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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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+ poema

Alvorada do Fim da Trilha
(Eurídice a Orfeu)

de Jorie Graham
Tradução de Arthur Nestrovski

Durma. Afunde. Não deixe o teto aparecer.
O carro de polícia deslizando aquoso em volta do quarteirão.
O dia começando a flutuar para dentro através das fendas da persiana.
Como vidro, ornamental.
Esqueça os fazeres agora -
flutue nas repetições do longe -
mude de posição e se desprenda
nas diminuições inçantes -
seu rosto para baixo - os escuros do quarto flutuando na direção
das atrações - dos limites -
de sua palidez
quase sem respiro - durma -
fique deitado com os sussurros onde você é
livre ainda -
fique deitado bem entrelaçado - sem se abrir - como pétalas em torno
do estame de
alguma sílaba verde não pronunciada -
Ah olhe para você -
como música entregue ao sono sobre seu instrumento,
eu me inclino tão perto que sua respiração aquece a violenta
ociosidade
dos meus lábios cerrados - não vou permitir
que a luz do dia venha lhe tocar -
não vou permitir que as amplificações, que as integrações
venham lhe tocar - os pensamentos - a crença sentida
por dentro - (filtrando-se: bordas despontam no visível) -
nem eu (como música) (entregue ao sono) jamais tocaria em você
arriscando despertar a canção de novo -
minha boca sobre seus dedos imóveis agora (sem roçar,
que seja, neles) - pálpebras cerradas se inclinando até que o seu fôlego
vazado
possa deixá-las úmidas.
Sou meticulosa.
Os deuses partiram.
Recebo seu fôlego no meu cabelo - nada de mais límpido
do que essa minha distância microscópica de você - uma limpidez tão diminuta
que até a semicolcheia, a asa-de-inseto se quebraria - e ainda assim
nem por todos os pedaços aluminizados de luz
começando a traçar listas na sua testa
vazia de sono
no travesseiro - fazendo poças como halogênio no seu punho aberto -
nem pelo teto que começa a aparecer - nem pelo meu rosto, meu olhar
aberto caindo sobre você -
meu pensamento, meu cérebro seqüencial e cheio de acordes -
e labaredas de ar despontando
exigindo que a gente se erga e testemunhe, brinque com elas,
todas as cravelhas tensas do encordoamento, as serrilhas, os trastes -
("composto em Clevedon, Somersetshire") -
nem por tudo isso eu poderia tocar, nem com a maior leveza, em vossa senhoria, de
novo,
agora que a sirene está disparando, em alguma parte, nalgum outro lugar,
escurecendo, replissando o ar em torno,
para fazer você ficar onde está agora,
para manter seu pensamento afundado, carregado de peso
encosta abaixo - atirado no fundo -
lá onde não há
ventanias, nem asas,
nem mundo tão repleto, nem vida dentro -
virado e revirado e revirado e revirado
por mãos
que não as minhas
cujo exame negro de seda
finalmente está livre
de amor -


Jorie Graham (1951) é poeta e professora da Universidade de Iowa (EUA). Recebeu o Prêmio Pulitzer de poesia em 1996 por sua coletânea "The Dream of the Unified Field: Selected Poemas 1974-1994" (Ecco Press). O poema publicado nesta página está no livro "The Errancy" (Ecco Press, 1997).

Arthur Nestrovski é escritor e professor de literatura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de, entre outras obras, "Ironias da Modernidade" (Ática) e "Notas Musicais" (Publifolha).

Rosana Monnerat é artista plástica. Entre suas exposições individuais, destaca-se "Esconderijos da Memória: Gravuras e Escultura", no Museu Lasar Segall - SP (2001).


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