São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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Virtudes da angústia


[Enquanto devora sua ceia, o sr. Néant sacia o apetite do sr. Vigne pela sensibilidade existencialista, numa paródia dos encontros filosóficos em Paris]


SR. VIGNE - Meu caro senhor Néant, antes de ir dormir, talvez consinta em me esclarecer um ou dois pontos que ainda não são evidentes para mim.
SR. NÉANT - Certamente, meu bom amigo. Não há nada que não queira fazer por você. Entretanto creio que, se eu tivesse o estômago menos vazio, teria as idéias ainda mais claras.
SR. VIGNE - Ah, bem pensado, como é digno ter fome quando se sabe exprimir tão bem! Sente-se, senhor Néant, e aproveite esse pernil que Deus... hum... quer dizer, o acaso nos enviou nesta manhã. (o sr. Néant se ocupa com o pernil. O senhor Vigne o contempla enternecido e, em seguida, com expressão convulsa)
SR. VIGNE - Senhor Néant! Preciso entender a angústia da qual me falou tão belamente e que não pratico com muita freqüência.
SR. NÉANT (comendo) - De fato, senhor Vigne, a angústia é a melhor coisa do mundo.
SR. VIGNE - Mas o que é preciso entender por esse termo, meu caríssimo senhor Néant?
SR. NÉANT (comendo) - Bem... Enfim, trata-se de uma apreensão geral dos infortúnios que não podemos definir e que, de resto, não precisam necessariamente acontecer.
SR. VIGNE - Ah! Isso está muito claro, e vou me dedicar a experimentá-la todas as manhãs para atingir o tipo de perfeição da qual me fala.
SR. NÉANT (comendo) - Muito bem, senhor Vigne, estou certo de que está aliviado.
SR. VIGNE - Mas essa angústia não acaba fazendo mal?
SR. NÉANT (devorando) - Ah! Senhor, nada é mais consolador do que a angústia e nada é pior do que uma vida privada dessa virtude. Na verdade, é impossível viver sem angústia e é ela que faz viver sem que provoque o menor dos males. Prova disso é que os mortos não a provam.
SR. VIGNE - Bravo! Essa prova é irrefutável.
SR. NÉANT (comendo selvagemente) - Angústia e mais angústia, angústia sempre, senhor Vigne, e estaremos todos salvos.


Trechos traduzidos por Manuel da Costa Pinto .


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