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As religiosidades e africanidades
Ronaldo Vainfas
especial para a Folha
Prefiro falar de uma lacuna temática sobre o período colonial, que conheço um pouco melhor. E me espanta constatar como nossos historiadores quase não se dedicaram às
religiosidades. Isto vale para a Colônia e para toda a história brasileira.
Dentre os 30 livros que incluí nessa
edição, somente um, "O Diabo e a
Terra de Santa Cruz", de Laura de
Mello e Souza, é dedicado exclusivamente ao assunto.
Não deixa de ser muito intrigante
essa lacuna, sendo o Brasil até hoje
embebido de religião, país católico
onde se multiplicam seitas protestantes e onde o sincretismo religioso
está em toda parte, como na umbanda carioca. Isso sem falar nas africanidades, como o candomblé baiano,
e noutros ritos de morfologia complexa, como os catimbós tradicionais
ou o "moderno" Santo Daime. É evidente o contraste entre a força de
nossas religiosidades e a desatenção
de nossa historiografia.
É verdade que alguns historiadores
se dedicaram a esse campo na época
colonial, além de Laura. Luiz Mott fez
uma bela biografia de uma visionária
negra no Brasil setecentista. Anita
Novinsky estudou os cristãos novos
na Bahia. Eu mesmo estudei a "santidade indígena" no 16. Vários estudaram com brilho a catequese. Poderia
dar mais exemplos, mas são relativamente poucos os estudos sobre religiosidades, e a maioria prioriza os aspectos institucionais, quando não as
reduzem às determinações econômicas ou de outro tipo.
Entre os clássicos, somente Freyre
deu atenção ao assunto, graças à sua
genialidade e, sem dúvida, à sua formação antropológica culturalista. E
as religiosidades não estão ausentes
de "Visão do Paraíso", embora o livro seja antes uma história das idéias
do que de experiências religiosas, como o próprio Sérgio Buarque afirmou em certo prefácio.
O relativo desdém dos historiadores diante das religiosidades contrasta, aliás, com a sensibilidade de sociólogos, como Bastide, de etnólogos,
como Métraux, e sobretudo dos antropólogos, que sempre perceberam
a importância do sobrenatural e do
misticismo na sociedade brasileira.
Creio que isso se deve a que os historiadores talvez sejam herdeiros
mais fiéis da tradição iluminista, cultora da Razão, sem falar no prestígio
do marxismo estruturalista, não raro
economicista, que grassou entre nós
até os anos 1980. De todo modo, é lacuna que prejudica a compreensão
histórica de nossa sociedade.
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