UOL


São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

A lição da Espanha

Reprodução
"Olímpia" (1863), obra de Édouard Manet


O hispanismo foi uma das alavancas para as transformações modernas na pintura do século 19, que ocorriam na França. Descobria-se Velázquez, Murillo, Zurbarán, Greco, Goya. Esses artistas respondiam a um gosto pela observação mais imediata, por um realismo sem minúcias, enérgico, solene e amplo, que libertava os modernos da tradição idealista, cuja herança vinha da Antiguidade e do Renascimento. Eram obras que mergulhavam figuras monumentais em sombras luzidias, em brancos mates, em atmosferas onde o ar é quase palpável. Graças à lente espanhola, a representação do mundo visível adquiria, por efeitos de contrastes, uma abreviação concisa. Ela suscitou o olhar realista de Courbet e muitas inquietações de Manet.
Antes dos impressionistas, que reduziram o formato, adaptando suas telas ao mercado das artes, os espanhóis estimularam a última renovação, na história, de uma pintura heróica, destinada às salas vastas dos museus. A exposição "Manet / Velázquez - a Maneira Espanhola no Século 19", que se encerrou no Museu d'Orsay, em Paris, e segue para o Metropolitan, de Nova Iorque, tece essas relações. Manet é o fulcro francês, e o percurso termina por seu admirável retrato de Marcellin Desboutins, emprestado pelo Masp.
Mas a mostra se ramifica ainda em direção a Courbet, Millet, Corot, Degas, Delacroix, e a outros pintores, que, esquecidos em nossos dias, se revelam, no entanto, magistrais: o "Jó", de Bonnat, o "Samaritano", de Ribot, são grandes revelações. Todos esses artistas foram marcados pelos espanhóis que estão presentes ali, numerosos, à volta de Velázquez.
Clima - A mostra "Manet / Velázquez", de Paris, evitou estabelecer paralelo estreito pondo, lado a lado, telas de espanhóis e franceses. Preferiu concentrá-las em unidades densas e sugestivas, que estimulam a visão do espectador. Ela recebeu algumas críticas por causa disso, em nome de um didatismo comparativo mais pronunciado. Porém, se a maneira escolhida de dispor as pinturas exige mais de quem as contempla, permite também a intuição complexa de certos movimentos gerais. É uma configuração sutil que faz vibrar, em sintonia, o esplendor austero dessas obras.
Perfumes - "Em todos os lugares, ele buscou a beleza passageira, fugaz, da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar modernidade." Assim, Baudelaire evocou Constantin Guys (1805-1892), o artista que, para ele, encarnava o heroísmo da vida moderna. Baudelaire admirava Manet, mas Manet construía imagens estáticas, meditadas, e Baudelaire buscava a vivacidade do traço, capaz de captar os frêmitos nervosos das metrópoles de seu tempo. Guys era um desenhista, um ilustrador para jornais, um repórter gráfico, que repartiu sua existência entre Londres e Paris. Seu nome está associado, para sempre, ao de Baudelaire, que a ele dedicou um longo texto, tornando-o um paradigma visual da modernidade.
O ensaio é muito mais conhecido do que os desenhos de Guys. Em Paris, o Museu da Vida Romântica deu sequência ao seu programa de mostras originais e inteligentes, apresentando "Constantin Guys - Flores do Mal", que se encerrou há pouco. Guys tinha dois temas preferidos: os acontecimentos militares e as mulheres. A exposição parisiense centrou-se num estupendo conjunto de desenhos femininos. Da grande dama ao bordel, Guys, com traço rápido, simplificado e espesso, com uma compreensão cromática capaz de apreender a luz, a matéria e o movimento dos tecidos, revela as mulheres envolvidas nos artifícios da moda de seu tempo.
Vibrações - Guys não é um pintor. Limitou-se ao desenho. Mas ele soube atingir pontos nevrálgicos de uma sensibilidade erótica que lhe era contemporânea, e que seduzia Baudelaire. É verdade que Guys entrou para a história das artes graças a Baudelaire, mas também, de seu lado, aguçou as percepções febris do poeta. Baudelaire lhe dedicou "Sonho Parisiense", um dos poemas que compõem as "Flores do Mal".

Jorge Coli é historiador da arte.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: A decadência de uma expressão
Próximo Texto: José Simão: Dona Marisa quase mata Fidel!
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.