Como Bush disse: "Esta é uma luta contra o Mal". Ou
seja: nós somos o povo bom, e isso nos coloca numa
espécie de delírio obsessivo, que nos torna cegos em
relação às circunstâncias objetivas, como o fato de
que o Taleban, Osama bin Laden e até Saddam Hussein foram por muitos anos apoiados pelos EUA, inclusive com bastante dinheiro e armamento. Todo
esse episódio, que faz parte da história recente, fugiu
do campo de visão. Tudo o que se vê agora se resume
ao que aconteceu em 11 de setembro, que foi terrível,
e então nós dizemos: é agora que a história começa.
Esta é uma leitura muito seletiva e, eu diria, tão insana quanto a obsessão de Ahab...
Que, na obra de Melville, teve efeitos devastadores.
Sem dúvida. Esse tipo de delírio é bastante perigoso.
A maioria dos americanos, segundo o que circula na
TV, nos jornais e nas rádios, está completamente
exultante com o fato de que haja uma tropa de quase
cem mil lá no golfo Pérsico; mas, se você perguntar a
eles onde fica exatamente o Iraque, com que países
faz fronteira, muitos deles não saberiam dizer. Eles
imaginam que aquilo é um grande deserto, não fazem idéia de que se trata de um país real, com uma
história específica, um país central no mundo árabe,
que tem um passado mais antigo e mais rico do que
qualquer outro país árabe.
Outra referência literária que aparece em seus textos é o
"1984", de George Orwell. O sr. diz que já estamos vivendo o "newspeek", ou seja, a distorção e o apagamento
sistemáticos da história.
Um exemplo claro disso é o modo como a história
dos palestinos foi varrida. Aqui não se sabe que esse
povo está sofrendo uma ocupação militar há 35 anos
[desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967], uma das
mais longas ocupações da história moderna. Cada
cidadão palestino vive 24 horas por dia sem poder
sair de onde foi confinado. Há 65% de pobreza, 70%
das crianças abaixo de 15 anos estão subnutridas, ou
seja, coisas horrendas estão sendo feitas com o total
apoio dos EUA, que agora mandam US$ 10 bilhões
por ano a Israel e pretendem enviar mais US$ 10 bilhões. As pessoas que vivem neste país simplesmente
não têm idéia do que está acontecendo lá.
O sr. sustenta que Arafat e a ANP (Autoridade Nacional
Palestina) são um grande problema para o povo palestino. Qual poderia ser uma alternativa a eles?
Fico feliz por essa pergunta porque, justo agora, começam a surgir várias alternativas. Não se trata de
um partido palestino nem do Hamas nem da Jihad
Islâmica nem de Arafat e seu grupo. É o que chamamos de Iniciativa Nacional Palestina. Já na semana
passada, mais de 500 pessoas proeminentes dentro e
fora dos territórios palestinos assinaram esse acordo, que é uma iniciativa para criar um novo governo
que represente o povo palestino, com uma convenção constitucional, eleições e uma política de resistência às ocupações israelenses baseada não em
atentados suicidas, mas na desobediência civil e em
movimentos de massa que unifiquem a população
palestina e cruzem as barreiras que os israelenses
criaram com a cooperação dos próprios líderes palestinos. O grande problema é que os israelenses levaram o líder e o símbolo dos palestinos, Iasser Arafat, a concordar com uma ocupação partilhada com
eles. Agora começa a surgir uma alternativa que diz
não às ocupações e se nega a cooperar com os israelenses. O grande esforço, hoje, é criar instituições democráticas dentro da sociedade palestina, e essa é
uma tarefa bastante difícil. Mas acho que este novo
movimento terá um grande sucesso. Eu faço parte
dele, assim como Mustafá Barghouti, Haidar Abdel-Shafi e muitos outros.
O sr. acha que a sociedade civil palestina está suficientemente organizada para enfrentar essa nova fase?
Sim, porque ela é a única coisa que sobreviveu às
ocupações. Os israelenses destruíram o aparato militar e de segurança de Arafat, aniquilaram a ANP. A
única coisa que restou -e que ainda precisa de cuidados, de comida, de atendimento médico, jurídico
etc.- são as instituições da sociedade civil. E todas
elas agora estão se unindo na luta pelos direitos humanos, com o movimento das mulheres, de professores, sindicalistas, advogados, médicos e outras categorias, todos juntos para tentar criar esta nova iniciativa que finalmente alcance um grau de organização democrática e secular.
O sr. costuma apontar a democratização da África do Sul
como um modelo de mudança histórica. O sr. acha que a
mesma virada poderia acontecer no Oriente Médio, onde
os interesses americanos são bem mais fortes do que
eram na África do Sul?
Penso que, se conseguirmos envolver os israelenses
na causa palestina, assim como os sul-africanos
-especialmente Mandela- conseguiram envolver
a população branca na luta contra o apartheid, estaremos dando um grande passo à frente.
Em suas aulas de literatura o sr. discute estas questões
com os seus alunos?
Não. Nunca falo sobre o Oriente Médio em classe.
Então o sr. separa as duas atividades?
Sim, acho que é bem melhor agir assim.
Como professor de literatura, qual a sua visão sobre a
obra de autores judeus americanos como Philip Roth,
Saul Bellow ou Norman Mailer?
Quando eu estudo a literatura americana, procuro
analisá-la historicamente. Minha abordagem é bastante aberta e inclui autores como os que você citou.
Acho que a literatura americana do século 20 tem
uma qualidade especial. Ela foi muito influenciada
por autores judeus. Philip Roth, por exemplo, especialmente nos romances em que aparece aquele personagem... agora não me lembro do nome.
Nathan Zukerman?
Zukerman, este mesmo. É muito complicado reencontrar uma sensibilidade diante da ocupação israelense dos territórios, e eu acho isso muito interessante, uma literatura cheia de possibilidades. Quanto a
Bellow, ele é muito conservador. Já Norman Mailer é
apenas ignorante. Há diferentes inflexões e diferentes modos de escrever.
E um autor israelense como Amos Oz?
Não, não. Para mim ele é um escritor medíocre, a
obra dele nunca me interessou. Depois de ler dois ou
três dos seus livros, vi que suas opiniões sobre os palestinos são brutalmente racistas. Enfim, é um homem por quem não tenho um grande respeito. Não
gosto de sua ficção. Prefiro [David" Grossman. O fato é que, no momento, não há muita literatura ou atividade intelectual interessante em Israel.
No caso da questão palestina, o sr. pensa na formação de
um Estado binacional, por exemplo?
Não sei, é difícil prever como as coisas vão se dar no
campo político. Mas o fato é que palestinos e israelenses estão muito misturados, ou seja, há 400 mil israelenses vivendo em territórios palestinos, e 1,4 milhão de palestinos vivendo no Estado de Israel. A população é mista, e o futuro não pode estar na separação entre os dois. É lógico que é preciso haver mais
integração e coexistência. Um lado não pode derrotar o outro. Esse é o único caminho.
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